divórcio ou casamento eterno?...

2006-10-20

CV (26) O irmão sofrimento (3)

A propósito dos comentários ao "Irmão sofrimento (2)", sobretudo as citações da Nani, eu gostaria de fazer mais uma citação. Antes, porém, não posso deixar de registar a nossa dificuldade em falar deste tema pela facilidade com que nos refugiamos nas palavras de outros, como se nada tivéssemos para dizer...
De qualquer maneira parece-me que esta citação enquadra e projecta alguma luz sobre o sofrimento de Cristo e sobre a lição a tirar daí. Jesus sofre a paixão e a morte precisamente porque lutou contra o mal e o sofrimento da sociedade em que viveu, porque pôs em causa os poderes que acabam por ser os primeiros responsáveis pelos sofrimentos da sociedade (cf. Jo 11,45-50). Teologicamente falando, não havia razão nenhuma para que Jesus morresse numa cruz para nos salvar. Poderia ter-nos salvo de muitas outras maneiras. Mas a história é feita deste confronto dialéctico entre a vontade de Deus e a vontade dos homens, que Ele quis que fossem autónomos e livres.
Ora a sua morte, aparentemente poderia signifcar o fracasso desta luta contra o mal na sociedade. Contudo, a ressurreição é a prova de que não fracassou e que venceu o mal apesar da sua morte, a morte mais ignominiosa do seu tempo.
A citação é adaptada do livro de J. Renau, Desafiados por la realidad:

É por isso que todos os gestos libertadores de Jesus só podem ser entendidos no seu real e profundo significado se forem vistos e articulados com o mistério pascal. Sem esta referência, Jesus não passaria de mais um dos grandes sábios, profetas e reformadores. Por isso, o facto pascal no seu duplo momento - morte de Jesus às mãos dos poderes do tempo e ressurreição de Jesus por obra do poder de Deus - tem um significado social de grande transcendência.
No primeiro momento – o aparente fracasso da morte – Jesus cai vítima dos poderes político, económico, oligárquico e religioso, porque a sua pessoa e a sua doutrina representam um ataque frontal, embora feito a partir da bondade e da máxima virtude, contra as bases de exploração do povo. Estes poderes vêem ameaçado o "sistema" de que vivem e logicamente entendem que a única saída é a eliminação física de Jesus e o desmantelamento do seu frágil grupo. Trata-se de uma realidade constante na história. E também, uma vez mais, se cumpre o desígnio do poder e Jesus cai vítima do sistema. Esta solução tão radical dá-nos conta de como deve ter sido profunda a mudança, a todos os níveis, que significou Jesus.
Contudo, o segundo momento – a ressurreição da consagração – representa a Justiça e a opção de Deus pela causa de Jesus. A ressurreição não foi apenas uma vitória pessoal do Crucificado, que por acção de Deus vive novamente unido já de forma definitiva ao Pai, mas foi a confirmação de Deus à sua causa, ao seu estilo, ao seu modo de vida e à sua mensagem de libertação. Ao ressuscitá-lo Deus deu razão a Jesus e desautorizou os poderes que lhe tinham tirado a vida. Daqui em diante, Jesus já não é mais um entre os humanos que lutam pela justiça e que estão ao lado dos pobres, mas é o Grande Sinal de Deus por estas causas. Os seguidores de Jesus, os seus discípulos, na medida em que vão entrando na participação real do Reino de Deus, irão tomando necessariamente a mesma opção do Mestre. Um cristianismo à margem destas opções de Jesus será sempre inautêntico, ficará realmente separado do seu Fundador.

Défice ecológico

A propósito da notícia que não vi passar em nenhum telejornal e apenas li no fundo de uma página interor de um jornal diário - a Terra está em saldo negativo ecológico desde o dia 9 de Outubro, isto é, já gastámos nos primeiros nove meses o que a Terra tem para nos dar para o ano inteiro - escrevi um comentário para a revista Além-Mar que gostaria de partilhar convosco. Aí vai:

