divórcio ou casamento eterno?...

2007-10-30

Anacoluto

O primeiro editorial do novo director do Osservatore Romano deixou-me um pouco baralhado, porque me parece um anacoluto. Talvez alguém já não se lembre desta figura de estilo: começa-se por uma ideia depois salta-se para outra que pouco ou nada tem a ver com a primeira.
Em vez de grandes explicações, passo a citar algumas passagens.
A primeira parte é um retalho de citações de um artigo de Montini, futuro Paulo VI, então arcebispo de Milão, no centenário do jornal:
"Para ser um grande jornal é necessário desenvolver a sua natureza de «jornal de idéias». Sim, porque o jornal vaticano «não é, como muitíssimos outros, um simples órgão de informação; quer ser um meio principalmente de formação. Não quer só dar notícias, quer criar pensamentos. Não lhe basta referir os factos como acontecem: quer comentá-los para indicar como deveriam ou não ter ocorrido. Não mantém só um colóquio com seus leitores; ele tem-no com o mundo: comenta, discute, polemiza".
"Nenhum outro pode ter horizonte mais amplo de observação; nenhum outro pode ter fontes mais ricas de informação; nenhum outro tem temas de desenvolvimento mais importantes e mais variados; como nenhum outro, juízo de orientação mais autorizado e mais benéfica função de educação na verdade e na caridade".
Tendo em atenção o título do editorial "Tradição e futuro", estas citações de Montini ilustram a tradição. E qual é o futuro que o novo director desenha?
Muito simples e linear: o jornal será o "jornal do Papa". E para que não pensem qua há engano, esta afirmação aparece mais que uma vez:
"L’Osservatore Romano é, antes de tudo, o «jornal do Papa», e difundirá de duas formas o ensinamento e a pregação do bispo de Roma: conservando a sua peculiar natureza documental e desenvolvendo a da informação jornalística. Mas também se tornará maior expressão dos organismos e das representações da Santa Sé, em Roma e no mundo ao serviço de Bento XVI..."
"E o mundo verá o jornal do Papa informando sobre ..."
"Seguindo o exemplo de Bento XVI e difundindo os seus ensinamentos, o seu jornal quer dirigir-se com amizade a todos, crentes e não-crentes"
O Osservatore Romano é o jornal do Papa, ou precisando melhor, é o jornal de Bento XVI.
E eu a pensar, na minha qualidade de crente, que era o jornal da Igreja, que devia estar ao serviço da Igreja e do Reino de Deus. Mas como se lê na primeira citação estamos todos "ao serviço de Bento XVI".
Voltámos à monarquia absoluta. Colegialidade, onde vai ela!... Corresponsabilidade e participação, desaparecem do mapa. Bento XVI nos dirá o que devemos fazer. Não vamos precisar de pensar e quanto menos pensarmos melhor. Onde vai longe o sonho de Montini: "um jornal de ideias"!
O novo director chama-se professor Giovanni Maria Vian.
Angura-se-lhe um futuro promissor. Só tenho uma sugestão: é que use sempre calças!

Para não esquecer que aconteceu um Concílio, cá vai mais uma citação:
Portanto, ainda que na Igreja nem todos sigam pelo mesmo caminho, todos são contudo chamados à santidade e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus. Ainda que, por vontade de Cristo, alguns são constituídos doutores, dispensadores dos mistérios e pastores em favor dos demais, reina, porém, igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à actuação, comum a todos os fiéis em favor da edificação do corpo de Cristo. A distinção que o Senhor estabeleceu entre os ministros sagrados e o restante povo de Deus contribui para a união, já que os pastores e os demais fiéis estão ligados uns aos outros e aos fiéis: e estes dêem alegremente a sua colaboração aos pastores e aos doutores (LG 32)

2007-10-29

Santos às centenas

Para quem, como eu, é um observador de fora (os caminhos curiais nem sempre são lineares e transparentes), a beatificação de 498 mártires da fé espanhóis não parece ter sido um contributo muito evangélico para a unidade e a reconciliação de Espanha. A missão da Igreja não é exaltar "os nossos" (porque todos somos de Deus) mas ajudar a construir pontes (por alguma razão o Papa é chamado o Sumo Pontífice) de modo a transformar a humanidade numa só família.
Até porque entre os mortos pelas tropas de Franco e pelo franquismo é bem possível que tenha havido alguns tão mártires como os que agora foram beatificados.
Esta visão vesga, dualista, da história não é certamente a visão de um Deus que amou de tal maneira o mundo (todo o mundo, o cosmos, as pessoas de todas as tendências: todos, tudo, tanto as coisas "que estão na terra como as que estão no céu" (lembro-me, dos meus anos de grego no Seminário, dos quatro tá panta (τά πάντα), "todas as coisas" do hino da Carta aos Col 1,16-19) que lhe enviou o seu Filho (Jo 3,16-17).
Esta beatificação em massa, embora não seja inédita, corre o risco de parecer mais um corolário daquelas palavras da Carta Pastoral do cardeal Gomà de 8.Agosto de 1930 ("Teve que fazer-se a guerra para ganhar a paz . Graças a Deus, que nos deu a vitória e com ela foi possível estabelecer uma paz justa") do que uma manifestação de uma comunidade que está chamada a testemunhar o Reino de Deus.

