divórcio ou casamento eterno?...

2006-08-27

A propósito dos Dez Mandamentos

Partindo do princípio de que o diálogo que desejo continuar com o caro amigo Peregrino (que nome tão lindo e tão significativo: todos somos peregrinos nesta vida, mas nem sempre nos lembramos disso) pode interessar a outros amigos, vou passar para esta janela mais alargada o meu comentário.

Gostaria de voltar às minhas "reservas" aos Dez Mandamentos, porque acho que tocamos no âmago do ser cristão.

Como já referi tirando a primeira tábua (a vertical), os outros mandamentos (com excepção do 4º por razões óbvias) são todos formulados na negativa, o que de si já diz muito.
E daqui a minha primeira observação: o cristão não pode ser alguém que se contente apenas em não fazer o mal nas suas várias vertentes (não matar, não cometer adultério, não roubar, não mentir, não..., não...) mas tem de ser alguém que faz o bem, que tem de se comprometer com a construção do bem. Aliás a resposta de Jesus ao jovem rico é muito clara: “se te queres salvar, cumpre os mandamentos; mas se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-o aos
pobres e terás um tesouro no céu; e vem e segue-me” (Mt 19,16-22; cf. também Mc 10,17-22; Lc 18,18-23).
Segunda observação: os mandamentos que referi não trazem nada de especificamente cristão. Qualquer sociedade minimamente organizada e respeitadora da dignidade humana tem de cumprir aqueles mandamentos. Qualquer pessoa, mesmo que seja ateia, certamente que “tem” de respeitar aqueles mandamentos
Daí a questão, que creio ter já colocado nalgum comentário anterior, mas que aqui vou repetir: o que é específico do cristão? Pelo que já referi, para mim, não é cumprir os dez mandamentos. Durante muitos anos me confrontei com esta questão e ao fim de algum tempo descobri três pistas no Sermão da Montanha:
1ª – Universalidade do amor: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem… Por que se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem o mesmo os pagãos (= os não cristãos, mas certamente pessoas honestas e sérias)?” (Mt 5, 44.46). Portanto, o cristão tem de ir para lá do que “os pagãos” fazem.
2ª – Confiança na Providência: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, dizendo que comeremos, que beberemos ou que vestiremos. Os pagãos, esses é que se afadigam com essas coisas; porém o vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso” (Mt 6,31-32). O cristão é o que acredita que Deus é o Senhor da história e age coerentemente com tal convicção
3ª – Ir para lá do que é exigido pelas leis humanas que regulam a nossa sociedade: “Se alguém te quiser tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a andar um milha caminha duas com ele” (Mt 5-40-41). Esta passagem provocatória parece-me apontar para o seguinte: Deves ser capaz de ir além do que a lei te obriga e regeres-te pelas leis da caridade, da solidariedade e da fraternidade nas relações com os outros. A lei não te pode obrigar a amar os outros, mas tu deves amá-los, mesmo que sejam teus inimigos (1ª pista) e em nome desse amor fazer coisas que os outros não fazem habitualmente.
Por isso, acho a chave de leitura dos Dez Mandamentos tão pobre comparada com a do Sermão da Montanha! Ou por outras palavras se não passarmos da lógica (casuística) dos Dez Mandamentos para a lógica (estruturante) do Sermão da Montanha pouco nos resta de cristãos. Digo eu!...
Boa noite, um grande abraço para todos e até daqui a oito ou dez dias, pois amanhã vou para o hospital fazer um novo tratamento e espero voltar no fim de semana, se tudo correr bem. Peço as vossas orações e a vossa amizade para poder suportar com amor e paciência estes próximos dias.
A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre conosco.