No passado 9 de Outubro, sem darmos por isso, aconteceu um facto demasiado perigoso. Nesse dia esgotámos os recursos que a Terra nos pode dar para o ano todo. É como se alguém que tivesse mil euros para gastar anualmente, os tivesse gasto até Outubro. Ora o ritmo a que estamos a delapidar a nossa conta bancária ecológica está a tornar-se : em 1987, acabou a 19 de Dezembro; em 1995, a 21 de Novembro e este ano a 9 de Outubro.
Este saldo negativo ecológico não se vê, pois a terra aí está tão grande e tão sólida; o petróleo, apesar do preço, produz-se aos milhões de barris por dia; o sol, o vento ou as marés “oferecem” energias renováveis. No entanto, já começámos a tomar consciência de que nem tudo está bem: os governantes penalizam as poluições e o cidadão comum já percebeu que afinal a Terra não é tão grande nem tão rica como se pensava. Apesar disso, é urgente continuar a pressionar a opinião pública para que adquira uma verdadeira consciência ecológica e se comporte de modo a evitar as consequências desastrosas que já começam a fazer-se sentir. O principal perigo é que ainda não percebemos que estes efeitos tão grandiosos resultam dos minúsculos gestos que cada um de nós faz no seu dia a dia. É certo que cada um dá um contributo muito pequeno. Contudo, esses pequenos nadas são multiplicados por milhões, dando um resultado final muito significativo. Ora é esta operação de multiplicar por milhões que ainda não interiorizámos.
Mas não basta pensar em termos de ecologia física ou ambiental, a que deteriora a natureza. É preciso ir mais longe. Já há 15 anos, João Paulo II falava de ecologia social e ecologia humana (Centesimus annus, 37-39), dimensões que temos de ter em conta, pois como se lamentava o Papa, “empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana“ (38).
A ecologia social requer uma nova consciência da solidariedade, que obrigue cada país a aceitar as responsabilidades próprias nas causas e na solução da crise ecológica e obrigue cada geração a reconhecer que os que vierem depois de nós têm o direito inalienável de encontrar uma Terra habitável. Aqui deparamo-nos com o obstáculo dos nossos egoísmos individuais, grupais, nacionais, continentais e generacionais: teremos de aprender a pensar nos outros, próximos ou distantes, no espaço mas também no tempo. E o primeiro exercício, já tão discutido e tão programado, deve ser a erradicação da pobreza.
A ecologia humana, por outro lado, implica combater todas as ameaças contra a vida no seio da família ou da sociedade, implementar para todos os serviços básicos vitais, educar para um consumo equilibrado e um comportamento responsável mas sobretudo para uma “cultura da vida” na qual todos e cada um tenham vida e a tenham em abundância.
Precisamos para isso, que o lobo do Norte conviva com o cordeiro do Sul e o leão do Oeste coma ao lado do urso do Leste (cf. Is 11,3-8, que acrescenta: “Não julgará pelas aparências, mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra”). Precisamos que as armas de destruição maciça, instrumentos de morte, se convertam em arados, instrumentos do pão, e em computadores, instrumentos de cultura (cf Is 2,4, que acrescenta: “uma nação não levantará a espada contra outra”).
Sonhos de um louco visionário? Para uns não, passará de uma utopia, porque ainda não existe em nenhum lugar da terra. Para mim e para outros, já está presente em muitos pequenos gestos de solidariedade, fermento e embrião do Reino de Deus, no qual “voltaremos a encontrar, iluminados e transfigurados, os valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, esses frutos excelentes da nossa natureza e do nosso trabalho, depois de os termos espalhados pela terra segundo o mandamento do Senhor” (GS 39).É que a nossa missão não é apenas pregar o Reino de Deus mas de, testemunhando-o, o ir construindo. Porque, embora de modo misterioso, o Reino de Deus é não só um dom mas também uma conquista.