E para não esquecer o Concílio, mais uma citação:
Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, «o qual foi entregue por causa das nossas faltas e ressuscitado por causa da nossa justificação» (Rom. 4,25) e, tendo agora alcançado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos céus. Tem como condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo. A sua lei é o novo mandamento, o de amar assim como o próprio Cristo nos amou (cfr. Jo. 13,34). Por último, tem por fim o Reino de Deus, o qual, começado na terra pelo próprio Deus, se deve desenvolver até ser também por ele consumado no fim dos séculos, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cfr. Col. 3,4) e «a própria criação for liberta do domínio da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus» (Rom. 8,21) (LG 9).

2007-10-26

Analfabetismo religioso

Ontem estive na inauguração da nova biblioteca do Seminário. Para começar não está mal, pois era urgente que uma escola de estudos teológicos tivesse uma bibioteca minimamente apetrechada. Espero que os próximos tempos permitame enriquecê-la não só de livros mas sobretudo de uma utilização, que faça render a muita sabedoria que já aí se encontra concentrada.
O estar naquele espaço fez-me lembrar quão grande é o analfabetismo religioso da maior parte dos cristãos. Educados numa catequese clássica, muitas vezes desincarnada e atemporal, redutoramente centrada na dimensão vertical (necessária mas não suficiente), esquecendo que somos chamados a testemunhar os valores do Reino no meio da sociedade (dimensão horizontal), os cristãos, na sua maioria, contentam-se com uma prática dominical mais ou menos regular e rotineira e um comportamento honesto e humano mas pouco evangélico e nada profético. Quase se pode dizer que em vez de evangelizarmos o mundo é o mundo que nos está a evangelizar. E com grande sucesso...
A culpa não será só dos cristãos de base, mas sobretudo dos homens da Palavra, que deveriam ser os télogos e sobretudo os párocos, que se mostram mais prontos a administrar sacramentos do que em preparar, de forma adequada ao nosso tempo, os cristãos para irem e no meio das suas actividades seculares serem o sal e a luz de que Jesus fala.
Parafraseando S. Paulo: Ninguém pode testemunhar, o que não conhece. E não pode conhecer, se não lhe for pregado (cf. Rom 10, 12-13).

A propósito vem a citação com que hoje quero lembrar o Concílio:
Saibam (os teólogos) buscar, à luz da Revelação, a solução dos problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável das coisas humanas e anunciá-las de modo conveniente aos homens seus contemporâneos (Decreto sobre a formação sacerdotal, Optatam Totius, 16).

2007-10-24

Sic transit gloriam mundi

Li algures que a Nobel de Literatura, Doris Lessing, resolveu, há uns vinte anos, escrever dois romances sob um pseudónimo e mandou-os ao seu editor, que... os recusou. Tentou noutra editora que os publicou, mas com reduzido sucesso. Com esta brincadeira ela quis provar, segundo confessou mais tarde, que o sucesso atrai sucesso e que quem não o tem é ignorado.
Uma das coisas que me deixa muito feliz é a certeza de que os critérios para "entrar no céu" bem como da distribuição dos lugares não são estabelecidos pelos editores dos telejornais e afins. O nosso Deus é um deus justo que "não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer, mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra" (Is 11,3-4).
Que bom que Ele assim seja!

Para não esquecer o Concílio, a citação para hoje é:
Esta semelhança (com Deus) demonstra que o homem, única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si próprio (GS 24)

2007-10-23

AInda o ambiente

El País informa que está pronto o rascunho do IV Relatório de avaliação (AR4) preparado pelos peritos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organismo científico de Nações Unidas que recebeu este ano o Prémio Nobel da Paz, juntamente com Al Gore. Concluem que, mesmo que agora se tomem medidas eficazes contra a mudança climática, há já um dano cujas consequências são irreparáveisa, faça-se o que se fizer: será maior o risco de escassez de água e secas nalgumas regiões tropicais e subtropicais; serão inundadas costas devido à subida do nível do mar; perder-se-ão colónias de corais e muitas espécies sofrerão graves alterações, ou mesmo extinção.
Apesar destes dados, há ainda uns brincalhões fazedores de opinião pública que tudo fazem para desconsiderar quem se preocupa com estes problemas gravíssimas não só para nós como sobretudo para os nossos filhos e netos. Não sei se esses que afirmam que o homem não tem quaisquer responsabilidades nesta violação sistemática da natureza têm filhos e netos ou não. Mas se os têm, não se pode dizer que gostem muito deles ou estejam muito preocupados com o seu futuro.
Este egoísmo generacional é um dos maiores obstáculos a uma luta séria e eficaz contra as mudanças climáticas, já que nem sequer o amor pelos filhos e netos parece ter qualquer efeito dissuasor sobre as suas atitudes.

