divórcio ou casamento eterno?...

2006-03-28

Eleições em Israel

As eleições em Israel parecem indiciar uma mudança interessante. O grande tema dos debates eleitorais não foi a paz nem a segurança mas a justiça social.
Quando os israelitas começam a ser capazes de pensar em justiça social, que é um tema manifestamente de uma sociedade em paz, em vez de segurança e inimigos a abater, um tema do tempo de guerra, abrem-se perspectivas cujas repercussões futuras poderão ser potenciadoras de estabilidade numa zona onde antes só os canhões pareciam fazer ouvir a sua voz.
Serão as novas gerações mais abertas à tolerância? Será um povo que está farto de nascer, viver e morrer em estado de guerra? É que fazer a guerra também cansa...
Numa terra que há dois milénios foi pisada por Jesus de Nazaré já era tempo de pôr em prática aquela passagem de S. Paulo: "Cristo é a nossa paz: de dois povos fez um só povo. Com a sua morte ele destruiu o muro que os separava e os tornava inimigos um do outro" (Ef 2,14). Mas, continuando a citar, vemos que Cristo alarga a paz a toda a humanidade: "Aboliu a lei judaica com os seus preceitos e tradições para que, unidos nele, judeus e não-judeus pudessem formar uma humanidade nova, vivendo em paz" (Ef 2,15).

2006-03-26

Só permanece o que muda

O que se está a passar em França, para lá da complexidade interna, merece uma reflexão atenta.
A minha primeira reacção ao contrato do primeiro emprego foi muito negativa. Mas depois alguém me colocou algumas questões, que me têm feito pensar. O que é mais importante é não ter emprego ou ter um emprego precário, mas emprego? Será que, de um modo geral, os empresários vão mandar embora os bons empregados? E quantos estão dispostos a ter de suportar empregados apenas preocupados com o vencimento ao fim do mês?
E quando se confirma que mais de 70% dos estudantes querem "apenas" um emprego e não estão dispostos a ser eles próprios a tomar a iniciativa, a procurar pôr os seus talentos a render, a arriscar.
As nossas escolas não preparam para a vida, dando instrumentos apropriados para cada um poder acreditar em si e estar capacitado para arriscar. É hoje mais que evidente que "um emprego para toda a vida" acabou, pelo que se exige das nossas escolas uma preparação para a flexibilidade e para a capacidade de dar respostas diversificadas conforme as circunstâncias.
A situação faz-me lembrar a recomendação do Evangelho para não "pôr vinho novo em odres velhos".
Nós estamos a querer resolver problemas novos ("vinho novo") mas através das soluções velhas ("odres velhos"), que nada têm a ver com as novas situações. E as mudanças, e mudanças profundas, aí estão a exigir iniciativa, empreendorismo, cidadania, flexibilidade profissional, mobilidade intelectual, tudo características para as quais é preciso uma educação específica.
As mudanças são tais que só o que muda consegue permanecer.
Para tal é preciso criatividade, inovação, formação plurivalente e contínua, consciência de que o trabalho é uma vocação indispensável não só à realização pessoal e à prória subsistência mas também à construção de uma sociedade mais justa, mais solidária e mais rica economica e culturalmente.

2006-03-24

Arte nobre e difícil

De acordo com uma sondagem do The Sunday Telegraph 73% acham que o governo de Blair é "tanto ou mais corrupto" que o de John Major, seu antecessor. Contudo os trabalhistas estão 3 pontos a frente dos conservadores.
Será que estes resultados significam que dos políticos já nada há a esperar? que se trata de gente sem dignidade nem moralidade públicas?
Todos sentimos que talvez a classe política nunca tenha caído tão baixo.
É certo que a era dos grandes líderes já passou. Hoje, onde estão eles? E porquê esta crise de liderança?
Mas serão os políticos os únicos culpados?
Primeiro: a maior parte são realmente corruptos ou indignos ou estes são um pequena minoria?
Segundo: terá o cidadão consciência da dificuldade que é hoje governar e dos compromissos que têm de ser feitos de modo a que os princípios em que efectivamente se acredita possam ser convertidos em realidade?
Terceiro: será que os cidadãos estão disponíveis para dar o seu contributo para a construção de uma sociedade mais justa e para isso aceitar alguns sacrifícios?
Quarto: não queremos nós os cidadãos comuns ter todos os problemas resolvidos rapidamente incapazes de cultivar a paciência democrática reconhecendo que "Roma e Pavia não se fizeram num dia"?
Quinto: será que nós próprios, os cidadãos não "políticos, não contribuímos para esta atmosfera de descrença, desconfiança, desilusão que torna o exercício político ainda mais dificil?