2006-10-09

CV (25) Irmão sofrimento 2

Dizia eu que acusar Deus, sem mais, pode ser uma maneira cómoda de fugir ao problema.
O problema é tão grave que a Bíblia sentiu necessidade de o abordar dedicando-lhe o livro de Job, no qual desenvolve vários debates entre Job, os seus amigos e Deus.
Os amigos justificam a situação porque Job é pecador: a velha teoria de que a doença e o sofrimento são castigo pelo pecado próprio.
Job declara-se inocente, recusa esta lógica do sofrimento / castigo do pecado e grita a Deus por Deus, apela a Deus contra Deus, o Deus castigador dos seus amigos: “Que Deus me pese na balança justa e reconhecerá a minha inocência. Oxalá eu tivesse quem me ouvisse!” . Em seguida, faz uma longa enumeração de factos em sua defesa e termina: “Eis o meu depoimento assinado por mim. Que o Omnipotente me responda!” (31,6.35). Invoca um Redentor que faça justiça e saia em defesa da verdade. Job, portanto, recusa a ideia tradicional da retribuição que premeia os bons e castiga os maus.
A resposta de Deus é um longo discurso sobre os mistérios do Universo e sobre a nossa enorme ignorância (38-39): “Onde estavas quando lancei os fundamentos da Terra? Diz-mo se a tua inteligência dá para tanto. Sabes quem determinou as suas dimensões? Quem estendeu a régua sobre ela? Sabes onde repousam as suas bases?... Quem pôs diques ao mar? ... Fala se sabes tudo isto!” (38,4-6.8.18) E Deus continua: “Quem abre o caminho aos aguaceiros e a rota aos trovões? ... Quem gera as gotas de orvalho? De que seio sai o gelo?... És tu quem manda sair, a seu tempo, as constelações e conduzes a Ursa Maior com os seus filhinhos?... És tu que dás força aos cavalos e lhes revestes o pescoço com as crinas? (38,25.28-29.32; 39.19). E de novo o interpela: “Aquele que critica o Todo poderoso quererá discutir? O que fazia correcções a Deus que responde a isto?” (40,2).
Portanto, numa palavra, o problema do mal é um MISTÉRIO, como o é a própria criação do universo. O livro não explica o mistério, mas conclui que se Deus é infinitamente sábio e bondoso com a criação, devemos, mesmo sem perceber, acreditar nele, confiar nele, sentir-se amado por Ele e amá-lo a Ele. Não se trata tanto de falar de Deus, mas de falar com Deus, senti-lo, experimentá-lo, amá-lo, confiar nele. Até porque o próprio Deus é também ele um grande mistério, que não entendemos, pois tem uma lógica diferente da nossa e sobretudo nunca é um Deus à medida dos nossos desejos, dos nossos critérios, da nossa lógica.
Dizer que é um mistério não é resposta que nos satisfaça humanamente, até porque somos tão racionalistas, tão matemáticos, tão quadrados. Mas, mesmo que Deus nos revelasse o mistério do mal, ainda iríamos argumentar "Mas quem poderá anular o mal já praticado, acontecido e sofrido?", sempre tentados a subscrever as palavras de Ivan Karamazov.
Mas a resposta bíblica não termina no livro de Job; acontece com o Deus de Jesus Cristo, o crucificado-ressuscitado. Tal como Job, também Jesus gritou na Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt, 27,46). Foi em Jesus, fiel à sua missão até ao fim, que Deus se revelou como amor. Deus é amor. Para o crente, em Jesus, Deus confronta-se com a negatividade máxima – morte na cruz – e vence-a, com a positividade máxima - a ressurreição. O mal não vence. O mal é derrotado. De agora em diante, quem acredita em Jesus Cristo não é poupado ao sofrimento, à dor, à malvadez, à morte, a tudo o que traz a nossa finitude, mas, na esperança, sabe que a existência não é absurda porque conta com a solidariedade de Deus, de um Deus que é fiel Às suas promessas em todas as circunstâncias .

Mas antes de passar a uma proposta concreta, quero recordar que esta questão existencial põe-se não só aos crentes mas também aos não crentes: “Estamos condenados ao desespero e à resignação? O absurdo tem a última palavra?”
É muito fácil bater em Deus. Penso que foi Epicuro que já colocava a questão em termos que resume os argumentos que se foram alinhando ao longo da história contra Deus:
- Ou Deus quer (tirar o mal do mundo) e não pode: então não é omnipotente;
- ou pode mas não quer: então não nos ama;
- ou não pode e não quer: então nem é omnipotente nem é bom;
- ou pode e quer: então porque existe o mal?
Mas, partamos do princípio que Deus não existe. Como explica o não crente a existência do mal?
Também para ele é um mistério, a menos que tenha Deus (cuja existência não aceita) para acusar. Mais, o não crente "até" está menos "protegido" que o crente que vive na fé e na esperança (ou "na ilusão" dirá o não crente) que há uma solução para o mal, uma solução trans-histórica onde o mal não tem lugar.