2006-08-25

CV (17) Identidade

Num destes domingos que fui à missa à minha paróquia cruzei-me com várias pessoas conhecidas.
A primeira, que falava com uma amiga enquanto se dirigia para a porta, olhou de relance e continuou. Ainda tentei ir atrás dela, mas neste momento, como a minha preparação física está um pouco abaixo da do Obikwelu, não consegui apanhá-la.
Duas outras minhas amigas estavam a conversar no meio da Igreja, passei por elas, olharam-me mas não me reconheceram. Só quando lhe disse “Olá, estão boas?” se firmaram bem (como se dizia antigamente na minha terra), certamente para confirmar o que a minha voz inconfundível anunciava. E lá estivemos os três numa agradável conversa.
Só recordo estes episódios, pois ainda hoje quando me olho ao espelho não reconheço a minha cara como minha: sem cabelo, os “longos” cabelos que a minha mulher tanto queria que em cortasse; as barbas que mal arranham; uns óculos enormes que parecem maiores que a cara. E eu, que tanto gostava daqueles óculos, que os amigo(a)s mais próximo(a)s, preocupado(a)s com o meu visual, tanto pressionavam para mudar, sou forçado a reconhecer que me ficam mesmo mal!!! Aliás já fui tratar de arranjar outros e verifiquei que as fábricas que produziam tal modelo já faliram em meados dos anos noventa!
Depois há o meu próprio cheiro: este “cheiro a mim” já não é “a mim”; é a outra coisa ou pessoa que não eu. Ainda bem que o homo sapiens não marca o seu território pelo cheiro, se não seria marginalizado e não teria lugar no bando, pois as marcações estariam perfeitamente descaracterizadas.
E a propósito de cheiros, a minha hipersensibilidade fez-me saber que o cheiro da roupa lavada não é tão agradável como era antes, que o ar que respiramos cheira mal, que os fumadores crónicos afinal ainda cheiram a tabaco que tresandam. Salvou-se o meu velho desodorizante – Old Spice – que continua agradável.
Está em estudo saber se estas transformações são apenas físicas ou se o espiritual também está a ser afectado. Até ver ainda não dei por nada de especial. Mas, nestas coisas, é bom não esquecer a história do tipo nervoso que começou por roer as unhas e pouco a pouco se foi convertendo em canibal.

CV (16) Bloqueios

Já referi a dificuldade que tinha em levar a mão com comida à boca. Sentia um verdadeiro bloqueio: mandava a mão avançar, mas ela ficava bloqueada e não conseguia arrastá-la fisicamente.
Lembro-me de que há muito anos atrás senti um bloqueio doutro tipo, mas que na altura muito me deu que pensar.
Foi depois do 25 de Abril, quando apareceu o filme “O Império dos Sentidos”. O que ia lendo levou-me a interessar-me pelo filme e a achar que devia ir vê-lo, mas a sua temática contundia com uma consciência escrupulosa marcada por uma educação religiosa clássica. Ainda me recordo de um retiro que fiz no Seminário onde o pregador, num italiano aportuguesado, repetia quase de hora a hora “quem não é casto vai ao Inferno”. Mas voltando ao filme, tive que fazer várias tentativas para me forçar a ir para a bicha e comprar o bilhete. Foi uma verdadeira violência física. Mas finalmente lá consegui.
Perante tal situação, perguntei-me: “Como é possível que a educação cristã tenha sido capaz de criar bloqueios na defesa da “castidade”, mas não tenha criado qualquer bloqueio na defesa da “justiça” e da “caridade social”, e que os grandes pecados mortais estejam ligados à esfera do sexual e não às violações da justiça e da caridade?
Alguém, muitos alguéns, ao longo da história, foram transformando o cristianismo, uma fé estruturada no amor, numa religião do anti-sexo, manipulando o próprio Evangelho.
Ainda hoje há vários vestígios dessa mentalidade. A título de exemplo, posso referir o golpe de rins que o Catecismo da Igreja Católica faz nos nº 2517 a 2533. Partindo da sexta bem-aventurança “Felizes os puros de coração porque verão a Deus” (2518), rapidamente abandona essa linha de reflexão, para naquilo que os gramáticos chamam um anacluto, mudar bruscamente de rumo e passar os restantes números a falar do 9º mandamento: a virtude e dom da castidade, a pureza do olhar, o pudor, a purificação do ambiente social que implica o respeito pelo recato, a permissividade dos costumes. Só não chamo a isto manipulação da Palavra de Deus por pudor; ficar-me-ei por “uma leitura ideológica da Palavra de Deus”.
Isto tem a ver, parece-me, com a chave de fundo. E volto a perguntar: Como é possível que, à entrada do terceiro milénio, fazer um Catecismo estruturado (e refiro-me à III Parte) nos mandamentos, uma lógica do Antigo Testamento e dos povos semitas de há quatro ou cinco milénios, em detrimento da lógica das Bem-avanturanças que são o elemento estruturante da mensagem de Jesus? Diria mais, enquanto as Bem-aventuranças exigem um estilo de vida “à moda” de Jesus Cristo, pois partem da fé na Pessoa de Jesus Cristo, os dez Mandamentos apontam para uma religião casuística, de doutrinas, de princípios, de ritos, onde uma opção fundamental de vida não é exigida nem sequer há muito de especificamente cristão, tirando a primeira tábua.

