divórcio ou casamento eterno?...

2006-01-23

Eleições

Duas notas

Ando a ler a "Minha Vida" do Clinton. Aqui deixo uma sua frase sobre eleições:
Na minha opiniãso, os dias das eleições sempre simbolizaram o grande mistério da democracia. Sondagens de opinião e peritos dos media bem podem fazer todos os esforços para o descortinar, mas o mistério permanece. Nesse dia, o cidadão comum, o milionário ou o presidente, cada um dispõe do mesmo poder. Muitos exercem-no, outros abstêm-se. Os primeiros escolhem um candidato pelas mais variadas razões, umas racionais e outras intuitivas, umas vezes com convicção outras com cepticismo. Contudo, através de todo este processo, eles designam, muitas vezes, o melhor dirigente para assumir a função num dado período.
Assim seja!
Um dos factos que me pareceu mais relevante é que nestas eleições os dois primeiros foram os candidatos que mais se quiseram distanciar dos partidos e um deles até se definiu como "não político".
E, no entanto, a política e a política partidária são fundamentais (embora não exclusivas e muito menos excludentes) para a construção de um mundo melhor. Para a DSI, esta "arte nobre e difícil" é "uma forma exigente - embora não seja a única - de viver o amor ao próximo".
É portanto necessário fazer um debate sobre os nossos políticos e sobretudo sobre a política. O que devemos nós os cidadãos comuns fazer para ajudar a credibilizar a política? O que devemos e podemos exigir dos nossos políticos? Como podemos fazer de modo eficaz essa exigência?
O que não podemos é deixar andar este estado de coisas, porque, como cidadãos, temos tantas responsabilidades como os políticos.