Para não deixar esquecer o Concílio Vaticano II, aí vai mais uma citação:
Dada a interdependência cada vez mais estreita e a sua progressiva difusão por todo o universo, o bem comum, ou seja, o conjunto de condições da vida social que permitem, quer aos grupos, quer a cada um dos seus membros, atingir a sua própria perfeição de um modo mais total e mais fácil, toma hoje uma extensão mais universal e implica, por isso, direitos e deveres que dizem respeito a todo o género humano (GS 26)

2007-10-22

Racismo

Nas eleições legislativas na Suíça, a UDC (União Democrática do Centro), populista e racista, conquistou o primeiro lugar com 29% dos votos.
Dias antes, James Watson proclamava do alto do seu Nobel da Medicina (1962): "Todas as nossas políticas sociais estão baseadas no facto de que a inteligência dos pretos é igual à nossa, mas todas as provas mostram que não é realmente assim". O argumento utilizado é irresistível e altamente científico: "Quem teve de lidar com empregados negros sabe que isso é verdade". Aliás estas palavras não ficam mal a quem se serviu do trabalho de uma cientista, Rosalinda Franklin, para fazer a descoberta que lhe deu o Nobel, a ignorou por completou e só o admitiu décadas depois, quando ela morreu.
A tentação de achar que os outros, mesmo os da nossa cor e condição, nos são naturalmente inferiores está muito difundida e não passa só pelo racismo. Cruza-se com cada um de nós em muitos momentos do nosso dia a dia. Por isso, a luta contra os racismos terá de começar por aí. Mas institucionalizar organizações e partidos que façam a sua apologia é realmente um retrocesso grave na caminhada moral da humanidade.
Neste contexto, tenho receio que alguém considere este meu desabafo como mais uma manifestação subreptícia de racismo.

E acabo, como prometido, com uma citação conciliar:
A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos (GS 29).

2007-10-19

Europa a caminho

Apesar dos egoismos nacionais (para alguns, sei que isto cheira a heresia), lá foi possível ultrapassar mais uma etapa na construção de uma Europa mais forte, mais unida e mais capaz de se confrontar com outras potências.
Não o ter conseguido, só fazia da Europa mais uma manta de retalhos, o que agradaria muito a muitos fora da Europa: bastará ver a reacção da Rússia, que bem gostaria de continuar a vender o seu gás e petróleo país a país (dividir para reinar e explorar). Mas o mais importante não é a Europa económica, mas a Europa cultural e até a Europa social, apesar da forte pressão do evoluir da história contra o seu modelo.
Vencidos os chauvinsimos nacionais, teremos agora de esperar pelos chauvinismos partidários. Até Dezembro eles irão aparecer disfarçados de defesa da cidadnoia e da defesa dos interesses nacionais. Quando ouço falar dos "interesses nacionais" (uma espécie de "direitos adquiridos" tão repetido em Portugal nos últimos anos) recordo-me sempre das palavras da senhora Tatcher: "Na minha vida política prezo muitos os prinípios, desde que não sufoquem os interesses nacionais" (cito de cor)!

Para recordar o Concílio, mais uma citação:
Unamos, pois, as nossas forças e, cada dia mais fiéis ao Evangelho, procuremos, por modos cada vez mais eficazes para alcançar este excelente fim, cooperar fraternalmente no serviço da família humana, chamada, em Cristo, a tornar-se a família dos filhos de Deus (GS 92).

2007-10-18

Não podemos esquecer a Birmânia

Perante a brutalidade da ditadura militar da Birmânia, o que podemos fazer?
Certamente muito pouco, mas podemos ao menos não a deixar cair no esquecimento. Falar dela, criar opinião, pressionar os vários poderes a exercer a sua influência diplomática e económica. E será que não se está a viver uma situação que exija a aplicação do direito de ingerência por razões humanitárias?
Para já, podemos todos proclamar esta "oração pela paz em Mianmar" de autoria do P.e Joaquín Alliende, director espiritual da organização "Ajuda à Igreja que sofre", como um dos instrumentos de luta contra a indiferença e contra o silêncio (lembremo-nos de Timor Leste):
os crentes podem rezá-la porque sabem que quem é indiferente para com os irmãos é indiferente para com Deus e acreditam no valor da oração;
os não crentes podem recitá-la porque ela é um grito em defesa dos direitos humanos de toda quela gente.
Uns e outros, em nome da solidariedade e da justiça, temos a obrigação de não nos calarmos:

Oração por Mianmar hoje

Venha a Mianmar o vosso Reino.
Pai do Céu, vede hoje
esta nação ensanguentada
e protegei cada filho desvalido vosso.
O vosso braço poderoso paralise
os fuzis e os cruéis bastões.
Convertei os corações dos tiranos,
conservai pacífica e valente
a alma dos monges e de todos os que são perseguidos
por defender a liberdade e a justiça.
No vigor do Sangue inocente de Jesus,
estabelecei o respeito à vida
e à paz de cada habitante
dessa maravilhosa terra.
Que a Virgem Maria acompanhe e fortaleça
as mães, as viúvas,
os órfãos e todos sofredores.
Enviai o vosso Espírito Santo
para que, muito além do ódio e da morte,
os povos de Mianmar possam empreender
o caminho rumo à reconciliação verdadeira.
Não permitais, Pai,
que os nossos olhos se acostumem
à mentira e à violência do mundo.
Despertai as nossas consciências,
mostrai-nos a dignidade intrínseca
de cada ser humano,
e concedei-nos descobrir
a activa solidariedade
com nossos irmãos,
os oprimidos, discriminados ou perseguidos.
Ámen

Continuando a recordar o Concílio Vaticano II, aqui deixo mais uma citação
Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, mas que vamos em demanda da futura, pensam que podem por isso descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a própria fé ainda os obriga mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um (GS 43)

2007-10-17

DIa Internnacional da Erradicação da Pobreza

Os números distribuídos sobre o número assustador de pobres deixam-nos perfeitamente indiferentes. Haveria que descobrir formas novas e suficientemente chocantes de apresentar o problema E, contudo, mesmo num país como o nosso, esta pobreza extrema poderia ser vencida desde que houvesse vontade cívica e, consequentemente, política para o fazer.
Mas para tal há muita coisa a mudar nas nossas cabeças; a mudança maior talvez seja a passagem da lógica da esmola à lógica do direito. A pobreza tem muitas causas, mas uma das principais está na má organização social (será que aceitamos esta mudança nos nossos preconceitos?). Sendo assim, trata-se prioritariamente de um problema de (in)justiça. E os problemas de justiça não se resolvem com a esmola, que é uma atitude voluntária, de favor, de superioridade (por isso pode ser um gesto tão humilhante!). A lógica do direito impõe, pelo contrário, o reconhecimento do outro como cidadão a quem são negados direitos e não como um qualquer explorador que procura tirar o que é nosso. Entrar na lógica do direito é aceitar que o outro, quanto mais pobre for, mais direitos têm, pois todos os cidadãos têm o direito aos bens e recursos da Terra para poderem viver uma vida com dignidade.
Porque, e passo à citação conciliar:
Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e de todos os povos: como consequência, os bens criados devem chegar a todos equitativamente, segundo a justiça, acompanhada pela caridade… Todos têm o direito de terem uma parte suficiente de bens para si e para as suas famílias. Assim pensaram os Padres e Doutores da Igreja, ensinando que os homens estão obrigados a auxiliar os pobres e não apenas com as coisas supérfluas. Quem se encontra numa extrema necessidade tem o direito de tomar das riquezas dos outros o necessário para si (Constituição A Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, 69)

2007-10-16

DIreito à ALIMENTAÇÃO

Hoje é o Dia Mundial da Alimentação.
Para a maior parte de nós, a alimentação é um acto tão banal que não nos apercebemos da sua importância nem cuidamos da sua gestão equilibrada.
No entanto, vivem hoje no mundo 854 milhões de pessoas que passam fome e desnutrição: este número dava para povoar 85 Portugais e ainda sobravam uns trocos.
Também entre nós, há muitas dezenas de milhares de pessoas que passam fome.
Como é possível que haja pessoas a passar fome hoje, nos começos do século XXI? Que organização social temos nós que deixa morrer tantas pessoas à fome? Esta gente está tão fraca que nem forças têm para pedir pão e a aplicação dos seus direitos humanos básicos.
Segundo a presidente do Banco Alimentar, 216 mil pessoas beneficiaram, no ano passado, da ajuda alimentar através de 1200 organizações de solidariedade social.
E andamos nós os fartos a fazer manifestações e greves para não perder privilégios imorais que distorcem ainda mais a justiça social.

O Concílio na sua lista sumária de direitos humanos coloca a alimentação em primeiro lugar:
Cresce ao mesmo tempo a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, superior a todas as coisas e cujos direitos e deveres são universais e invioláveis. É pois necessário tornar acessível ao homem tudo aquilo de que este tem necessidade para levar uma vida verdadeiramente humana, como é a alimentação, o vestuário, a habitação, o direito de escolher livremente o seu estado de vida e de fundar uma família, direito à educação, ao trabalho, à reputação, ao respeito, a uma informação adequada, a actuar segundo a recta norma da sua consciência, à protecção da vida privada e a uma justa liberdade, inclusivamente em matéria religiosa (Constituição “A Igreja no mundo contemporâneo”, Gaudium et Spes, 26).