2006-03-20

Gripe das aves

E já agora deixo também um comentário que fiz sobre a gripe das aves que acabei de enviar para a minha rubrica "Sinais" na revista Além-mar.
Já várias vezes anunciada como uma grande pandemia, a gripe das aves vai-se estendendo por toda a terra, de modo sorrateiro mas persistente. Entretanto, como os números catastróficos, pelo menos por agora (felizmente) não se cumpriram, vamos todos interiorizando que afinal se tratou de falso alarme e que nada de muito grave irá acontecer. A vida continua e não vale a pena estarmos muito preocupados. Os governos é que devem estar atentos e tomar as devidas precauções. Para isso são governo…
Normalmente acontece sempre o mesmo. Em vez de unirmos esforços e procurar atacar na origem estes focos malignos, vamos indo à velocidade de cruzeiro, na esperança de que isto só aconteça aos outros, aos países sub-desenvolvidos, socialmente mal preparados, sem grandes estruturas sanitárias. Nós os evoluídos do Norte temos laboratórios sofisticados, hospitais bem apetrechados, investigadores bem preparados, médicos muito competentes que certamente vencerão esta batalha, quando ela nos bater à porta. E esquecemo-nos de duas coisas muito simples. Também as pessoas que vivem em países cientificamente menos conseguidos são irmãos nossos com o mesmo direito à saúde e à qualidade de vida que nós (argumento altruísta). As doenças, especialmente as deste tipo, não escolhem pobres nem ricos, não fazem opção de pessoas e, portanto, se nós atacarmos em força a doença enquanto ela anda entre os mais pobres estamos a evitar que ela nos bata à porta (argumento egoísta). Ambos os argumentos são duas faces da solidariedade com os outros que pertencem ao mesmo e único género humano de que também nós fazemos parte: por um lado, ajudamo-los em momentos difíceis; por outro, ao combatermos a doença não só nos defendemos a nós como defendemos todos os outros de novas situações futuras.
Além disso, acusar as aves de migração, principais vectores do vírus, como únicas culpadas é uma boa desculpa para os nossos comportamentos irresponsáveis. Os vírus sempre existiram e há quem diga que a história da humanidade é a história da luta entre os vírus e os homens. Por isso, muitos hoje afirmam que esta erupção dos vírus resulta sobretudo do desequilíbrio que as nossas relações com o meio ambiente têm causado. Não são só as perturbações climatéricas; é todo o ecossistema que é afectado e com consequências imprevisíveis. Por outro lado, há hoje quem acuse os vendedores clandestinos de carne de, com a única mira no lucro, nem sempre se preocuparem com as condições sanitárias das aves e portanto serem também um grande factor de risco. Ainda recentemente vimos e lemos que um ou vários produtores deixaram a céu aberto várias centenas de frangos mortos…
Finalmente, é altura de todos percebermos que já não existem fronteiras neste mundo. Se as pessoas ainda se podem travar com barreiras de arame farpado e com meia dúzia de balas, os vírus e outros agentes patogénicos andam por onde querem e atravessam as fronteiras seja através das aves, das correntes atmosféricas ou à velocidade dos aviões de carreira sem precisarem de mostrar o passaporte e sem serem vistos por detectores de metais ou de droga.
Hoje somos todos interdependentes, sem fronteiras nem limites. E, como dizia João Paulo II, à interdependência só se pode responder com a “atitude moral e social e a "virtude" (que) é a solidariedade. Esta não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. É pelo contrário, a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38).