Semana da Unidade

Os oito dias que vão de 18 a 25 de Janeiro são tradicionalmente dedicados à oração pela unidade dos cristãos.
Este acontecimento deveria revestir-se da maior importância como decorre das palavras de Jesus na última ceia: "que todos sejam um. Assim como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, assim também eles sejam um em nós A FIM DE QUE O MUNDO CREIA QUE TU ME ENVIASTE" (Jo 17,21).
Contudo esta semana não passa habitualmente de um simples ritual que todos os anos se repete, mas que pouco mobiliza os crentes: dois tempos de oração e está o dever cumprido para todo o ano...
Contudo, parece-me que há uma unidade prévia à unidade dos cristãos e da qual pouco se fala: é a unidade dos católicos em torno de Jesus Cristo.
E aí algumas questões se colocam: será que é o mesmo Jesus Cristo que anima todos os católicos? Não há uma leitura redutora dos evangelhos que permite a cada um acreditar no seu Jesus? E se as leituras são diferentes os comportamentos não terão também de o ser? O que caracteriza os católicos? O que distingue os discípulos de Cristo?
Naturalmente que não defendo um regime de (neo-)cristanadade, onde todos fazem os mesmos gestos e têm as mesmas atitudes. Mas há um núcleo duro da mensagem de Jesus no qual todos teremos de estar de acordo e que deve servir de fundamentação e de critério ao nosso estilo de vida e ao nosso compromisso cristão, nos variados caminhos a que cada um é chamado a ser santo.
Para esta dificuldade em estarmos de acordo quanto a esse núcleo duro contribuem - e esta é uma proposta que faço para debate - algumas causas:
- a generalizada ignorância religiosa da sagrada escritura, do Concílio e da Doutrina Social da Igreja, o que coloca o problema da identidade;
- o hábito de viver o mais comodamente o nosso ser cristão sem grandes compromisos nem mudanças de vida com a consequente incoerência entre a fé que se proclama e a vida que se vive no dia a dia, o que coloca o problema da autenticidade;
- o problema da linguagem, que nem sempre é compreensível e, poratnto, credível, o que coloca o problema da credibilidade;
- o pluralismo, que sendo indispensável nas vivências do dia a dia, deve assentar no seguimento do próprio Jesus Cristo; o que coloca o problema da unidade.
Estarei correcto nesta análise? Há outras causas que tanto perturbam um credível testemunho dos cristãos no mundo de hoje?
Para os que tiverem paciência, reproduzo a seguir o artigo que escrevi esta semana para o Correio de Coimbra:
Mais um ritual cumprido: a semana da unidade ou o oitavário pela unidade dos cristãos. E falo de ritual porque, pelo menos entre nós, é mais uma questão de hábito, de repetição anual, disfarçado com dois tempos de oração um num templo católico e outro num templo protestante.
E, no entanto, o ecumenismo coloca questões a vários níveis.
O comportamento “popular” estava (está) marcado por uma catequese apologética. Durante séculos os protestantes foram considerados inimigos. As Igrejas da Reforma eram acusadas de ter abandonado o verdadeiro redil de Cristo e a sua única hipótese de salvação era retornarem quase de corda ao pescoço, renunciando à sua “heresia” e proclamando o credo católico. Ainda está longe da mentalidade comum cristã a viragem conciliar que fala de culpas “de um e de outro lado” (UR 3), que pede “humildemente perdão a Deus e aos irmãos separados assim como também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam” (UR 7), que “exorta os fiéis a absterem-se de qualquer zelo superficial ou imprudente que possa prejudicar o verdadeiro progresso da unidade” (UR 24).
Mas a nível dos problemas teológicos, que pouco ou nada dizem à generalidade do povo cristão, a separação é mais dolorosa: como é que a partir do mesmo Evangelho não somos capazes de nos unir? Que credibilidade pode ter o testemunho cristão se em nome do mesmo Deus estamos tão divididos? Se em nome do mesmo Deus não somos capazes de superar divisões, ultrapassar divergências, assumir compromissos que no fundo são “apenas” doutrinais, não estaremos a dar uma imagem de fundamentalistas e não é o fundamentalismo a negação mais visível de um Deus que a todos acolhe, a todos ama de igual modo?
Certamente já se andou muito caminho, mas não chega, até porque a exigência da última ceia é bem explícito: “para que todos sejam um assim como tu, ó Pai, estás em mim como eu em ti, também eles sejam um em nós a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21).
É certo que esta tem sido uma das grandes preocupações dos últimos papas. Mas terá havido suficiente respeito pelos outros ou aceitamos considerá-los como irmãos, mas mais afastados que nós da Igreja de Cristo? E se assim é, é possível avançar no diálogo e no amor?
De qualquer modo, há uma outra questão semelhante, mas dentro da nossa própria Igreja. Será que não estamos também divididos? Será que o Jesus Cristo que nos anima é o mesmo?
Não reduzimos alguns de nós o exercício da fé à celebração litúrgica e à catequese e ignoramos todas as suas consequências sociais, políticas, económicas e culturais? Quantos de nós interiorizámos o paralelismo radical entre a instituição da Eucaristia e o lava-pés, realizados na última ceia? Estamos certos de que os critérios para entrar no Reino dos céus são os do acolhimento e do amor fraterno? Acreditamos todos que “o mesmo Jesus que disse ‘Isto é o meu corpo’ disse ‘Tinha fome e (não) deste-me de comer” (J. Crisóstomo), porque” sempre que assim fizestes foi a Mim que o fizestes” (Mt 25,40)? Temos consciência de que os sinais do Reino de Deus são: “os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem…” (Mt 11,5)?
Será que é a mesma a Palavra de Deus que todos proclamamos, celebramos e vivemos?
Se não estamos de acordo neste núcleo duro da mensagem evangélica, que testemunho podemos dar, já que “é nisto precisamente que todos reconhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35). E trata-se não de amar apenas os que são da nossa cor, mas todos incluindo os nossos inimigos, como tão bem mostra o Sermão da Montanha. Há várias causas que dificultam esta unidade dos católicos. Primeiro que tudo, a nossa ignorância da Palavra de Deus, como reconhecem os nossos Bispos: “A fragilidade do cristianismo provém, em grande parte, do analfabetismo religioso”. Depois, há o velho hábito de viver o ser cristão de modo comodista, simpático, sem grandes exigências ou compromissos transformadores nem mudanças perturbadoras do bem-estar pessoal. Daqui decorre uma excessiva incoerência, um “divórcio” entre a fé proclamada e a vida vivida (GS 43) que descredibiliza qualquer fé. Há ainda o pluralismo, que, sendo legítimo e necessário já que o Povo de Deus não é propriamente o “rebanho” de Deus nem vive em regime de cristandade, não pode ignorar as referências fundantes. É para este perigo que nos alerta João Paulo II ao proclamar que todos temos de ser fiéis ao “radicalismo do Sermão da Montanha: ‘Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste’ (Mt 5,48). Este ideal de perfeição, como explica o Concílio, não deve ser objecto de equívoco, vendo nele um caminho extraordinário, que apenas algum “génio” de santidade poderia percorrer. Os caminhos de santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta “medida alta” da vida cristã comum: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direcção” (NMI 31).