2007-10-15

Santos e pecadores

Foi conhecida, há dois ou três dias, a condenação do antigo capelão argentino cúmplice da ditadura militar do general Videla.
Sabe-se do doloroso que foi para a Igreja argentina esses tempos difíceis quando nem sempre foi fácil fazer o discernimento nem a fideladidade ao espírito do Evangelho esteve suficientemente presente. Sabe-se também do esforço, e até da exigência, feito por João Paulo II para que a Igreja argentina pedisse perdão pública pelo seu comportamento ou de alguns dos seus "filhos".
Se recordo este episódio doloroso é porque ele contém várias lições.
Nenhuma instituição humana, mesmo religiosa, está isenta do pecado, até porque o pecado marca toda a realidade humana. Ninguém está isento de pecado; por isso, devemos ter cuidado antes de "atirar a primeira pedra"
Situações desta não põem em causa a dignidade e a necessidade de instituições cuja finalidade última é testemunhar o amor de Deus: "não é uma andorinha que faz a primavera". A Igreja, mesmo com estes episódios, continua a ser indispensável para a construção de um mundo mais à medida da pessoa, de cada pessoa que, seja homem ou mulher, foi criada "à imagem de Deus".
Estas situações são sempre tempos oportunos para aprendermos a viver com humildade e a consciência de que somos pecadores, mas também com a consciência de que tais limitações não devem impedirnos de continuar a nossa missão; são antes um contínuo desafio à nossa coerência de fé-vida.
Finalmente esta realidade ajuda-nos a ser mais comprensivos com as falhas dos outros e a sermos menos auto-suficientes e moralistas na sua avaliação.

Para que não esqueçamos o Concílio, aí deixo a minha citação para hoje:
Enquanto Cristo «santo, inocente, ima­culado», não conheceu o pecado, mas veio apenas expiar os pecados do povo, a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exer­cita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja «prossegue a sua peregrinação no meio das per­seguições do mundo e das consolações de Deus», anun­ciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha. Mas é robustecida pela força do Senhor ressus­citado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz (Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium, 8).

2007-10-14

Consciência cristã

Ontem, o cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano e representante de Bento XVI às cerimónias de Fátima, fez duas afirmações que gostaria de destacar.

1ª - “Queridos peregrinos, sem negar o valor dos sacrifícios e penitências voluntárias, sabei que a penitência de Fátima é a aceitação submissa da vontade de Deus a nosso respeito, que se traduz nos nossos deveres”.
Esta “verdade de fé” nem sempre tem feito parte da concepção que muitos cristãos, mesmo instruídos, fazem de Fátima: mais importante que todos os sacrifícios e promessas é o cumprimento da vontade de Deus. Só fazem parte da família de Deus, os que “ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” proclamou Jesus.

2ª - “Devemos rebelar-nos, respeitando as regras de uma sociedade autenticamente democrática”, pois, “o cristianismo deve ter relevância pública, mesmo quando é minoritário”. E devemos fazê-lo com a audácia dos apóstolos: “O mínimo que podemos fazer é rebelar-nos com a mesma audácia dos apóstolos”, que afrontaram a ordem do Sinédrio para não pregarem Jesus Cristo.
O cardeal não explicitou o que são "os nssos deveres", mas esta rebelião deve passar não só pelo anúncio, mas sobretudo pelo testemunho de vida, informado pelo espírito evangélico, em todos os âmbitos sociais. Que revolução social aconteceria se assumíssemos a sério a proposta de Jesus Cristo!

Citação conciliar para hoje:
O leigo, que é simultaneamente fiel e cristão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens (temporal e espiritual), por uma única consciência, a consciência cristã (Apostolicam Actuositatem, Decreto sobre o apostolado dos leigos, 5)