Escola de virtudes

Em primeiro lugar, quero cumprimentar todos os que me visitaram nesta ausência de uma dúzia de dias. Não foi por razões de saúde, mas mais de preguiça (disse-me alguém, certamente para me consolar, que pode ser sequela da anestesia geral: espero bem que sim?!...) e de outras actividades.
Gostaria de partilhar convosco uma reflexão que fiz sobre a minha estadia no hospital que se transformou também numa verdadeira catequese sobre as virtudes teologais, cardeais e humanas.
Para isso reproduzo o artigo que enviei para o Correio de Coimbra.
Nestes quase dois meses que me “retirei de circulação”, o mundo continuou a rodar e muitas coisas solicitaram a nossa qualidade de cidadãos. Contudo, gostaria ainda de por mais esta vez voltar à minha experiência pessoal.
Fazer uma operação é assim como ter um filho. Todos os dias nascem milhares de filhos, mas, quando é o nosso, o mundo parece que pára e ali ficamos nós embevecidos a olhar uma “coisinha” tão banal e tão “única e irrepetível”. Todos os dias acontecem milhares de operações, mas quando é a nossa vez de ser operado também nos parece que o mundo pára e que vivemos um acontecimento único. Por isso, desculpar-me-ão de voltar a este tema que foi uma vivência de várias virtudes forçadas pelas circunstâncias e cimentadas pela dor.
A primeira virtude que tive que viver foi a da humildade, no seu sentido original: “o que não se levanta da terra, o que tem consciência das suas limitações”. Virtude tão esquecida hoje e no entanto tão humana: bastará recordar que humildade e homem têm a mesma raiz etimológica. Percebi nos primeiros dias o que é a nossa finitude extrema, que nos leva a uma dependência absoluta dos outros: incapaz de me mexer, de satisfazer as necessidades básicas, ali estava à espera que alguém me ajudasse a viver. Mas, num aparente paradoxo, é nesta situação que nos tornamos o “centro do mundo”, não pela nossa força ou poder, mas precisamente pela nossa fraqueza. É a nossa fraqueza que, ao tornar-nos necessitados dos outros, atrai e concita a sua atenção e o seu carinho. Esta dependência humana é o sacramento da nossa absoluta dependência de Deus que nos ama e nos acompanha primeiro que tudo por causa das nossas limitações e das nossas dificuldades. Deus tem uma especial predilecção pelos mais fracos, faz a sua opção pelos mais carenciados. Por isso das nossas fraquezas ele nos faz fortes. Mais ainda, Deus “escolheu os que são fracos para confundir os fortes” (1Cor 1,27). Humildade: uma virtude tão humana como cristã!
Nestas circunstâncias, a fé ou confiança é absolutamente fundamental. Tive que ter fé em muita gente, na sua competência e no seu saber, mas sobretudo ter fé que eles não me iam dar o medicamento errado ou cortar algo desnecessário ou que, quando tocasse a campainha, me viriam ajudar e ajudar correctamente. Isto só veio confirmar que mesmo no dia a dia a fé é indispensável. Temos que acreditar que, por exemplo, o padeiro coze realmente farinha para fazer o pão ou o mecânico coloca a peça correcta quando faz a revisão do carro. Também esta fé é sacramento de uma outra fé mais profunda, a fé em Deus que nos criou, nos sustenta e nos ama. Fé: virtude tão humana como cristã!
Depois há a esperança. Esperança de que os tratamentos que me deram são os mais indicados, que me vão ajudar a recuperar a plenitude possível das minhas funções. Sem fé é muito difícil haver esperança, pois para esperar algo dos tratamentos preciso de acreditar em quem mos ministra. Também esta esperança é sacramento da esperança teológica: a esperança de alcançar o Reino de Deus definitivo pressupõe a fé no Deus libertador e salvador. Esperança: virtude tão humana como cristã!
Finalmente a caridade. A caridade, a que hoje se prefere chamar solidariedade (sinal de uma sociedade laica ou da desvalorização que os próprios cristãos fizeram da caridade-agapé?), foi praticada por quem me tratou qual bom samaritano. Mas aqui a caridade não foi apenas um exercício daqueles que me trataram directamente, mas uma virtude alargada que incluiu estes profissionais “próximos”, mas também toda uma cadeia de tantos desconhecidos que, ao longo da história, foi descobrindo medicamentos, instrumentos e técnicas de intervenção, meios de diagnósticos, etc.. Um dos exames que tive de fazer – o PET – incluía até o transporte de Espanha até Coimbra de uma substância radioactiva, ainda não produzida em Portugal. A caridade exerce-se de muitas maneiras conforme as circunstâncias, as necessidades de quem sofre e as capacidades de quem se dispõe a ser próximo para o outro. Também esta caridade-solidariedade (cf. SRS 40) é sacramento do grande amor, da caridade-solidariedade do nosso Deus que “amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único” (Jo 3,16). Caridade: virtude tão humana como cristã!
Estes dias no hospital foram certamente a melhor catequese que tive sobre as virtudes. Podia ainda incluir as quatro cardeais: a prudência, com a escolha dos justos meios para alcançar as minhas melhoras; a justiça, ao ser-me dado o que me era devido como cidadão, neste caso, a saúde ou a qualidade de vida; a fortaleza, sem a qual não teria sido fácil suportar a dor e acreditar que o nosso Deus é absolutamente justo e sempre quer o nosso bem; e até a temperança, enquanto assegura o domínio da vontade sobre os instintos e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados (Catecismo da Igreja Católica, 1804-1809)

