divórcio ou casamento eterno?...

2009-12-31

CinV (78) O grande desafio (nº 36)

O Papa enuncia alguns aspectos da DSI relacionados com a economia.

1. É possível viver relações verdadeiramente humanas mesmo no âmbito da economia: “A doutrina social da Igreja considera possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da actividade económica e não apenas fora dela ou «depois» dela”. Portanto se é possível, basta que todos queiram e que todos estejam disponíveis para tornar humanas e autênticas as relações económicas.

2. A actividade económica é uma das características do ser humano, é um dos principais meios de relacionamento. Poderia referir aqui o papel fundamental que os comerciantes tiveram ao longo da história não só na troca de objectos e produtos materiais mas também como difusores da cultura, dos costumes e até das religiões. O avanço da humanidade deve muito a esses cavaleiros andantes, que iam de terra em terra, com esforços que hoje não somos capazes de imaginar, para garantir, por um lado, a sua subsistência, mas, por outro, a subsistência de tanta gente afastada das principais vias de comunicação e dos mercados e feiras.
Assim sendo, não tem sentido que nessa esfera, onde os actores são sempre pessoas, não se sigam normas que respeitem os verdadeiros actores, isto é, as pessoas. Não há nenhuma “mão invisível”, fatalista, que autoregule os acontecimentos. São as pessoas que, por acção, por omissão, por intenções boas ou más, fazem andar as estruturas, que são sempre apenas instrumentos. É certo que há o perigo, demasiado presente, de os instrumentos adquirirem autonomia e controlarem o seu criador, isto é, controlarem quem os devia controlar. Contudo, também esta esfera não é “uma terra de ninguém”, uma selva onde apenas se imponha a lei do mais forte. Apesar de, muitas vezes, assim parecer e de até alguns intervenientes estarem disso convencidos, a verdade é que “a área económica não é nem eticamente neutra nem de natureza desumana e anti-social. Pertence à actividade do homem; e, precisamente porque humana, deve ser eticamente estruturada e institucionalizada”.

3. Porque nem sempre assim é, porque parece haver uma tendência natural para esquecer que a economia deve estar submetida à ética, estamos confrontados com um grande desafio. Primeiro que tudo, somos, cada um, chamados a assumir comportamentos que testemunhem que é possível não deixar o mercado e a economia “andar em roda livre”. A conversão pessoal é sempre prévia a qualquer contributo que possamos dar. Até porque cada um só pode converter-se a si próprio. Mas assumido isto, não podemos ficar pelo nosso comportamento ou pelas nossas convicções, temos de colaborar, com muitos outros convertidos à mesma causa, a “mostrar, a nível tanto do pensamento como dos comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal.”
O Papa considera este objectivo como “o grande desafio que temos diante de nós”: superar a lógica mercantilista com a lógica da gratuidade, do dom, da fraternidade. O desafio é, como sabemos e sentimos, enorme, mas não podemos fugir dele:
- principalmente por razões humanas, porque, independentemente da gravidade da actual crise que causa(rá) muitas vítimas, todos somos seres humanos, membros da mesma família: trata-se, portanto, de viver a fraternidade, que é “uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade”;
- mas também por razões económicas, porque, como vimos atrás, sem confiança, sem gratuidade, sem atenção ao dom do outro, as relações deterioram-se, as empresas vão falindo, as pessoas caem no desemprego e a coesão social pode entrar em ruptura.

2009-12-30

CinV (77) Lógica do Mercado (nº 36)

Todos os acontecimentos humanos têm subjacente uma lógica, mesmo que nem sempre seja perceptível. O mercado não é excepção.
E, nos nossos dias, essa lógica mercantilista foi-se alastrando, contaminando e destruindo muitos dos sentimentos nobres próprios do ser humano, mergulhando-o no individualismo, na ganância e avidez do lucro a qualquer preço. Hoje quase nada escapa a essa mentalidade: perdemos muita da nossa capacidade de ser gratuitos, de estar disponíveis sem exigir contrapartidas. Particularmente na esfera económica, que parece só existir para fazer dinheiro, essa lógica torna-se avassaladora, omnipresente, como se fosse a solução para todos os problemas. O Papa chama a atenção para a debilidade desta mentalidade, sobretudo porque a economia está obrigatoriamente ligada a todos nós: “A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil”.
No mesmo tom falou o cardeal Odilo Scherer, na apresentação da “Campanha da Fraternidade” para o ano de 2010, no Brasil, ao afirmar que “a actividade económica, que tem como objectivo supremo, em vez da supressão das necessidades básicas do ser humano, o lucro a qualquer preço e a acumulação cada vez maior de bens, gera multidões de famintos, deixados à margem do grande processo económico, excluídos do bem comum”, ignorando que os objectivos prioritários da economia são: “pão na mesa, casa, educação, saúde e oportunidades de vida digna para todos os membros da família humana”.