2007-10-13

Fátima

Há várias maneiras de louvar a Deus.
Há os que gostam de o louvar destacando a sua transcendência, que nenhuma obra humana é capaz de visibilizar de modo convincente. Para estes nada é suficientemente grandioso, nem nenhuma obra é suficientemente digna por muito custosa que seja. Normamente a esta obra grandiosa associa-se a beleza da arte: a beleza é também um modo de descrever Deus: caeli ennarent gloriam Dei (as maravilhas do céu ( e da terra) narram a glória de Deus).
Há os que preferem louvá-lo na "aniquilação" de um Deus que quis não só assumir a condição humana, mas se identificou com os vencidos da história, sobretudo na cruz, onde são crucificadas todas as vítimas das violências naturais, mas sobretudo humanas.
Há os que gostam de olhar Deus como alguém com quem se pode negociar os acontecimentos da vida pessoal.
Há os que renegam todos os bens materiais e se afastam para o deserto ou para o silêncio da clausura.
Os camnhos para Deus são múltiplos e variados. E até acontece que alguns podem tornar-se pedra de escândalo para outros. Cada um tem a sua caminhada "única e insubstituível" para chegar até Deus. Também as comunidades têm os seus diversificados esquemas de testemunho e evangelização. E cada época histórica exige formas características para tornar Deus visível e presente na história. Por isso, em cada tempo, cada comunidade é chamada a discernir quais os melhores caminhos para a situação histórica concreta que vive.
A Igreja da Santíssima Trindade em Fátima pode ter várias leituras e não é legítimo absolutizar qualquer delas.
Pode ser olhada como uma obra grandiosa mas adequada a manifestar a grandeza de Deus e os 80 milhões de euros são o preço a pagar por essa manifestação. Estes servir-se-ão das palavras de Jesus "Pobres sempre os tereis convosco", no episódio em casa de Simão onde uma mulher gasta uma fortuna para ungir os pés de Jesus com um óleo caríssimo. E manda recordar este episósio.
Mas também há quem considere estes milhões todos como um "desperdício" incompreensível num tempo em que tanta gente passa fome. Considerando esta ostentação como imprópria para louvar um Deus que quis ser pobre para nos salvar apelam para Jesus que fala da simplicidade e a sobriedade de vida mas sobretudo que apresenta como critérios insubstituíveis para alcançar o Reino de Deus não o templo ou a oração, mas o acolhimento amoroso do pobre que tem fome e sede, que está doente ou preso, que é vítima da injustiça, ou mesmo argumentar com o Magnificat, esse cântico revolucionário de Maria que recorda o nosso Deus que "enche de bens os famintos e aos ricos despede de mãos vazias".
Outros olharão como uma manifestação cultural, uma beleza arquitectónica, como uma homenagem da cultura a um Deus que é Senhor da história. Também estes poderão olhar para Jesus e ouvi-lo falar da beleza dos lírios do campo ou das construções humanas.
Esta é a liberdade que o nosso Deus nos dá: cada um de nós pode escolher a sua imagem, porque não há nenhuma imagem absoluta de Deus que os homens possam alcançar.
E esta liberdade, dom de Deus, é um risco sério para o projecto de Deus: é que embora todos os cristãos acreditem em Jesus Cristo, há muitos Jesus Cristos a separar e a lacerar a unidade da nossa fé. Mas o nosso Deus é um Deus que sabia os riscos que corria e quis assumi-lo ao criar o ser humano com capacidade de decisão. Porque o nosso Deus não quer marionetes. Quer pessoas.

Talvez ajude a frase do Concílio que escolhi para hoje:
De pouco servirão as cerimónias, embora belas, bem como as associações, embora florescentes, se não se ordenarem a educar os homens para conseguir a maturidade cristã (Presbyterorum Ordinis, 6)

2007-10-12

Prémio Nobel da Paz

A atribuição deste Prémio a Al Gore é bem possível que seja uma crítica pública e institucional à política energética do Bush.
Mas, seja ou não, congratulo-me muito com a decisão tomada, sobretudo porque os fortíssimos lobbies da energia nuclear e das "petroleiras" (que, "por causa das moscas" começam também a investir nas energias renováveis) têm tudo feito para convencer a opinião pública de que a acção humana nada tem a ver com estas minudências de buracos de ozono ou aquecimento global. Acabei de ler um livro (de Claude Alègre) que chama palhaço a Al Gore e depois lá vem a defesa acérrima da energia nuclear. A tese dele ainda por cima é muito atraente: vamos continuar a viver bem e fazer da ecologia (a ecologia dele, naturalmente) o motor do progresso. E utiliza como argumentos, e bem, certos exageros ecológicos, como a psicose do amianto que levou a UE a quase destruir a sua sede em Bruxelas.
É evidente que os mecanismos reguladores da atmosfera e dos vários ciclos da água, do carbono, do ozono, etc., são extremamente complexos. Também podemos argumentar que a Terra tem sobrevivido a muitas crises (o que não é o mesmo que dizer que a vida humana teria sobrevivido a muitas dessas crises). Mas uma coisa é certa: Terra até ver só temos esta. Nunca como agora estamos a encharcá-la de poluintes de todos os tipos. Por tudo isto, ao menos que haja bom senso para se aplicar o princípio da precaução.

Para recordar o Concílio, vou iniciar uma série de citações dos seus documentos. Para hoje, uma das mais conhecidas; mas que por isso mesmo vale a pena ser relida pausadamente de modo a evitar a usura que a rotina fez dela:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história (GS 1).

2007-10-11

Foi no milénio passado...

Faz hoje exactamente 45 anos que foi a solene abertura do Concílio Vaticano II. Para os mais novos nem sequer sabem o que isso foi, muito menos o que é. Para os mais velhos, e agora refiro-me aos cristãos, há sobretudo três correntes: a esmagadora maioria, que mal o conhece e vai aceitando as propostas vindas do alto, com a habitual indiferença; os curiais, que procuram recuperar o que pode retomar o espírito pré-conciliar; outros, que exigem um novo Concílio.
E parece que poucos, uma minoria em vias de extinção, se preocupam por, ao menos assumir e lutar pelas suas decisões no sentido do aggiornamento da Igreja, e sobretudo explorar as suas muitas intuições e linhas de força.