2006-03-08

8 de Março

O simples facto de haver um "Dia da Mulher" e não haver um "Dia do Homem" é já um indicador claríssimo da mentalidade dominante nas nossas sociedades (tão democráticas!), da qual as mulheres não estão isentas de responsabilidade.
Mas para dar o meu contributo para este debate começo por citar a parte final do artigo do Joaquim Fidalgo no Público, onde mostra outra imagem claríssima desta mentalidade (mas agora com o apoio das próprias mulheres), referindo-se ao modelo televisivo dos comentários políticos na televisão, todos seguindo um mesmo modelo: "ao lado, uma mulher bonita, com bom ar e bom nome, emprestando ao quadro uma certa aura de credibilidade jornalística e criando uma ilusão de diálogo; no centro da acção, um homem a debitar verdades definitivas, qual oráculo ritual dos tempos modernos. Sem desprimor, parecem quase aquelas cenas do ilusionista mais a sua partenaire, aquela que lhe chega as coisas. A mulher faz, ou faz de conta que faz, as perguntas; o homem, obviamente, dá as respostas. Assim é que é...".
Esta menoridade da mulher é também evidente, ou ainda mais, na Igreja.
E, no entanto, é na Bíblia que certamente encontramos as passagens mais libertadoras da mulher. O comportamento de Jesus, que deveria servir de modelo a todos os seus discípulos, nos quais se incluem o Papa, os bispos, os padres e naturalmente os leigos. Mas, logo na primeira página, se afirma: "Criou Deus o ser humano à sua imagem; à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou" (Gn 1,27).
Mas logo uma exegese rabínica, patriarcal e antifeminista, que veio influenciar significativamente os pensadores e exegetas cristãos, inutilizou esta afirmação primeira e fundante, subordinando-a a pormenores secundários: a mulher deve estar subordinada ao homem porque foi criada em segundo lugar (Gn 2,22); a mulher é uma perigosa sedutora, pois até consegue seduzir os filhos dos deuses (Gn 6,29; a mulher é responsável pela introdução do pecado no mundo (Gn 3,6).
O contexto cultural mesopotâmico, de acordo com a tese de A.S. Vaz (A visão das origens em Génesis 2,4b-3,24. Coerência temática e unidade literária), indicaria exactamente o contrário. "Abrir os olhos" significa, no contexto sumério, a passagem da condição de incivilizado a civilizado. Sendo este gesto "civilizador" feito pela mulher, o papel da mulher dever ser reavaliado: "Em Gn 3,1-6 é a mulher que descobre as propriedades da 'árvore para adquirir o conhecimento' (3,6); e numa acção em favor da humanidade (da qual vai ser apresentada mãe: 3,20), consegue, por meio do motivo da 'comida' duma árvore violadora duma proibição divina, arrebatar o precioso 'conhecimento', fonte da cultura humana, embora, simultânea e ambiguamente, fonte das conotações negativas da vida e ocasião da morte. (...) Desta interpretação resulta claramente que as caracterizações exegéticas e espirituais negativas, que pintam a mulher como outra serpente, desencaminhadora e tentadora do homem para o pecado, causa essencial das desgraças humans, não ficam legitimadas pela compreensão mítica do texto e são infiéis ao seu ímpeto significante. Devem-se a uma exagese masculina, feita mais a partir de pressupostos culturais e sociais dos intérpretes do que a partir do fundo cultural do texto. Já se encontram nos Padres e percorrerão ininterruptamente a mentalidade cristã mediante grandes nomes de santos e doutores da Igreja, contribuindo para a visão negativa da mulher que invadiu a história humana até ao presente" (pp. 244-245).
E já agora, que significado deve atribuir-se às recentes palavras de Bento XVI, que, depois de recordar a incapacidade da Igreja para autorizar a ordenação das mulheres (!?), conclui: "Todavia é justo perguntar-se se, no serviço ministerial, apesar do facto de o Sacramento e o carisma serem o único binário em que se realiza a Igreja, não se poderá oferecer mais espaço, mais posições de responsabilidade às mulheres"?