Por isso acho, e aí vai a minha proposta, que devemos dar as mãos, crentes e não crentes, e no intervalo dos nossos debates existenciais, mas também muito académicos, arranjar espaço não para decsobrir a origem do mal, mas para combater as suas múltiplas manifestações.
Não sabemos donde vem o mal, mas sabemos por que morrem de fome milhões de pessoas todos os anos, pois bastaria tomar uma bica a menos cada dia para os salvar com esses míseros cêntimos.
Não sabemos de onde vem o mal, mas sabemos por que morrem por ano milhões de pessoas que não tomaram uma vacina que custa tanto como o jornal diário que compramos durante uma semana.
Curiosamente comecei a ler um livro que me dá uma ajuda a esta proposta. Ainda só li meia dúzia de páginas, mas cito duas ou três frases. O livro chama-se "O Mal no pensamento moderno" de Susan Neiman, que cobre o arco de tempo que vai do terramoto de Lisboa a Auschwitz:
- "O problema do mal é a raiz a partir da qual a filosofia moderna emerge... A filosofia moderna está tão impregnada do problema do mal que a questão não é onde começar, mas onde parar" (p. 27).
- "O meu objectivo é utilizar as diferentes respostas ao problema do mal como meio para perceber aquilo em que nos tornámos nos três séculos que nos separam dos primórdios do iluminiusmo" (p. 24).
- "Se há um problema do mal gerado por Lisboa (terramoto), ele apenas pode ter lugar para os ortodoxos: como pode Deus permitir que a ordem natural cause sofrimento inocente? O problema do mal colocado por Auschwitch surge-nos de forma inteiramente distinta: como podem os seres humanos comportar-se de uma forma que viola tão meticulosamente tanto as normas da razão como as do bom senso?" (p. 18).
Vamos, pois, todos transformar o mundo de modo a torná-lo mais justo, mais solidário e mais humano e veremos como tanto sofrimento e tanto mal deixará de existir.
Este compromisso é pedido:
- tanto pelos doutrinadores marxistas: "Os filósofos não têm feito mais do que interpretar de diversos modos o mundo; mas do que se trata é de o transformar" (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, 11ª e última , in C. Marx, F. Engels. Obras escolhidas, Ed. Progreso, Moscovo 1973, Tomo I, p. 10);
- como pelos bispos reunidos no Sínodo de 1971: " A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão" (JM 6).

Será que estes apelos não são suficientemente prementes para todos darmos as mãos na luta contra uma sociedade geradora de tanto mal e de tanto sofrimento!?

CV (24) O irmão sofrimento 1

Aquele meu muito grande amigo deixou-me em grandes dificuldades para defender o Deus que eu pensava que amava muito mas que não soube defender (mas será que Deus precisa que eu o defenda?).
Eu lá fui argumentando que o sofrimento (ou o mal em geral) não vem de Deus. Umas vezes, vem das nossas limitações (físicas, sociais, espirituais, metafísicas); outras, suge de calamidades naturais que resultam a maior parte das vezes das incúrias dos governantes (por exemplo, Nova Orleãs) ou dos nossos vícios consumistas (buraco do ozone, aquecimento global com as perturbações das cheias, das secas, das estações baralhadas,... ) .
E sempre que nós fazemos disparates ou nos sucede uma situação grave não podemos exigir a Deus que venha fazer um milagrezinho para suspender as leis da natureza e me salvar, até porque por Deus quis criar o mundo, com leis autónomas e coerentes, e o homem, como ser responsável e não como marionete. E estas qualidades têm os seus custos...
Mas não quis falar ao meu amigo de um argumento que pessoas, muito mais piedosas e espirituais que eu, utilizam tanta vez: Deus faz sofrer especialmente aqueles que ama. Esta afirmação parece-me uma maneira subtil de recuperar o "Deus dos exércitos" do Antigo Testamente, o que mandava matar os inimigos a fio de espada e destruir as cidades conquistadas, numa versão primitiva de guerra santa, ou que, com a sua voz omnipotente, destroçava os cedros do Líbano (o susto que me causava antigamente a leitura do Salmo 29: "A voz do Senhor é poderosa. A voz do Senhor derruba os cedros do Líbano e faz saltar o Líbano como um novilho. A voz do Senhor abala o deserto e retorce os carvalhos e despoja os bosques das suas árvores").
Eu acredito no Deus do Novo Testamento, no Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que espera pacientemente pelo regresso do filho pródigo e festeja sem o recriminar; que toma a defesa da mulher adúltera; que é amor, puro amor; que apenas quer a nossa felicidade e não se compraz no nosso sofrimento; que quer que sejamos felizes já aqui e agora neste mundo; que "não dá uma pedra em vez de um pão, nem uma serpente em vez de um peixe" (cf. Mt 7,9-11). Deus não nos manda castigos nem sofrimentos como sinal do seu muito amor por nós. Isso seria próprio de um simulacro de um deus com características sádicas. O nosso Deus não se alimenta de sangue ("Estou farto do holocausto de carneiros e da gordura de bezerros. Não me agrada o sangue dos vitelos, dos cordeiros nem dos bodes... " (Is 1, 1ss)) mas de amor. Em vez desta ideia, aceito, isso sim, outra perspectiva e dou a palavra a F.M. Fresneda, num dos mais recentes ensaios sobre "Jesús de Nazareth": "Parece que forma parte de la historia de la salvación que aquellos a los que Dios ama com más intensidad y los envía a una missión importante estén más expostos a los ataques del mal" (p. 220). EStão mais expostos, não porque Deus os ame mais, mas porque o cumprimento da missão que Deus lhes deu, que sempre envolverá a luta pela justiça, depara com a resistência do mal e dos "maus". Mas já Jesus avisara: "Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça porque deles é o Reino docéu" (Mt 5,10).