Bento XVI parte de uma doutrina clássica da Igreja - tanto a actividade económica como a política têm como “finalidade a prossecução do bem comum” - para considerar que “é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição”.
Ora um dos truques da globalização tem sido o de ir alargando cada vez mais o fosso entre o agir económico, cujo âmbito é do tamanho do planeta, e o agir político, obrigado a refugiar-se em nichos mais ou menos estreitos e em países cada vez menos soberanos, quais anões de braços atados perante este polvo tentacular que os vai apertando com a cobra às suas vítimas.
Dito isto, o Papa esclarece que a Igreja nunca considerou “o agir económico como anti-social” e que, portanto, “a sociedade não tem que se proteger do mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte das relações autenticamente humanas”. Por sua natureza, “o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar da prepotência do forte sobre o débil”. A lei do mais forte não pode presidir à lógica das relações entre humanos, entre irmãos. Mas a realidade é outra, porque “o mercado pode ser orientado de modo negativo, não porque isso esteja na sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenas referências egoístas. Deste modo é possível conseguir transformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas é a razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não o instrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser questionado, mas o homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social”.
Apesar de a pessoa ser, no fundo, sempre a culpada e não o instrumento, talvez não seja apenas porque é mal utilizado, como sugere o Papa, mas porque possui uma “intrinsequicidade” de fascínio e sedução tão marcante que o dinheiro se torna quase divino, um verdadeiro deus para muitos. O problema é que, por sua natureza, não podem coexistir dois deuses, não há espaço para dois senhores, como o Evangelho adverte: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).

2009-12-29

CinV (76) Mercado e Justiça (nº 35)

Na frase inicial ontem citada, não analisei uma outra ideia, a do “o contrato como regra das suas relações”, ou seja, a da justiça.
Mas que justiça? A resposta vem logo a seguir: “O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais”. Como se tudo se resumisse a uma troca ou intercâmbio de bens sem nenhuma outra regra que não fosse o estipulado no contrato juridicamente validado. Ora envolvendo-se pessoas, e pessoas que vivem em desigualdade de circunstâncias e até de oportunidades, “esta” justiça é bem pouco para garantir o respeito pela dignidade humana. Até porque cada pessoa não vive isolada nem se resume à sua dimensão económica. Por isso “a doutrina social (da Igreja) nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza”.
Se as necessidades que todos precisamos de satisfazer se ficam meramente pelo “princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar”. Efectivamente o mercado precisa de estabilidade política e social. E a maior parte das lutas laborais resulta da maneira diferente como os vários actores interpretam esta estabilidade, que todos julgam indispensável, mas que apenas conseguem ver pelo prisma dos seus interesses, naturalmente divergentes. O Papa vem dar um contributo inestimável para este “diálogo” social: “ Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica.”. Cá temos de novo a confiança, mas agora acompanhada da solidariedade. Ao “e, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave”, o Papa poderia ter acrescentado, como o faz ao longo de toda a encíclica, que igual falta grave é a recusa da solidariedade.
Mas se não o escreveu explicitamente, afirmou-o de outra maneira ao falar, neste contexto, dos pobres: “Paulo VI sublinhava oportunamente o facto de que seria o próprio sistema económico a tirar vantagem da prática generalizada da justiça, uma vez que os primeiros a beneficiar do desenvolvimento dos países pobres teriam sido os países ricos (PP 49). Não se tratava apenas de corrigir disfunções, através da assistência. Os pobres não devem ser considerados um «fardo» (CA 28) mas um recurso, mesmo do ponto de vista estritamente económico”.
Esta recomendação envolve dois aspectos:
- os pobres não devem ser vistos apenas como um fardo, mas como um recurso até mesmo económico. Assim não se compreende que se perca a maior força produtiva e criativa, que são as pessoas, como denunciara já João Paulo II: “A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43);
- não se trata apenas de assistência: para muitos agentes económicos há uma distinção muito clara entre justiça e caridade; daí que Bento XVI recordasse, antes, que não basta a justiça comutativa, mas tem de estar associada à justiça distributiva e à justiça social. É altura de superar esta forma subtil de maniqueísmo, que fragmenta o ser humano entre o pobre, que deve ser tratado por instituições de assistência social, e a pessoa, que tem de ser considerada em todas as dimensões e deve ser tratada não por organizações estanques, mas por todos os agentes sócio-políticos. Por isso, mais à frente o Papa falará, por exemplo, da responsabilidade social da empresa (40). Isto é, o pobre não deve ser apenas objecto da caridade, mas também da justiça, pois trata-se de um membro da humanidade, para a a qual “Deus criou a terra e tudo o que ela contém para uso de todas as pessoas e de todos os povos” (GS 69).
Pode dizer-se, na linguagem popular, que o Papa vem denunciar o “amigos, amigos, negócios à parte”.