2006-03-07

Uma Boa Notícia

Fui hoje à consulta e o médico confirmou o bom andamento do processo e informou-me de que as análises ao "bife" que me tinha tirado eram nehativas. Uf!!! Contudo, "porque estas células são muito traiçoeiras" (palavras suas) devemos estar atentos e fazer análises regularmente.
Mas para já tudo bem.
Uma Boa Nova
Deus seja louvado!
E obrigado a todos pelo apoio.

O desafio da Oração

Uma das questões que se me colocaram quando fui informado do problema sério de sáude que me atingiu foi o confronto com uma velha questão minha: a oração deve ser para pedir a Deus que, neste caso, me cure ou para me dar forças para aceitar a sua vontade?
Tão habituados estamos a fazer da oração um pedido que a tentação é logo pedir a Deus que nos cure, nos dê saúde e muita vida. Mas se não for essa a sua vontade ou o seu projecto a nosso respeito, como é?!
Como devemos rezar? O exemplo de Jesus sempre me marcou profundamente: "Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Contudo não se faça como eu quero, mas como tu queres". Foi este um dos temas da crónica que ontem mandei para o Correio de Coimbra e que aqui reproduzo na íntegra para os interessados:

Nesta estrada que me conduz, espero eu (ou estarei a cair no gravíssimo pecado de “presunção de salvação sem merecimento”, como ensinava o meu antigo catecismo?), à plenitude do Reino de Deus, tive um acidente que me obrigou a encostar às boxes.
Algum tempo depois de me ter sido tirado um quisto de gordura, vieram as análises dizer que era maligno. Tumor maligno é uma palavra tão banal como terrível pois logo a associamos a cancro e, consequentemente, a morte muito próxima antecedida de tratamentos muito agressivos.
Perante esta inesperada notícia ocorreram-me três palavras bíblicas.
A primeira é de Job: “Deus mo deu, Deus mo tirou. Que o Senhor seja louvado!” (2,21). Ao repetir esta palavra, fiquei feliz por não ter dito “Porquê a mim? Que mal fiz a Deus?”, como se eu merecesse um tratamento especial da parte de Deus ou como se estas coisas não acontecessem todos os dias a tanta gente. É que esta era uma das minhas dúvidas: “será que a minha fé resiste a uma contrariedade grave? Como “tratarei” Deus nessa situação?”. Por isso respirei fundo e dei graças a Deus, na presunção (outro pecado!?) de que talvez ame mesmo a Deus.
A segunda palavra tirei-a de S. Paulo e vou citá-la em latim dada a sua musicalidade: “bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi” (2Tim 4,7). Com uma “pequena” diferença. S. Paulo fazia uma afirmação; eu faço uma pergunta: Será que “combati o bom combate, percorri (bem) o meu caminho, guardei a fé”? Então lembrei-me das angústias da minha avó que tanto se lamentava: “Ai filha quando morrer vou de mãos vazias. Eu sou uma burrinha (entenda-se “não sei ler nem escrever”). O que será de mim!?”. Angústias que a minha mãe também repete, ela que tem uma fé tão grande, ela que me ensinou a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como sua imagem. Será que a proximidade da morte nos faz ver o tão pouco que fizemos em louvor e testemunho do nosso Deus? Quando eu digo a Deus que quero ser seu instrumento, mesmo “enferrujado” (apesar de tantas vezes procurar fugir a este propósito: cf. a “desconversa” de Moisés com Deus (Ex 3-4) na qual tanta vez me revejo) estou a traçar um programa de vida ou apenas a fazer um discurso falado sem consistência prática?
A terceira palavra vem do Jardim das Oliveiras: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,39). Estas palavras de Jesus colocaram-me sempre problemas existenciais profundos. O que devia eu rezar a Deus: “Cura-me” ou “Faça-se a tua vontade”? No primeiro momento, a tentação foi pedir a cura. Mas resisti e acabei por pedir a Deus que me desse forças para aceitar a sua vontade. É que a vontade de Deus podia não ser a minha cura. E pedir a cura pode gerar um “conflito de interesses”.