Acusar Deus pode ser um caminho muito cómodo... mas falo disso a seguir.

2006-10-08

CV (23) Pedra de escândalo

Um dia destes, um dos meus maiores amigos (como se nota pela absolutização das palavras que me dirigiu) e de quem eu gosto também muito, mas mesmo muito, entrou de rompante com uma questão, a inevitável questão:
- Explica-me uma coisa. Então, tu, que gostas tanto de Deus, que até deixaste a tua profissão para lhe dedicares mais tempo, tu, que não tens vícios (não fumas, não bebes), tu que ajudas tanta gente, diz-me: O que queres que eu pense de Deus se, apesar de tudo isto, ele te faz sofrer tanto!?
Perante esta eterna questão o que podemos dizer de decente!? Que podia eu dizer de libertador a este meu amigo?
Comecei por não o iludir nem camauflar a questão:
- Ó pá, este é o grande problema do homem. Um problema com o qual todos, mais cedo ou mais tarde, temos de nos confrontar: o problema do mal, o problema do sofrimento; o problema da relação de Deus com o mal (não foram os humanos obrigados a inventar uma disciplina, a teodicieia, "a justificação de Deus"?), o problema do sofrimento dos inocentes, o Holocausto e o silêncio de Deus.
Acrescentei algum palavreado clássico, que vou recuperar na crónica seguinte.
Aqui quero referir outro aspecto.
Afinal, nesta minha doença estou também a ser pedra de escândalo para outros. Será que se eu, nos momentos mais complicados, mostrasse que estava a "sofrer com amor", se eu tivesse sido capaz de irradiar uma alegria libertadora perante a dor, não teria sido um argumento da existência de Deus para este meu grande amigo em vez de ser uma prova da sua não existência? Será que afinal não estou a portar-me como um crente sério, mas apenas como uma psssoa que sofre e sofre sem sentido, sem convicção, sem a força de que vale a pena a viver, sem a capacidade de mostrar que a vida é feita de altos e baixos e os baixos são para viver com a mesma energia com que se vivem os altos?
Sérá que...? Será que...? Será?

Não estou a dizer isto com angústia nenhuma. Sinto preocupação pelo facto, mas sinto uma grande paz de espírito. Mas tenho de colocar ou de me colocar em questão, tentar avaliar o meu testemunho mas não fico mais abatido pelo facto do meu testetemunho (martírio, em grego) ser tão fraco. Aqui não estou a pecar por orgulho. Sempre aceitei as minhas limitações, tal como as minhas forças, como vindas de Deus. Aliás, nestas coisas, costumo regular-me por dois critérios:
1º procuro dsitinguir entre escândalo activo, do qual sou objectivamente responsável, do escândalo passivo;
2º procuro seguir aquela "afirmação" de que "somos servos inúteis; fizemos apenas o que devíamos fazer" (Lc 17,10). Já agora devo dizer que não gosto nada deste adjectivo "inúteis". Prefiro muito mais "dispensáveis" (outro pecado de orgulho!?), mas a verdade é que o original grego não deixa muitas ilusões: dõuloi (escravos) achreioí (inúteis, o dicionário que tenho até acrescenta um outro sinónimo "louco": a loucura dos que crêem em Deus!?; "escândalo para os judeus, loucura para os gentios" (1Cor 1,23)?). Esta última palavra vem de a + chreia, "serviço, ocupação, proveito, utilidade"! De qualquer maneira, a ideia é a de que nenhum trabalho no Reino de Deus supõe recompensa em termos de justiça mas sim de graça e de dom gratuito.