2006-01-19

Tempo de fé e de dúvidas

Passei uma semana bem longa.
Há oito dias fui informado que um lipoma que extraíra no Verão tinha células malignas. A primeira reacção copiei-a de Job: "Deus o deu; Deus o tirou".
Depois foi o tempo de provar a coerência das minhas convicções: acreditas realmente que estás de passagem? estás disposto a aceitar a vontade de Deus a teu respieto? aquilo que tanto tens escrito e dito tem algum significado para ti?
Claro que ainda só foram oito dias, mas para já parece-me que passei mais ou menos esta prova. Esperemos pelas próximas.

Mas estes oito dias trouxeram-me duas convicções:
1ª É muito bom ter fé. Foi este dom que me levou não a perguntar "porquê a mim?" e aceitar sem revolta a notícia.
2ª Não tenho vocação nenhuma para ser santo. É que quando li vidas de santos sempre os ouvia suspirar pela morte para mais rapidamente se unirem a Deus face a face. Mas eu sinceramente não tenho nada esse desejo; prefiro encontrar Deus aqui na Terra por mais uns tempos: na sua Palavra e nos seus sacramentos, mas sobretudo na minha mulher, nos meus filhos, nos meus familiares, nos meus amigos e até, se for capaz disso, nos meus adversários. E depois, lá mais para a frente "quando já for velhinho" então temos tempo para o encontro definitivo.
Sinceramente não sei em quantos lugares S. Pedro me irá penalizar no céu por esta minha "falta de fé" ainda mais proclamada em público. Que Deus tenha piedade de mim. Mas depois veremos. Todos veremos.
Tomei, entretanto, duas decisões que não sei por durante quanto tempo irei cumprir:
1ª Hierarquizar melhor os meus compromissos e tomadas de decisão.
2ª Espalhar por toda a casa aquelas palavras que andaram aí pela Net: "Não chores porque acabou; mas sorri porque aconteceu".

Nota final: Os testes que fui fazendo esta semana acabaram, há poucas horas, de confirmar a malignidade das células, mas também que tudo está ainda muito localizado, o que teoricamente se poderá resolver com uma operação. Assim espero, embora, como me disse o médico, o inimigo seja cheio de truqes.
O mal está comigo, mas, segundo parece, numa versão mais soft. Assim seja... se for essa a vontade de Deus.
Agradeço o apoio dos amigos que já sabiam.

2006-01-17

Ser cristão hoje

Na sequência do desafio que fiz atrás, gostaria de iniciar a análise de algumas causas do comportamento de muitos cristãos no mundo de hoje.
Se não fosse a ida à missa ao domingo, muitos não se distinguiriam do resto dos cidadãos e alguns até perderiam no confronto.

Lembro-me que, quando acabei a minha licenciatura e comecei a trabalhar, uma das questões básicas que me coloquei foi esta: o que vais fazer agora? Como vais viver o teu ser cristão? Ser cristão é "só" ser um bom cidadão que vai à missa?
Interroguei "peritos", li livros e todos confluíam: ser cristão não é ser diferente de um b0m cidadão, apenas tem motivações diferentes.
A resposta não me agradou. E continuei a busca. Até que descobri num texto que já lera tantas vezes - o Sermão da Montanha - duas passagens que me deram a resposta. Cito:
1ª: "Amai os vossos inimigos... Por que se amais os que vos amam, que recompensa tereis disso? PORVENTURA NÃO FAZEM ISSO OS PUBLICANOS? E se só saudais os vossos amigos, que fazeis de extraordinário? ACASO NÃO FAZEM O MESMO TAMBÉM OS PAGÃOS? (Mt 5,46-47).
2ª: "Não andeis pois preocupados (com o amanhã). OS PAGÃOS É QUE SE PREOCUPAM COM ESSAS COISAS" (Mt 6,25-32).
Por pagão entende-se o não crente (e, portanto, para o caso, supostamente um bom cidadão)

Daqui conclui que ser cristão tem que acrescentar mais ao ser bom cidadão e esse mais não é apenas o ir à missa. E foi no mesmo Sermão da Montanha que descobri a resposta. Cito de novo:
"Ouviram o que foi dito: "Olho por olho, dente por dente". Porém eu digo-vos: "Não resistais a quem vos fizer mal. Se alguém te bater na face direita, dá-lhe também a outra. Se alguém te levar a tribunal para te tirar a camisa, dá-lhe também o casaco. SE ALGUÉM TE OBRIGAR A ANDAR UMA MILHA, VAI COM ELE DUAS" (Mt 5,40.41).