2009-12-28

CinV (75) Mercado e Confiança (nº 35)

O Papa inicia aqui uma reflexão mais aprofundada do mercado.
E começa por ligar mercado e confiança, precisamente numa altura em que se fala tanto da falta de confiança como um dos sustentáculos da crise: “O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos”.
Esta afirmação resume várias ideias importantes.

Confiança
Apesar da confiança não ser hoje uma virtude vivida como tal, ela torna-se obrigatória para o funcionamento do mercado. Na base da crise financeira estão uma confiança traída e depois uma desconfiança generalizada. A recuperação só pode ser completa quando a confiança for restaurada. Sem confiança, não há negócios: não porque os intervenientes amem a confiança, mas porque a quebra de confiança descredibiliza quem a comete e isso pode trazer-lhe amargas consequências.

Mercado como espaço privilegiado do encontro entre os operadores económicos
Já João Paulo II afirmara que “tanto a nível das nações como das relações internacionais, o livre mercado parece ser o instrumento mais eficaz” (CA 34), porque favorece a dinamização dos recursos, o intercâmbio e as respostas às necessidades e às preferências das pessoas, assegura a estabilidade da moeda e a firmeza das relações sociais e desenvolve a livre criatividade humana. Contudo muitas são os perigos elimitações, como a redução da pessoa a mero produtor e consumidor de mercadorias, a transformação o trabalho em mercadoria , a multiplicação de fenómenos de marginalização, exploração e miséria.

Bens e Serviços fungíveis
O adjectivo “fungíveis” é fundamental, pois o âmbito do mercado apenas abarca “as necessidades «solvíveis», que gozam da possibilidade de aquisição e os recursos «comercializavéis», isto é, capazes de obter um preço adequado. Mas existem numerosas carências humanas, sem acesso ao mercado” (CA 34). Por isso, não podemos cair na "idolatria do mercado" como se ele fosse a panaceia para todas as nossas necessidades. Esta idolatria é sustentada pela generalização de uma ideologia radical, que “confia fideisticamente a solução (dos problemas) ao livre desenvolvimento das forças de mercado” (CA 42), esquecendo que a orientação para o bem comum tem de ser o grande critério a respeitar.

Satisfação das Necessidades humanas
Este é o principal objectivo do processo económico. A pessoa, para viver, tem necessidade a satisfazer e, nas circunstâncias actuais, já não existe a autonomia da “casa” (oikós), onde cada um podia obter tudo o que precisasse. Por isso, João Paulo II reconhecia neste aspecto uma importante fonte de riqueza: “Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade actual” (CA 32).
Mas aparece logo a marca do pecado a funcionar, que acaba por estimular necessidades, muitas delas criadas artificialmente sem ter em conta o bem da pessoa: “Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais. Caso contrário, explorando directamente os seus instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objectivamente ilícitos e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual” (CA 36).

2009-12-27

NATAL - PAZ PARA TODOS OS CIDADÃOS DO MUNDO

Neste Natal, aproveitando uma sugestão de um amigo, resolvi fazer uma "brincadeira" juntando frases de vários tempos e várias culturas, numa homenagem a toda a humanidade, aos homens e mulheres de boa vontade ou de... má vontade, porque todos temos igual dignidade ontológica.
Com a colaboração da Renata, minha filhota, que me colocou as folhas que escrevi aqui no blog, aí vai o resulado final, um pouco torto, pois também a humanidade passa por momentos uns mais e outros menos rectos.
No final o texto está organizado em tipo postal: frente e verso de uma folha A4.