Portanto, não me estou a auto-falgelar, mas a colocar quetões existenciais, muito sérias.
Esta situação me tira menos força para continuar a lutar, mas gostaria de partilhar esta questão (que não é meramente académica) e pela qual talvez muitos de nós passemos, sem sequer nos darmos conta.
Eu, pedra de escândalo, me confesso.

2006-10-06

CV (22) À procura do Telos

Porque quero abordar de seguida dois ou três temas mais sérios vou agora fazer um interregno e contar-lhes as minhas atribulações para justificar o tal telómetro (medidor da força de vontade).
Convencido, reminiscências dos meus anos de grego no Seminário, pensava que telos (em grego) significava vontade. Aliás outra vaga reminiscência ligava-me essa palavra a Duns Scoto, o homem do "primado da vontade divina", agora um pouco maltratado no discurso de Bento XVI...
Mas para não asneirar lá vou eu aos dicionários: no de grego, do velho Isidro Pereira, nada. Virei-me depois para dicionários etimológicos e a questão complicou-se:
- tel(o) do gr, thelé, -és, "mamilo"(!?): aparece em epitélio ("da pele que reveste o mamilo" passou-se para o "tecido, o conjunto de células que reveste superfícies expostas"); portanto este caminho não me levava longe e quando cheguei a telotismo regredi rapidamente tendo em conta as sábias palavras de Virgílio "paulo majora canamus" (Bucólica IV,1): "falemos de coisas mais elevadas";
- telo do grego télos, -eos, "acabamento, fim, termo", que todos conhecemos na teleologia, "qualquer doutrina que identifica a presença de metas e fins ou objectivos últimos" ou nos célebres telómeros, tão em voga nestes últimos tempos, como responsáveis pelo nosso envelhecimento, ou melhor envelhecimento das nossas células: extremidades dos cromossomas que se gastam com maior ou menor rapidez e quem paga é o nosso BI (bilhete de identidade);
- ainda me apareceu o telónio, do latim, mas com origem grega, "banca ou local onde se cobram impostos", o que também não era um bom caminho sobretudo na actual situação portuguesa.

Tive de me voltar para outras pargens. E resolvi ir a um dicionário do cristianismo procurar
monotelismo (heresia segundo a qual Jesus Cristo teria apenas uma vontade, a divina) e lá estava: mono, "um" + thelein, "querer" + ismo.
Espero, portanto, que a Academia não rejeite o telómetro, como medidor da (força de) vontade.