Partilho convosco o texto da crónica que mandei para o Correio de Coimbra:

O MELHOR É IGNORAR

Foi neste dia, 11 de Outubro, que há 45 anos começou o Concílio.
Este acontecimento ímpar na história moderna da Igreja já passou à história, com os inconvenientes que tal facto significa. Os que têm menos de 50 anos não acreditam, por exemplo, que a missa fosse “dita” em latim, que havia só um celebrante que estava de costas para os figurantes que apenas assistiam. Com um bocadinho de sorte pode ser que alguns destes jovens possam reviver esses tempos heróicos.
Agradecendo a Deus a graça do Concílio, quero recordá-lo, o que farei, dado a exiguidade do espaço de que disponho, através de duas citações.
Segundo o sínodo dos Bispos de 1985, “a eclesiologia da comunhão é a ideia central e fundamental nos documentos do Concílio”. De que se trata? O documento conciliar sobre a Igreja define assim a comunhão: o povo cristão “tem por cabeça Cristo “; “por condição a dignidade e liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo” e não apenas na hierarquia; “por lei o novo mandamento do amor” e não a submissão, o medo ou a condenação; “por fim o Reino de Deus” (LG 9) e não o ter, nem o prazer nem o poder político, económico ou religioso. Efectivamente o Reino de Deus é “um reino eterno e universal: um reino de verdade e de vida, reino de santidade e graça, reino de justiça, de amor e de paz” (GS 39). João Paulo II insistia nesta exigência da comunhão num dos seus últimos documentos: “Fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão: eis o grande desafio que nos espera no milénio que começa, se quisermos ser fiéis ao desígnio de Deus e corresponder às expectativas mais profundas do mundo” (NMI, 43). Trata-se de uma tarefa muito difícil, pois obriga a hierarquia a passar da situação de poder à de serviço e os leigos a trocar o comodismo pela participação. E todos sabemos como é difícil resistir às tentações do poder e do comodismo.
A outra frase que destacaria é tão curta que talvez poucos a conheçam em profundidade: “O cristão que descuida os seus deveres temporais falta aos seus deveres para com o próximo, falta aos seus deveres para com Deus e põe em risco a sua salvação eterna” (GS 43). Na aparente insignificância, esta é também uma frase revolucionária. Durante muitos séculos os cristãos foram formados na convicção de que fora da Igreja não há salvação. O Concílio Vaticano II proclama-a também, mas para aqueles que “não ignoram que a Igreja católica foi fundada por Deus por meio de Jesus Cristo” (LG 14b). Por outro lado, reconhece que fora da Igreja também há salvação, pois “fora da sua estrutura, encontram-se elementos de santificação e de verdade” (LG 8c) e as outras religiões, “embora se afastem em muitos pontos daqueles que a Igreja católica segue e propõe, todavia, reflectem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens” (NAe 2b). Mas sobretudo, com a frase atrás citada – “o cristão, que falta às suas obrigações terrenas põe em perigo a sua salvação eterna” – o Concílio afirma solenemente que fora do mundo não há salvação. Daqui decorrem consequências radicais a muitos níveis, mas como não se lhe dá a devida atenção nos catecismos nem nas homilias, o povo de Deus vai-se defendendo com a ignorância na ilusão de ir “comprando o céu” com uma celebração semanal que por vezes tem mais de rotina do que verdadeiro exercício de louvor e de acção de graça (eu-caristia). E isto, apesar do aviso solene de Jesus no Sermão da Montanha: “Não é o que diz Senhor, Senhor, que entrará no reino dos céus, mas o que fizer a vontade de meu Pai” (Mt 7,21).
Posteriormente, no Sínodo dos Bispos de 1971 (tantos anos que já lá vão…) foi aprofundada esta ideia: “A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão” (JM 6). O que dizem os catecismos, as homilias, os encontros de formação sobre isto? Quem conhece este documento sinodal? Certamente que é muito melhor para todos – clero, religiosos e leigos – não o conhecer ou fazer de conta que ele não existe.
Bento XVI diz o mesmo de um modo mais amoroso, mas não menos violento. E vou repetir uma frase, que já aqui citei várias vezes e voltarei certamente a fazê-lo: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE, 1). O sorriso tão típico e as palavras tão melífluas de Bento XVI escondem o vulcão que está contido nesta afirmação e que deveria ter sido gritado com a fúria profética de João Baptista.
Quem não se compromete no mundo põe a sua salvação eterna em perigo. Sem luta pela justiça não há evangelização autêntica. O Cristianismo não é um manual de boas maneiras, mas um encontro existencial com a Pessoa de Jesus Cristo para dar um rumo decisivo à nossa vida.
Três frases que dizem todas o mesmo e que, portanto, terão todas o mesmo destino: serem esquecidas e o mais rapidamente possível. Que diabo, nós temos a nossa vida para viver. Já imaginaram o que aconteceria à paz da nossa consciência e à nossa vida se as levássemos a sério?

2007-10-04

Mas as crianças, Senhor...