Esta passagem sempre me intrigou. Li, reflecti, meditei... até me ter percebido do seu sentido último, pelo menos para a minha vida. Andar uma milha era a obrigação legal que devia ser satisfeita quando os correios do imperador levavam mensagens: por lei podiam requisitar qualquer cidadão para os acompanhar ou lhes indicar o melhor caminho durante uma milha. Fazer isto era cumprir a lei, era ser BOM CIDADÃO. Mas continuar a acompanhá-lo uma segunda milha, ia para lá da exigência legal; era um exercício de AMOR.
Então percebi que se só cumprir a lei (o que já não é nada mau) seria um BOM CIDADÃO mas não necessariamente um bom cristão.
Para ser um BOM CRISTÃO eu tinha de ir para lá da lei, ir para lá da obrigatoriedade de andar apenas uma milha e andar 2 ou 3 ou quantas fossem precisas para ajudar o meu irmão.

As causas do nosso comportamento ficam para daqui a pouco. Para já deixo estas ideias.

2006-01-16

Ética da lei ou lei da ética

As jogadas da edp/iberdola colocam sérios problemas de ética, sobretudo depois das palavras sabidas de Pina Moura: "a ética da república é a ética da lei".
É urgente denunciar estes moralistas da carteira para quem a ética não existe. Contudo, a ética é não só anterior à lei como também lhe marca os limites e os critérios .
Por outro lado, os Pina Mouras só existem e agem impunemente porque as leis lhe facilitam este laxismo, mas sobretudo porque os comportamentos de milhões de cidadãos lhes dão cobertura. Como digo no artigo, que com este título publiquei no Correio de Coimbra, "estes e outros exercícios de macrobandalhice moral, a que vamos assistindo na nossa sociedade, muitos com uma assumida cobertura pela lei, só continuam impunes e florescentes porque há milhões de microbandalhices morais de que cada cidadão é individualmente responsável. É que estas, apesar de parecerem insignificantes a quem as pratica, criam um ambiente de tolerância social e laxismo ético que tudo aceita, tudo permite e tudo desculpa".
Para os interessados deixo a seguir o artigo na totalidade.
Recentemente no Japão aconteceu um daqueles enganos que, apesar de tão evidente, teve nefastas consequências. Um funcionário ao preencher o formulário para a Bolsa enganou-se e em vez de pôr à venda 1 única acção de uma empresa por 610 mil ienes, propôs 610 mil acções a 1 iene. Apesar de rapidamente ter detectado o erro, a ordem de cancelamento atrasou-se devido ao mau funcionamento do sistema informático da Bolsa de Tóquio. Este lapso, manifesto e evidente, foi logo aproveitado por instituições financeiras ocidentais que, para ganharem muitos milhões, não tiveram quaisquer escrúpulos em fazer perder a uma outra instituição cerca de 40 mil milhões de ienes. A lei não foi violada, justificaram-se. E a ética? pergunto eu.
Recentemente soube-se também que Schroeder assumiu a presidência de uma empresa de gás natural que tinha negociado com os russos, quando ainda era chanceler alemão. Certamente que também aqui a lei não foi violada. E a ética? pergunto eu.
Entre nós assistimos, sem perceber bem o que se passa, ao caso edp / iberdola. Não se sabe quais as culpas de cada um, o que não é de admirar num país onde a culpa sempre morreu solteira e onde a cultura da irresponsabilidade tem estatuto público. Para lá dos responsáveis governamentais, como Manuel Pinho e naturalmente José Sócrates, há nomes que são muito comentados. A Pina Moura aponta-se a esquizofrenia múltipla: presidente da iberdola, deputado socialista, ex-ministro socialista, ex-funcionário do bcp. De António Mexia destaca-se a sua duplicidade: enquanto cidadão, quadro do bes, aconselhou ao Estado o polémico modelo das scuts; enquanto ministro, acusou o Estado de ter embarcado nesse modelo de financiamento de forma totalmente irresponsável.
As palavras de Pina Moura aí estão para explicar tudo: a lei foi escrupulosamente cumprida e o prazo legal de 3 anos para aceitar o cargo até foi excedido. Portanto a lei não foi violada e, sentença arrepiantemente lapidar, “para mim, num Estado de direito, a ética da república é a ética da lei”.
Isto é, num Estado de direito não há ética; só há lei ou, por outras palavras, a lei é que faz a ética. Cumprida a lei, a ética está assegurada. É certamente por isto que os ricos, porque endinheirados, têm tanta dificuldade em ser presos e os pobres, sem dinheiro para contratar bons advogados, tanta facilidade em serem condenados. É que a lei, bem trabalhada, dá para quase tudo; sobretudo nas mãos de gente tão escrupulosamente legalista quanto eticamente imoral. Raramente um tão grande desprezo pela ética fora assumido publicamente de forma tão clara. O pior é que muitos outros não o proclamam tão abertamente mas põe-no em prática com o mesmo desaforo e irresponsabilidade.
E, contudo, a ética não só não é estabelecida pela lei como é anterior à própria lei e, por isso mesmo, lhe estabelece os limites, os critérios e as exigências.
Neste contexto percebe-se a oportunidade de Bento XVI, na mensagem para dia mundial da Paz, ao apontar como primeiro obstáculo à paz a falta de verdade ou “as mentiras do nosso tempo”. Podemos chamar-lhe mentira, falta de verdade ou falta de transparência. No fundo, porém, do que se trata é de corrupção moral ou, em linguagem popular, de “falta de vergonha”, uma categoria que as sociedades ocidentais ridicularizaram e acabaram por esquecer. Como continuam tão actuais, estas palavras, com mais de 70 anos, de Pio XI: “Este acumular de poderio e recursos (…) é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (QA 107)!
Também João Paulo II encontra aí a origem da crise dos sistemas democráticos: “As questões levantadas pela sociedade não são examinadas à luz dos critérios de justiça e moralidade, mas antes na base da força eleitoral ou financeira dos grupos que as apoiam. Semelhantes desvios da prática política geram, com o tempo, desconfiança e apatia e consequentemente diminuição da participação política e do espírito cívico no seio da população que se sente prejudicada e desiludida.” (CA 47).
Estes e outros exercícios de macrobandalhice moral, a que vamos assistindo na nossa sociedade, muitos com uma assumida cobertura pela lei, só continuam impunes e florescentes porque há milhões de microbandalhices morais de que cada cidadão é individualmente responsável. É que estas, apesar de parecerem insignificantes a quem as pratica, criam um ambiente de tolerância social e laxismo ético que tudo aceita, tudo permite e tudo desculpa.
Para ultrapassar tal situação, verdadeiro “plano inclinado” da irresponsabilidade e do relativismo moral, impõe-se a todos, pessoas e instituições, um estilo de vida assente no respeito pelas normas da ética, da justiça social e da dignidade humana, sempre ao serviço do bem comum, recusando que sejam os egoísmos e os interesses mesquinhos, individuais ou grupais, a reger as relações sociais, que, entre humanos, sempre terão de ser de solidariedade, fraternidade e respeito mútuo.