Deus, ao tomar-se Homem, praticou o gesto máximo de solidariedade. Assim todos somos chamados a ser solidários, tendo em conta três perguntas existenciais.

1ª QUEM SOU EU?



2ª COMO CUIDAR DO OUTRO?


3ª QUEM CONSIDERO IRMÃO?


As respostas exigem:

- verdade...


-... e não a falsidade ou a recusa da realidade



- conhecimento do que somos e podemos fazer



- não viver fechado em si


- cuidar dos outros






- ser construtor da paz


Procedendo assim, temos garantida uma vida eterna






POSTAL DE NATAL:



Fontes:

Natal de Giotto

Mantra Gayatri

Alá (Árabe naskh)

Grego Bíblico: J. M. BOVER, Novi Testamenti Biblia Graeca et Latina.

Hebraico: M. A. RODRIGUES, Gramática Elementar de Hebraico.

Mito Ugarítico: G. DEL OLMO LETE, Mitos y Leyendas de Canaan segun la tradición de Ugarit.

Outras: R. TOSI, Dizionario delle Sentenze Latine e Greche.

2009-12-25

Natal, utopia da paz

“Como são belos sobre os montes,
os pés do mensageiro
que anuncia a paz,
que traz a boa nova e
que proclama a salvação” (Isaías 52,7)

Chegou o Senhor da Paz!

Mas a paz é um bem frágil,
que precisa de ser defendida,
preservada das constantes ameaças e
construída todos os momentos,
sem desfalecimentos
nem desânimos.

Somos nós “fazedores de paz”?
Como estamos a construir a paz
connosco,
com a família,
com os vizinhos do prédio,
e da rua,
com os colegas de trabalho,
com os cidadãos da nossa cidade,
do nosso país ,
da Europa e
do mundo?

Paz e Alegria para todos!

2009-12-22

CinV (74) Fraternidade e Solidariedade

Gostaria de continuar a aprofundar um pouco mais a ideia de ontem: a “família única”, que deve ser a humanidade, tem de se fundamentar no dom da caridade como solidariedade (única) e da caridade como fraternidade (família).
Solidariedade deriva do latim solidus, “sólido, compacto, maciço”, portanto implica a ideia de algo que faz uma unidade dos seus vários constituintes. João Paulo II dedicou-lhe especial atenção. Não se ficou pela definição: “Não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos.” (SRS 38). Daí retirou várias consequências e termina equiparando-a à caridade: “A solidariedade é indubitavelmente uma virtude cristã. Na exposição que precede já foi possível entrever numerosos pontos de contacto entre ela e a caridade, sinal distintivo dos discípulos de Cristo. À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objecto da acção permanente do Espírito Santo. Por isso, ele deve ser amado, ainda que seja inimigo, com o mesmo amor com que o ama o Senhor; e é preciso estarmos dispostos ao sacrifício por ele, mesmo ao sacrifício supremo: «dar a vida pelos próprios irmãos» (cf. 1 Jo 3, 16)” (SRS 40): "Todos diferentes, todos iguais"
No fundo viver “esta” solidariedade é viver a caridade, o dom da caridade.

Recentemente, na apresentação desta encíclica no Senado italiano, o cardeal Bertone, analisou as relações entre solidariedade e fraternidade. A fraternidade “constitui o complemento e a exaltação do princípio de solidariedade. Com efeito, enquanto a solidariedade é o princípio de organização social que permite aos desiguais tornar-se iguais através da sua igual dignidade e dos seus direitos fundamentais, o princípio de fraternidade é o princípio de organização social que permite aos iguais ser diferentes, no sentido de poder expressar diversamente o seu plano de vida ou o seu carisma”.
Parece tratar-se de um jogo de palavras, mas não: é muito mais que isso. A solidariedade tem como objectivo tornar-nos, considerarmo-nos todos iguais, com os meus direitos, igualmente destinatários "da Terra e de tudo o que ela contém (GS 69), "sem excluir nem privilegiar ninguém" (CA 31). “Ajuda-nos a ver o «outro» — pessoa, povo ou nação — não como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalho e a resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim, como um nosso «semelhante», um «auxílio» (cf Gn 2, 18. 20), que se há-de tornar participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus” (SRS 39).
A fraternidade ultrapassa a solidariedade, mas exigindo-a. “Depois de” todos sermos considerados iguais, a fraternidade vem garantir que esta igualdade, que é radical, ontológica, porque todos pertencemos ao mesmo género humano, não pode ser um igualitarismo, mas tem de manifestar, respeitar, defender e promover as desigualdades que caracterizam cada pessoa e cada povo cad cultuta na unidade da família humana. Vem garantir o respeito pela identidade pessoal e cultural, a que todos temos direito: "Todos iguais, todos diferentes".
Assim viver “esta” fraternidade é viver a caridade, o dom da caridade.
Mas sendo interdependentes, não são a mesma coisa, como explica o cardeal Bertone: “Uma sociedade orientada para o bem comum não pode contentar-se com a solidariedade, mas tem necessidade de uma solidariedade que reflicta a fraternidade, uma vez que, enquanto a sociedade fraterna é também solidária, o contrário não é necessariamente verdadeiro”.