CV(15) Anti-Tântalo

Nesta semana de tratamento que passei no hospital, o principal sintoma foi uma sensação generalizada de enjoo.
Esta situação não é propriamente dolorosa mas muito desagradável: não apetece fazer nada de nada. Não é só a questão da comida, mas de tudo o resto: sair da cama, falar com o vizinho do lado, ler o jornal. Tudo é complicado. E tudo tem de ser decidido com grande esforço.
Mas o problema da alimentação é paradigmático. “No estudo que fiz”, como dizia um pedreiro que trouxe lá em casa, fiquei com a sensação de que o processo de alimentação fica fragmentado e dissociado nas suas várias etapas. Senti cada uma das várias etapas, que normalmente fazemos sem dar por nada, perderem a sequência causal. Primeiro a sensação de fome, que não aparece. Mais, mal sentia vir o carrinho da comida ao fundo do corredor logo me vinha a vontade de vomitar, sensação potenciada pelo crescente cheiro da comida e, imagine-se, pelo próprio tilintar dos talheres. Depois levar a comida à boca: aqui senti um verdadeiro bloqueio (e noutro capítulo irei falar de bloqueios) e desejava que estivesse alguém comigo na hora de comer para me forçar a levar a comida à boca. Introduzida a comida na boca, seguia-se mais uma decisão: a de mastigar; lá se ia mastigando, mas a comida enrolava-se na boca, como se “não soubesse” que devia ser normalmente engolida depois de ensalivada. Daqui que a decisão seguinte fosse a de engolir: às vezes passava, outras vezes voltava para trás. A taça com um plástico é uma oportuna companhia nestes momentos.
Além disso, vivia sonhos ou pesadelos, em que sempre apareciam pratos de comida que me eram trazidos em tabuleiros e que alguém me aproximava da boca. E eu tentava virar a cara e fechar os olhos, mas a comida ali estava com cheiros intensos e o estômago em crescentes golfadas de revolta. E isto, uma vez, duas vezes, n vezes, durante todo o sono, mesmo depois de ter sido interrompido várias vezes para utilização do urinol. Foi um verdadeiro suplício anti-Tântalo.
Com este paleio todo parece que passei um verdadeiro tormento. Algumas dificuldades senti, mas houve colegas que sofreram bem mais: um ficou profundamente perturbado e afastado deste mundo; outro além disso até tentou arrancar o catéter.
No entanto, naqueles momentos a serpente sussurrava-me ao ouvido aquele mal dito (mal dito: duas palavras) ditado popular: “Com o mal dos outros posso eu bem” e o sussurro era tão melífluo que só depois de algum tempo reparei que se tratava de mais uma machadada, e bem profunda, na solidariedade com os meus colegas de camarata e de caminhada.

2006-08-13

A minha quarta internacionalização

Um amigo meu, antigo director da revista Além-Mar, foi para as Filipinas dirigir uma revista do mesmo tipo, mas em inglês. Um destes dias enviou-me o número de Julho passado, no qual reproduziu um dos meus artigos publicados na revista portuguesa. Por mera curiosidade, aqui fica a referência: artigo no World Mission. Explicação prévia: trata-se da quarta internacionalização, porque, nos meus tempos áureos de Química Teórica, já publicara três (ou seriam quatro?) artigos em revistas da especialidade.