2006-01-14

O Bom Samaritano

A propósito do comentário da Ângela, recordei a prioridade da ortopraxis sobre a ortodoxia.
Todos certamente conhecem esta parábola relatada por Lucas (10,30-37), da qual se podem tirar muitas ilações, mas eu quero destacar apenas duas.
Na perigosíssima estrada que desce de Jerusalém para Jericó um homem foi assaltado e ficou a esvair-se em sangue. Passou um sacerdote, que o viu, mas continuou. O mesmo fez o levita. Depois passou um samaritano, que ao vê-lo, tomou consciência da situação e o ajudou.

A primeira conclusão refere-se ao modelo de acolhimento que devemos praticar. Todos viram: sacerdote, levita e samaritano. Portanto, não basta ver. É preciso ver para tomar consciência, mas não basta ver. É preciso passar dos olhos à cabeça: perceber o que se passa, tomar consciência da realidade e da sua gravidade. Depois aproximar-se, não como mirone, que dá palpites, mas que rapidamente se evapora se for preciso testemunhar. Depois, e isto é o mais importante, COMOVER-SE ("encheu-se de compaixão" diz o evangelista: do latim "cum + patior", sofrer com, igual a simpatia, neste caso do grego, sum + pathein, "sofrer com"), passar da cabeça ao coração, assumir como seus os problemas do outro, tomar como sua a situação do outro, VER A HISTÓRIA A PARTIR DO OUTRO. A partir daqui tudo se desencadeia para o agir: aplica-lhe os primeiros socorros, transporta-o a um local de repouso, encarrega alguém que tome conta dele até ele voltar.