Por isso, Bento XVI fala do “ideal cristão de uma única família dos povos, solidária na fraternidade comum” (13) e faz a ponte com o desenvolvimento: “o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade” (34).

2009-12-21

CinV (73) Caridade como dom (nº 34)

A “caridade” é uma presença constante em toda a encíclica normalmente associada a outros valores fundamentais como a verdade e a justiça.
O Papa finaliza este nº, associando o dom da caridade à justiça. É claro que a justiça, a autêntica justiça não pode faltar, pois sem justiça nunca pode haver caridade. A justiça é, digamos assim, ontologicamente,anterior à caridade, tal como o ser pessoa é anterior ao ser cristão. Eu nasço primeiro como pessoa e só depois me faço cristão. Nascer não é uma opção minha, ser cristão é ou devia sê-lo. O Papa já referira atrás, como vimos, esta articulação vital entre caridade e justiça, apresentando a justiça como o primeiro passo da caridade: “A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é «meu»; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é «dele», o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso «dar» ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é «inseparável da caridade», é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, «a medida mínima» dela” (6).
Agora volta à mesma ideia, mas acrescentando algo mais, naquele estilo circular que aparece muito neste capítulo: “Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade”.

Esta ligação da caridade com a gratuidade e a fraternidade surge da consideração da caridade a partir da perspectiva do dom, cujas características apresenta assim: “Por sua natureza, o dom ultrapassa o mérito; a sua regra é a excedência”. Creio que não existe, em português, a palavra excedência e, talvez por isso, numa tradução portuguesa se leia “excelência”. Mas o termo "oficial" (latino) exsuperantia significa “qualquer coisa que supera, que está a cima”, derivado do verbo exsuperare, “elevar-se acima de”, que introduz uma ideia algo diferente de excelência, embora próximo.
A caridade, como dom, por que é dom, assume, pois duas dimensões: a de ser dada a todos e a de ser algo que nos supera, que ultrapassa as nossas forças. Estas duas vertentes têm consequências fundantes:
- porque é algo que é dado a todos torna-se o fundamento estruturante da “única” comunidade humana: “Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins";
- porque é algo que nos supera, só através da caridade poderemos construir uma comunidade fraterna: “A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de Deus-Amor”.
Assim voltamos à ideia tão repetida e querida da doutrina da Igreja de que a humanidade constitui uma única família, mas introduzindo algo nem sempre bem explicitado. A expressão “uma única família” adquire uma ressonância maior e desdobra-se em duas ideias “quase” independentes. É única porque o dom da caridade é dado igualmente a todos. É família porque só a caridade pode fazer da humanidade uma fraternidade.
Portanto a família única, envolve a caridade como solidariedade (única) e a caridade como fraternidade (família).

2009-12-19

CinV (72) Liberdade

Continuando no nº 24 da Spe Salvi, lá encontramos o que significa “o convite à liberdade”.

Um dos aspectos é a sua relação com as estruturas: “O recto estado das coisas humanas, o bem-estar moral do mundo não pode jamais ser garantido simplesmente mediante as estruturas, por mais válidas que estas sejam”.
Efectivamente as estruturas sociais, sejam de que tipo forem, são sempre um meio, um instrumento e nunca um fim. O que parece uma evidência nem sempre é assim entendido, na nossa sociedade e também na própria Igreja. Por exemplo, acontece que muitos militantes católicos absolutizam os seus grupos ou movimentos, ignorando os outros, acabando por ficar desenquadrados, qual gueto, da comunidade que é a Igreja-Comunhão. Já o Concílio alertava para esse perigo: “As associações não têm em si o seu fim, mas devem servir à missão que a Igreja tem de cumprir para com o mundo. A sua força apostólica depende da conformidade com os fins da Igreja e do testemunho cristão e espírito evangélico de cada um dos membros e de toda a associação” (AA 19).
Todos concordamos com a existência e a necessidades de estruturas, sem as quais nenhuma sociedade se podia organizar no serviço ao bem comum e à justa harmonia social. Mas se “tais estruturas são não só importantes, mas necessárias, não podem nem devem impedir a liberdade do homem”. Por isso, “se houvesse estruturas que fixassem de modo irrevogável uma determinada – (mesmo) boa – condição do mundo, ficaria negada a liberdade do homem e, por este motivo, não seriam de modo algum, em definitivo, boas estruturas”.