Mas este dilema coloca-me o problema que poderia chamar da “eficácia da oração”. Se Deus tem um projecto para mim (como para cada um de nós), eu devo pedir-lhe para me tirar esse projecto e substituí-lo pelo que mais me agrada ou devo aceitar incondicionalmente o projecto de Deus a meu respeito? O Evangelho e os Salmos estão cheios de oração de súplica: “Cura-me”, “Liberta-me dos meus inimigos”. O Evangelho mais que uma vez ensina “Pedi e recebereis” (Mt 7,7) e “com insistência” (Mc 5,10.23) quanto mais não seja para calar os importunos que insistem e voltam a insistir (Lc 11,8). Mas também vai dizendo ”Não é o que diz ‘Senhor, Senhor’ que entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7,21).
Por isso não pedi a Deus que me curasse, mas que me desse forças para aceitar sem revolta a sua vontade. A oração não tem que ser só petição, nem uma tentativa de alterar a vontade de Deus, menos ainda uma espécie de cunha que pode raiar o suborno: “Não tentes corrompê-lo com presentes, porque Ele não os receberá. Não te apoies num sacrifício injusto. Porque o Senhor é justo e não faz distinção de pessoas. " (Eclo 35, 11-12). Há certamente muitas formas de oração (e cada um ainda terá a sua), mas ela deve ser sobretudo uma conversa amorosa entre a criatura infinitamente carenciada e Deus infinitamente bondoso, um diálogo amoroso entre um filho e um Pai que tudo sabe e não irá certamente dar ao filho “uma pedra em vez de um pão” (Mt 7,9).
Só falei da minha experiência interior e dos primeiros momentos de um processo ainda em curso. Mas tudo teria sido muito mais difícil não fosse o apoio da minha mulher (“Fomos sempre tão felizes em tantos anos de casados. Não é uma grande graça que Deus nos fez?”), da minha filha (“aceitar a vontade de Deus é o melhor caminho para a paz interior”), do meu filho (“é proibido chorar ao pé do pai”), da minha mãe e da mãe que a minha mulher me deu (ambas “gente de muita fé” e de muito amor aos outros), dos meus irmãos, cunhados e sobrinhos (que tiveram gestos e palavras que na sua tocante solidariedade me mostraram o amor que eu sei que eles têm por mim, mesmo quando não o expressam de viva voz), dos muitos amigos que telefonaram, procuraram saber notícias, mandaram recados e até de desconhecidos que sempre deixavam na Net um “força, estamos contigo”. E também o carinho dos médicos, enfermeiros e todos os que estiveram ao meu serviço quando me encontrava absolutamente limitado e incapaz de me bastar.
Tempos de dor, tempos de solidariedade, tempos de testar a seriedade da nossa fé.
Louvado seja Deus por tanta coisa boa que me deu ao longo da minha vida e neste momento muito especial.

2006-03-03

Direito à blasfémia

Pulido Valente insurge-se contra as palavras do Cardeal patriarca que iriam no sentido de recusar o direito à blasfémia.
Como crente, a blasfémia aparece-me como uma grave calúnia dirigida contra alguém que muito amo e até que dá sentido à minha vida. Não quero discutir se é ou não legítimo o direito à blasfémia, até como expressão da liberdade de expressão. Mas fazendo o paralelismo com a calúnia, ocorre-me perguntar: será que em nome da liberdade de expressão posso caluniar, por exemplo, Pulido Valente ou a sua mãe ou outra pessoa que lhe seja muito querida?
Será que a liberdade de expressão permite tudo? Que espaço sobra para o respeito pelo outro, para o respeito para as mundividências do outro? Não corremos o risco de cair em fundamentalismoa ateus, que podem tornar-se tão graves e gravosos quanto os fundamentalismos religiosos?