A segunda conclusão: Jesus Cristo põe em confronto os especialistas da doutrina, os que sabem o que é a verdade (ortodoxia) e os especialistas na atenção aos que sofrem, à pessoa necessitada (ortopraxis). E neste confronto os representantes da doutrina são arrasados na parábola e quem é destacado é o que actua em favor do outro. Apesar dos primeiros serem representantes oficiais da religião e o outro ser um "herege" que recusa o Templo e não aceita a lei.
Concluindo: certamente que a Igreja deve testemunhar a sua verdade num momento de tanto relativismo; mas se se apresenta unicamente como defensora da verdade, distribuindo, mesmo que em nome da verdade, anátemas e condenações, ela é ignorada. Porque o que as pessoas querem é ser acolhida nas suas limitações, serem respeitadas nas suas fraqueza, serem amadas, mesmo que "não o mereçam", como faz o pai do filho pródigo.

2006-01-13

Uma esmolinha, por favor!

Bom ano a todos (!!!)
Depois de uma arrancada experimental e de um tempo em que não pude dedicar atenção a este blog e porque já começou a ser divulgado entre alguns amigos, é altura de pegar a sério neste espaço de diálogo.

Tenho a sensação de que não saiu no telejornal, mas neste momento faço parte da nova Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) e nessa qualidade venho pedir a colaboração de todos para um trabalho que gostaria de desenvolver.

Pessoalmente parece-me que a CNJP resolveu bem no seu último "mandato" as suas intervenções públicas e o diálogo com a sociedade (ad extra): comunicados, jornadas, opúsculos, grupos de trabalho, audições, etc..

Há, no entanto, um outro problema, talvez mais difícil de resolver. São as relações para dentro da Igreja (ad intra). Como já referi numa das apresentações que fiz deste blog, a comunidade cristã está formada por uma esmagadora maioria de pessoas que prefere privatizar a sua fé ignorando as suas consequências no estilo de vida, no comportamento social, político, económico, cultural.
Neste sentido, por exemplo, tudo o que de bom e evangélico possa ser proclamado pela CNJP ou outra instituição católica ou é credibilizado pelo comportamento das comunidades e das pessoas católicas ou não tem qualquer influência.

A questão para que pedia colaboração pode resumir-se deste modo: que caminhos percorrer para ir alterando esta mentalidade redutora ou esta "muralha de silêncio" que se ouve nas nossas comunidades sempre que se fala de dignidade humana, de direitos dos mais pobres, de uma sociedade mais justa e solidária, dado que a generalidade dos católicos prefere esta ordem estabelecida, que viola gravemente a lei de Deus, do que proclamar vivencialmente Evangelho de Jeus Cristo?
Os grandes pecados parece que continuam a ser os clássicos: faltar à missa ao domingo e os pecados sexuais (e estes não sei se não terão já sido promovidos a venais, se não passarem da esfera privada...)
E, no entanto, as palavras do Evangelho são claras:
- quais são os sinais do Reino? Resposta de Jesus aos enviados de João: "os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os cativos são libertados, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a boa nova da salvação" (Mt 11,5);
- quais são os critérios de entrada no Reino de Deus para "todos os povos e pessoas" (Mt 25,32)? : "Tive fome e deste-me de comer..." (Mt 25,35-36);
- "Não é o que diz "Senhor, Senhor" que entrará no Reino dos Céus, mas aquele que cumpre avontade de meuPai" (Mt 7,21);
- etc..

Que propostas poderei fazer na CNJP para ajudar a responder a estes desafios:
- como passar da lógica do comodismo egoísta à lógica da solidariedade?
- como passar da lógica da esmola à lógica do direito?
- como passar da lógica do direito à lógica do amor?
- que fazer para que cada cristão veja Jesus Cristo "realmente presente" não só na Eucaristia ou na Sagrada Escritura, mas também, e do mesmo modo "realmente presente" na prostituta, no sem-abrigo, no pobre que teve de se fazer vigarista para poder sacar algum e poder sobreviver (Mt 25,40-45)?

Vá lá ajudem-me não com a lógica da esmola mas por solidariedade e como contributo para irmos construindo uma sociedade mais à medida da pessoa.