Daqui decorre uma consequência imediata: se são um meio e não um fim, elas devem ter, por detrás de si, valores e critérios, pois “inclusive, as melhores estruturas só funcionam se numa comunidade subsistem convicções que sejam capazes de motivar os homens para uma livre adesão ao ordenamento comunitário”.
Dando mais um passo, somos conduzidos a mais uma implicação da liberdade: “A liberdade necessita de uma convicção”, que “não existe por si mesma”, pelo que “deve ser sempre novamente conquistada comunitariamente”.

Um terceiro aspecto é que a liberdade é um bem frágil, sempre sujeita ao risco de se estilhaçar e perder toda a sua capacidade libertadora: “Visto que o homem permanece sempre livre e dado que a sua liberdade é também sempre frágil, não existirá jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado. Quem prometesse o mundo melhor, que duraria irrevogavelmente para sempre, faria uma promessa falsa (já que) ignora a liberdade humana”.

Porque, e este é um outro aspecto, se trata de um bem frágil, não só deve ser continuamente cuidada e conservada, mas também “deve ser incessantemente conquistada para o bem. A livre adesão ao bem nunca acontece simplesmente por si mesma”. Necessita de esforço, luta e, portanto de uma educação adequada.

O Papa aqui não o refere, mas a liberdade apresenta três dimensões constitutivas: a autonomia, que significa a liberdade de escolher; a imunidade, isto é, estar livre de qualquer coacção externa; e a “capacitação”, ou por outras palavras, a capacidade de acção, de escolha, pois, como já referi, a vida é sempre feita de escolhas, boas, más ou indiferentes.

Fecharia este parêntese, com um aviso de João Paulo II: “Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a liberdade é fim em si mesma, que cada homem é livre na medida em que usa da liberdade como quer, e que para isto é necessário tender-se na vida dos indivíduos e das sociedades. Pelo contrário, a liberdade só é um grande dom quando dela sabemos usar conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor uso da liberdade é a caridade, que se realiza no dom e no serviço” (RH 21).
E cá estamos de novo no dom e no serviço, no qual a caridade se realiza.