2006-08-06

CV(14) Dolce Vita

Esta paragem na minha vida deu-me para olhar um bocadinho para trás.
E verifiquei que tenho tido uma vida cheia de coisas boas. Não me recordo de grandes difculdades. Lembro-me do quanto me custou sair de casa aos 10 anos e as saudades que me faziam andar a chorar uma semana antes e uma semana depois de sair de casa. Poderia referir as várias dificuldades derivadas do pouco dinheiro que os meus pais dispunham para trazer os quatro filhos a estudar. Lembro o meu crónico tumor do ouvido esquerdo que me acarretava períodos muito doloroso. Lembro a dificuldade de termos filhos, o mais novo dos quais surgiu já eu tinha quase 5o anos: uma idade imprópria para ser pai!
Mas grandes dramas nunca tive.
E se recordo isto é porque acho que a minha "vida boa" me deixa mal preparado para a situção que agora sou forçado a viver. Não ter de afrontar acontecimentos dramáticos acaba por nos amolecer o espírito para as situações difíceis. Aliás este é certamente um dos principais dramas da educação hoje. Especialmente os pais estamos muito preocupados em "desviar as pedras" do caminho dos nossos filhos e depois eles levam tudo numa boa. A própria escola, certamente com amelhor das intenções mas com péssimos resultados, introduziu a ideia do "estudar brincando", como se estudar fosse uma brincadeira que, como qualquer brincadeira, só se joga enquanto agrada.
Mas voltando a mim. Não só tenho tido uma vida sem grandes problemas, como agora familiares e amigos estão continaumente a apaparicar-me: mal me deixam fazer qualquer coisa e assim corro o risco de ficar mais debilitado e menos autónomo. Eu sei que é por amor, mas convém não exagerar.
Estou a ver a minha vizinha (ainda eu não suspeitava do que me ia acontecer) chegar do tratmento do IPO. "Então como veio?", perguntava-lhe. "Vim de autocarro; os meus filhos não puderam ir buscar-me". "Então e agora, vai descansar...", insistia eu. "Não, senhor Zé, tenho de ir aos serviços pagar a conta da luz que é hoje o último dia; tinha a carta no correio que fui agora ver". E lá ia ela, acabada de chegar do hospital a caminho da Baixa para pagar a luz.
E ali andava ela, mulher habituada a enfrentar as dificuldades da vida e a vencê-las, quando tinha as forças em pleno ou mesmo quando as forças lhe faltavam, mas lhe faltava também alguém que lhas resolvesse por ela.
Lembro-me que quando fiz os 20 anos estive quase para embarcar para a guerra. Ainda hoje me interrogo: "O que seria de mim, com a minha incapacidade moral de matar alguém ou de o reconhecer qualquer outro como inimigo (não somos todos filhos do mesmo Pai que nos criou, a cada um de nós, à sua imagem?)?". Mas o que sabemos nós do nosso comportamento em situações de stress violento e em circunstâncias que ultrapassam os limites da resistência humana?
Bom, já que a vida me preparou mal para este momento, ao menos que eu seja capaz de, embora sexagenário, encontrar reservas de resistência e de capacidade de luta que a vida nunca antes me exigira e cujas reservas eu nem sei em que ponto estão!