CV (21) Rotina corrosiva

Depois de alguns dias a restabelecer-me em casa, volto ao blog cumprimentar os meus amigos e pôr a escrita em dia.
A semana passada no Hospital foi mais uma com os sintomas habituais, sobretudo o enjoo permanente. Houve uma alteração: quando lá cheguei foi-me dada uma unidade de sangue, dado que tinha a hemoglobina ligeiramente abaixo de 9, quando o índice normal ronda os 13. Por outro tenho verifiquei que, indo já no sexto tratamento, há ainda meia dúzia de cabelos resistentes no alto da cabeça: quando me olho ao espelho vejo qualquer coisa como uma floresta depois do incêndio: aqueles troncos sem folhas nem ramos ali espetados na terra sem nada à volta.
Mas há um outro fenómeno, este interior e espiritual, que queria partilhar. Nos primeiros tempos estes enjoos vão-se suportando com alguma facilidade, mas com o rotinar do tratamento a disposição interior, com todas aquelas associações que há descrevi, vai mudando. Não sei bem o que se passa com os meus companheiros cuja maior parte me parece resistir melhor que eu (mera suposição?). Mas aquela minha rejeição absoluta da comida tem-me dado que pensar. Curiosamente esta semana, com excepção de um colega todos os outros recusaram a comida: só uma canjinha; tudo o resto nem vê-lo. Isto aumentou um pouco mais a minha auto-estima. Mas mesmo assim gostaria de utilizar um telómetro (as voltas que dei para justificar este neologismo, que descrevo a seguir), isto é, um medidor de força de vontade a ver como me situava numa escala de 0 a 20.
Mas voltando ao meu interior, neste contexo de rotina corrosiva.
No princípio, repetia com toda a convicção a oração de Jesus. "Pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não se faça a minha vontade, mas a tua" (Mt 26,39). Depois, sobretudo na semana passada, notei algumas variantes. Primeira: "Pai, afasta de mim este cálice: mas não se faça minha vontade, mas a tua". E na parte final, já farto de quatro dias de enjoo, de más dispoisções, de vontade de não fazer nada e de me deixarem em paz, surgiu, pela primeira vez, a versão final: Pai, afasta de mim este cálice", sem mais.
Procurei analisar-me e lá fui argumentando e contra-argumentando até que surgiu aquele argumento tão consolador mas também tão ambíguo como sibilino: "Não passas de um orgulhoso. Julgas-te Deus para rezares como Jesus, que sendo homem, também é Deus?". E lá andei eu a ruminar... Mas o que passa comigo: já não quero que se cumpra a vontade de Deus? Esta versão reduzida da oração ocorre-me quando as forças para suportar o sofrimento são cada vezes menores. Então sou não só um fraco mas sobretudo um incoerente. Ou será que as realidades de cada dia nos levam a fundamentos diferentes. Mas então quem sou eu: o que quando está bem, louva a Deus e abre os braços para aceitar a sua vontade; ou o que quando está fraco continua a louvar a Deus mas pedindo-lhe que me tire este cálice independentemente da sua vontade? De pouco valerá dizer que neste momento, já mais refortalecido, me sinto capaz de voltar à primeira versão. Mas por quanto tempo? Ou melhor, por quantas dores e enjoos?
Resta-me a consolação de que afinal cada um de nós é um mistério. Mas preocupa-me e magoa-me interiormente esta esperteza intelectual (mas não é a inteligência também uma criação e um dom de Deus para utilizarmos para superar as nossas dificuldades!?) para armar os argumentos mais convincentes para cada siuação. Vou ter que ser suficientemente humilde para aceitar esta minha fraqueza e que Deus me ajude.
Claro que sempre posso dizer que (outro argumeno "interessante") me sinto bem acompanhado: não se assustaram os discípulos no meio da tormenta a ponto de terem ouvido uma merecida reprimenda de Jesus: "Por que temeis, homens de pouca fé?" (MT 8, 26)?
Mas mais preocupante é aquela pergunta de Jesus, a que normalmente ninguém dá muita importância, pois parece mesmo uma brincadeira. Mas Deus não brina e a pergunta lá está no Ebangelho bem clara: "Mas, quando o FIlho do Homem voltar, será que ainda encontrará fé nsobre a terra?" (Lc 18,8).

Mas já agora e para desanuviar: quando olhava para esta minha ginástica intelectual, lembrei-me de um livro, que li há tempos ("Zero. A biologia de uma ideia perigosa), onde o autor mostra como podemos fazer 0 (zero) igual a qualquer número. P0r exemplo 0=2.
Tomemos uma série infinita deste tipo
2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2- ...
Agora associemo-los dois a dois
(2-2) + (2-2) +(2-2)+(2-2)+...
É evidente que isto soma
0+0+0+0+0+0+0+0+0 + ... = 0
Mas, se os associarmos de uma maneira diferente:
2 + (-2+2)+ (-2+2)+(-2+2)
0 que vai dar é
2+0+0+0+0+ ... = 2.
Portanto 0=2!
Será que eu não estou a ser assim tão incoerente já que do que se trata é do mistério infinito de Deus e do mistério (in)finito do homem!?
Mas é contra esta racionalidade matemática e empírica que Bento XVI falou em Ratisbona, lembram-se? Não era esta a razão que é ele colocava como interlocutora da fé: (Para ultrapassar as ameaças) só o conseguiremos se a razão e a fé se unirem numa nova forma, se ultrapassarem o limite auto-imposto da razão àquilo que é empiricamente verificável e se descobrirmos mais uma vez os seus novos horizontres".

Portanto, cuidado com estes argumentos capciosos. Nós às vezes pensamos que Deus é burro e que podemos aldrabá-lo. A verdade é que Deus nos ama infinitamente e ri-se desses nossos pensamentos ocultos e dessas nossas criancices, pois só Ele, porque é Deus, é capaz de nos amar, como cada um de nós é, nas nossas infidelidades, nas nossas incoerências, nos nossos argumentos capciosos e, por isso, está sempre pronto para matar a melhor vitela da quinta do céu para festejar o nosso regresso.
Como é bom ter um Deus assim!