2009-12-18

CinV (71) Esperança cristã

Esta referência insistente na esperança, sugere-me que faça um parêntese para aprofundar um pouco mais o pensamento do Papa, que, como é sabido, dedicou a sua segunda encíclica (Spe Salvi: 30.Nov.2007) à esperança. E aproveitaria a sua sugestão de relermos o nº 24.
Logo a abrir, coloca duas questões “O que é que podemos esperar? E o que é que não podemos esperar?”.
Há vários modos para descrever a esperança: será a fé em movimento, o garante da nossa sociabilidade, o motor da nossa acção. Temos esperança porque temos fé ou temos fé porque temos esperança? O que faríamos se não tivéssemos esperança, se não “acreditássemos” que as nossas acções podem levar-nos a algum lado e a contribuir para um mundo melhor? Como poderíamos não cair no desânimo se não fosse a esperança em dias melhores, como a esperança num Messias salvou do desespero o “povo eleito” quando do exílio na Babilónia?
Mas a esperança precisa de um forte conteúdo: uma esperança sem conteúdo não é esperança. Contudo, nem todos os conteúdos servem para alimentar uma esperança autêntica.
Por isso, Bento XVI, em resposta às suas questões iniciais, faz uma distinção entre o plano material e o plano ético:
- “devemos constatar que um progresso por adição só é possível no campo material. Aqui, no conhecimento crescente das estruturas da matéria e correlativas invenções cada vez mais avançadas, verifica-se claramente uma continuidade do progresso rumo a um domínio sempre maior da natureza”;
- no domínio ético, contudo, a dinâmica é outra, porque aí aparece um novo actor, a liberdade: “no âmbito da consciência ética e da decisão moral, não há tal possibilidade de adição, simplesmente porque a liberdade do homem é sempre nova e deve sempre de novo tomar as suas decisões”.
A liberdade “baralha” a simplicidade dos processos rectilíneos, como seria o caso, para muitos, do progresso material, não fora a circunstância deste tipo de progresso poder tornar-se autofágico, já que os seus avanços e descobertas carregam consigo sementes de destruição a exigir contínuas rectificações. Os processos humanos são, contudo, muito complexos, mais até do que nós imaginamos, sobretudo quando se trata de fazer opções. Ora acontece que qualquer estilo de vida exige opções, sejam elas fundamentadas e assumidas, impostas por terceiros ou resultantes do “deixar andar”.
É por isso que a liberdade, no seu sentido nobre, tem várias implicações:
- obriga a que as nossas decisões “nunca apareçam simplesmente já tomadas em nossa vez por outros”, pois, nesta situação, “de facto, deixaríamos de ser livres”;
- pressupõe, de algum modo, um “começar do nada”, não porque não haja nada (existem milénios de património moral da humanidade), mas porque cada um, por ser livre, pode escolher o que quiser e até “fazer tábua rasa” do que existe: “nas decisões fundamentais, cada homem, cada geração é um novo início”.
Esta afirmação deve ser bem compreendida, porque, objectivamente, e esta é uma das grandes diferença entre o homem e os animais, cada geração nunca começa do nada nem material nem espiritualmente: “Certamente as novas gerações, tal como podem construir sobre os conhecimentos e as experiências (materiais) daqueles que as precederam, podem (também) haurir do tesouro moral da humanidade inteira. Mas podem também recusá-lo, pois este não pode ter a mesma evidência das invenções materiais. O tesouro moral da humanidade não está presente como o estão os instrumentos que se usam; aquele existe como convite à liberdade e como sua possibilidade”.
Este convite à liberdade obriga-nos a perceber um pouco melhor aquilo que a liberdade implica.

2009-12-17

CinV (70) Lógica do Dom e a Economia (nº 34)

A dificuldade em sentirmos “a admirável experiência do dom” não tem apenas consequências na nossa vida pessoal. Um dos campos onde os seus efeitos são mais perniciosos é o da economia e disso temos “uma prova evidente nos dias que correm” visível em várias atitudes e até nas nossas “certezas”:
- a nossa mentalidade prometeica de que tudo podemos e de que nada nos está proibido: “a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na história apenas com a própria acção induziu o homem a identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acção social”;
- a desmentida, mas bem vivida, separação ente a economia e a ética: “a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não deve aceitar «influências» de carácter moral, impeliu o homem a abusar dos instrumentos económicos até mesmo de forma destrutiva";
- a violação da liberdade que daqui decorre: “Com o passar do tempo, estas convicções levaram a sistemas económicos, sociais e políticos que espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não foram capazes de assegurar a justiça que prometiam”;
- a eliminação do nosso horizonte da esperança cristã, a qual “constitui um poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento humano integral, procurado na liberdade e na justiça”.

Aqui o Papa remete-nos para a sua anterior encíclica sobre a esperança, onde dá conta de uma “transição desconcertante”. Antes da época moderna, “a recuperação daquilo que o homem, expulso do paraíso terrestre, tinha perdido esperava-se da fé em Jesus Cristo, e nisto se via a «redenção». Agora, esta «redenção», a restauração do «paraíso» perdido, já não se espera da fé, mas da ligação recém-descoberta entre ciência e prática. Com isto, não é que se negue simplesmente a fé; mas, esta acaba deslocada para outro nível – o das coisas somente privadas e ultraterrestres – e, simultaneamente, torna-se de algum modo irrelevante para o mundo. Esta visão programática determinou o caminho dos tempos modernos, e influencia inclusive a actual crise da fé que, concretamente, é sobretudo uma crise da esperança cristã. Assim também a esperança, segundo Bacon, ganha uma nova forma. Agora chama-se fé no progresso…. Ao longo do sucessivo desenvolvimento da ideologia do progresso, a alegria pelos avanços palpáveis das potencialidades humanas permanece uma confirmação constante da fé no progresso enquanto tal” (Spe Salvi 17).
Para que o ser humano não fique fechado na sua auto-suficiência, é necessário, pois, um retorno à esperança, porque “ a esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade ”.
Este retorno é particularmente urgente num tempo de crise. As dificuldades arrastam geralmente as pessoas para o desânimo, o descrédito nos outros, o medo do que lhes poderá vir a acontecer e também o medo do que os outros lhe podem “tirar”, tudo isto muitas vezes convertido numa paralisia angustiante e demolidora.
João Paulo II ensinava, na Carta preparatória do Jubileu 2000, que “a atitude fundamental da esperança, por um lado, impele o cristão a não perder de vista a meta final que dá sentido e valor à sua existência inteira e, por outro, oferece-lhe motivações sólidas e profundas para o empenhamento quotidiano na transformação da realidade a fim de a tornar conforme ao projecto de Deus” (Tertio Millenio Adveniente, 43). Por isso, “mesmo frente às dificuldades da vida presente e perante as dolorosas experiências de prevaricações e de falhanços do homem na história, a esperança é a fonte do optimismo cristão. Certamente a Igreja não pode fechar os olhos perante a abundância do mal que existe no mundo. Contudo, sabe que pode contar com a presença vitoriosa de Cristo e nessa certeza inspira a sua acção longa e paciente” (Audiência Geral 27.Maio.1992).