CV (13) Gestão do tempo

Uma dificuldade que ainda não consegui resolver de todo é a da gestão do meu tempo agora: passar dez dias no hospital, por entre tratamentos, enjoos e incomodidades próprias de quem não tem muitos espaços disponíveis, não foi fácil a primeira vez: levei uns livros (da Bíblia resolvi reler Jeremias, um profeta que me apaixona pelas suas dificuldades, as perseguições que sofreu, os seus diálogos e até acusações a Deus, as suas exigências de que Deus o deixe em paz), levei um portátil que entretanto se fanou, fui conversando com os membros da minha nova família. Mas chegava ao fim do dia com a sensação difusa do "diem perdidi".
Devo dizer que esta experiência já não era nova para mim.
Quando há já uns quinze anos me reformei senti uma sensação semelhante. De repente faltou-me aquela "rotina": sair de casa, ir para a Universidade, dar dados ao computador para ele refazer os cálculos, aguardar os resultados, ler artigos da especialidade ou de cultura geral, analisar os dados calculados e ver da sua consistência, partilhar com os colegas uma pausa para café onde se falava do trabalho de cada um mas também dos principais acontecimentos nacionais e internacionais e até do perigo de ficarmos prisioneiros da nossa "janela" científica e da necessidade de termos, a malta de química teórica, entre nós um epistemologista ou alguém afim. Até me fizeram falta os quinze minutos que demorava de minha casa até ao Departamento de Química: momentos extremamente fecundos, nos quais aprofundava os artigos que ia escrever, as conferências que iria dar, o avanço da minha investigação.
De repente, tudo acabou. E se nos primeiros dias isso até foi agradável essa sensação de liberdade ou de libertação da ditadura do relógio, pouco a pouco fui-me sentindo um marginalizado da sociedade (os espaços de partilha com os amigos e até com a ciêcia, minha velha companheira, iam escasseando), um não produtivo (já nem sequer tirava números do computador e deixara de escrever artigos científicos).
Na altura houve dois acontecimentos que me ajudaram a recuperar o equilíbrio interior: durante dois ou três anos presidi à preparação e organização do Congresso de Leigos da Diocese de Coimbra e passados mais un dois anos à organizaçõa das Semanas Sociais de Coimbra subordinadas ao tema Família e Solidariedade. Dado que estes dois eventos exigiram um horário sem horas, acabei por perder a angústia da falta de rotina profissional. Posteriormente acabei por me organizar distribuindo o meu tempo por comissões, conferências, artigos de jornais e até a escrita de um livro de introdução à DSI que me ocupou durante dois anos.
Mas percebi o que deve ser angustiante para uma pessoa que fica (obrigatoriamente) desempregado: a sensação de inutilidade (o que faço eu?), a angústia de nada produzir (como se fosse um assumido parasita da sociedade), a vergonha de encarar os outros sobretudo os filhos (aqui sempre em casa sem fazer nada e nós a precisarmos de algum...), o receio de ser marginalizado (primeiro ainda consta dos papéis do desemprego; depois quando acabar o subsídio o nome desaparece dos documentos oficiais restando apenas um número na estatística dos desempregados; finalmente até daí sai e quase que deixa de existir oficialmente).
Agora, vou ver se resolvo o meu novo desregulamento: felizmente que não me falta que fazer; basta só estimular a vontade para trabalhar.

CV(12) - Cansaço

Depois de uma semana no hospital a fazer o primeiro tratamento e a hidratar, foi-me dito que o pico das consequências aconteceria cerca de dez dias depois, sendo a principal manifestação, o cansaço.
Começou por ser uma ligeira vontade de não me mexer muito, de ficar deitado, de parar a meio de uma página de leitura, de não vir ao blog. Parecia-me mais um cansaço psicológico, a que se acrescentava também um certo lassidão física. Por aqui andava em casa sempre receoso de uma qualquer corrente de ar. Andei nisto algum tempo até que decidi que não podia ficar eternamente em casa curtindo esta meia bebedeira.
Então fui dar uma volta às catedrais do nosso tempo: um dia fui ao Continente, onde dei uma vista de olhos aos livros e a outros produtos; outro dia fui ao Dolce Vita e assim fui saindo. E verificava que não me sentia mais cansado fisicamente do que quando ficava em casa.
Até que cheguei à conclusão que estava a ficar cansado de estar cansado. Era, pois, altura de reagir a este canto das sereias que melifluamente se ia insinuando no meu dia a dia e o estava a tornar inútil e cansativo. Assim comecei a trabalhar com mais afinco no computador, a sair de casa, a ir comprar o jornal.
Resumindo: não sentia dores, mas alguma coisa em mim me acenava com o parar, o não fazer nada, o aceitar este estado de coisas como se fosse perigoso contrariar a vontade do corpo ou do espírito.
Agora estou quase bem. Mas amanhã irei começar novo ciclo e espero que a experiência deste primeiro tratamento me ajude a não cair nestas tentações novas com que nunca me tinha deparado.