Ando há vários dias incomodado com o caso da Esmeralda, aquela menina de cinco anos que os juizes resolveram tirar aos pais afectivos para a entregar ao pai biológico, contra o parecer da generalidade de pediatras e de psicólogos e até passe o abuso da sabedoria do senso comum.
O caso é tanto mais chocante quando, com emoções ou sem emoções (mas graças a Deus que tenho emoções e sou capaz de me emocionar), se sabe que o pai biológico não quis saber dela para nada quando ela nasceu nem durante largos meses e que a mãe ao fim de três meses procurou desfazer-se dela por razões certamente muito respeitáveis. Então os pais afectivos que apareceram a cuidar dela são agora acusados de que só pensaram nos seus interesses e não nos da criança. Quanto à telenovela do prende-se, aplica-se 6 anos de cadeia, afinal são só três e de pena suspensa, nem vale a pena comentar. Para quem absolutiza lei e a coloca acima da dignidade da pessoa é muito coerente este ping-pong jurídico.
Mas tudo isso eu admitiria como uma consequência da fraqueza humana. O que não consigo aceitar é esta violência feita sobre uma criança de cinco anos. Esta violência ou melhor esta violação de uma criança. Sim, violação: as violações não são só físicas; são tão psicológicas. E se tal atitude já era inaceitável no cidadão comum, ela torna-se imoral quando é feita por juízes que tiram a criança de um lar onde ela tinha afecto e carinho para os braços de um desconhecido.
Juízes a fazer uma violação destas? Eu durante muitos anos acrediatava que os juízes eram uma das poucas "reservas de humanidade", pessoas que eu (pres)sentia que representavam o que de melhor há na pessoa e estavam ao seu serviço. É esta desilusão que me magoa. É certo que eles não têm culpa de eu os ter em tão elevada consideração. Mas não é só isso que me entristece: é a sensação de que afinal já não há espaços institucionais onde tenhamos a garantia da defesa intransigente da dignidade humana, "o bem mais precioso que a pessoa tem".
Claro que eu fiquei a suspeitar fortemente de que não era como eu pensava quando verifiquei, a propósito de medidas governamentais contra abusos ditos "direitos adquiridos", que as grandes preocupações dos juízes, pelo menos de grande parte, eram predominantemente económicas.
Agora brincar com os sentimentos sagrados de uma criança de cinco anos é demais.
Termino com duas perguntas. Uma que também alguém já fez: ao cuidado de quem deveria ter ficado esta menina de três meses até que o seu pai biológico resolvesse sentir-se pai?
Segunda: quem responsabiliza e de que modo serão penalizados os juizes que tomaram este atitude se o pai biológico que agora se sente pai deixar de se sentir e passar a amaltratar ou abandonar a menina? Estes juízes ficam impunes? Mas mesmo que fiquem, quem recupera a felicidade e o amor para a Esmeralda e quem lhe restitui a alegria de viver?

50 anos depois

Já lá vão alguns anos. Só os da terceira idade se lembram bem disso.
Mas aquela insignificante esfera metálica, com apenas um rádio, meia dúzia de pilhas e uma ventoinha e ainda sem computadores nem sofisticados aparelhos científicos nem câmaras fotográficas capazes de fotografar as cidades americanas, transportava um futuro prenhe de consequências. Com menos de 100 quilos de peso ela transportava a humanidade inteira, para lá das competições de prestígio entre blocos tão ridículas quando comparadas com a imensidão do espaço desconhecido que nos rodeia. Neste grão de pó iam, sem o suspeitarmos, as nossas esperanças e as nossas certezas. A certeza de uma humanidade que se sente prometaica e capaz de vencer as barreiras naturais e fisiológicas que nos separam do espaço exterior. Mas também a esperança de que, se um dia a loucura humana der cabo deste nosso doce lar, teríamos uma saída para um futuro que ninguém ainda pode imaginar.
Foi, efectivamente, o primeiro passo para um possível corte umbilical com esta terra que viu nascer o género humano. Qualquer coisa semelhante ao que a vida teve de fazer quando resolveu deixar a protecção dos oceanos para se arrastar para a terra firme tão hostil: a vida na altura teve que inventar os pulmões para respirar, teve que descobrir a maneira de levantar o corpo do chão e de suportar a cabeça, teve que arranjar mecanismos que lhe permitissem vencer a gravidade. E, de milhões em milhões de anos, foi continuando e resolvendo os problemas fisiológicos e dinâmicos do corpo, mas também o seu relacionamento com o meio, a defesa agresiva do seu território, a capacidade de cuidar dos seus filhos, o prazer de se relacionar com os amigos. A vida venceu estas batalhas todas.
As próximas batalhas vão ser diferentes. A evolução assumiu a consciência e agora é sobretudo cultural. A espécie humana, o Homo sapiens, tem apenas uma centena de milhar de anos. Dizem os entendidos que cada espécie tem uma tempo médio de vida de cerca de 2 milhões de anos. Estamos portanto na meninice: aprendemos a falar e a andar, pouco mais. Há, pois, muito tempo para continuar e desenvolver todas as potencialidades que o Sputnik abriu há precisamente 50 anos.
Cá vamos nós. O futuro pertence-nos.