2009-12-16

CinV (69) Lógica do dom e da gratuidade (nº 34)

É difícil estabelecer, como já referi, fronteiras bem definidas entre o dom e a gratuidade, que ora aparecem associados ora surgem isolados.
Bento XVI começa por recordar que “o ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência”. Acontece que a grande maioria de nós não tem uma verdadeira consciência dessa dimensão estruturante, porque:
- temos uma “visão meramente produtiva e utilitarista da existência”;
- estamos convencidos, erradamente, de que somos os únicos autores de nós próprios, da nossa vida e da sociedade;
- preferimos um “encerramento egoísta em nós mesmos, que provém, se queremos exprimi-lo em termos de fé, do pecado das origens”;
- muitas vezes não reparamos que vivemos num mundo, onde, em consequência desse pecado, se cruzam “violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (OA 37) e que esta ambiguidade está presente em todos os âmbitos da vida: “Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenómenos sociais e na construção da sociedade. «Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e dos costumes»”.
Podemos resumir tudo numa única frase: não temos consciência do dom, de sermos dom.

João Paulo II já falara do dom e da gratuidade com palavras muito fortes:
- numa, apresenta-nos o dom e a gratuidade,como resposta à nossa sociedade de consumo e às suas consequências inevitáveis na formação dos jovens: “É muito forte sobre os jovens o fascínio da chamada "sociedade de consumo", que os torna submissos e prisioneiros de uma interpretação individualista, materialista e hedonista da existência humana. O "bem-estar", entendido materialmente, tende a impor-se como único ideal de vida, um bem-estar que se obtém a qualquer preço: daqui, a recusa de tudo o que exige sacrifício e a renúncia a procurar e a viver os valores espirituais e religiosos. A "preocupação" exclusiva do ter suplanta o primado do ser, com a consequência de se interpretarem e viverem os valores pessoais e interpessoais não segundo a lógica do dom e da gratuidade, mas segundo a lógica da posse egoísta e da instrumentalização do outro” (Pastores dabo vobis, 8);
- noutra, faz uma aplicação mais “fina”, mais ao nível de cada um de nós, tendo como objectivo a promoção de uma espiritualidade de comunhão: “Espiritualidade da comunhão é ainda a capacidade de ver antes de mais nada o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de Deus: um «dom para mim», como o é para o irmão que directamente o recebeu. Por fim, espiritualidade da comunhão é saber «criar espaço» para o irmão, levando «os fardos uns dos outros» (Gal 6,2) e rejeitando as tentações egoístas que sempre nos insidiam e geram competição, arrivismo, suspeitas, ciúmes. Não haja ilusões! Sem esta caminhada espiritual, de pouco servirão os instrumentos exteriores da comunhão. Revelar-se-iam mais como estruturas sem alma, máscaras de comunhão, do que como vias para a sua expressão e crescimento” (Novo Millenio Ineunte, 43);
- numa outra, destaca o papel estruturante na estabilidade e na função da família: “As relações entre os membros da comunidade familiar são inspiradas e guiadas pela lei da «gratuidade» que, respeitando e favorecendo em todos e em cada um a dignidade pessoal como único título de valor, se torna acolhimento cordial, encontro e diálogo, disponibilidade desinteressada, serviço generoso, solidariedade profunda” (Familiaris Consortio, 43).

Bento XVI proclam que só “a caridade na verdade coloca o ser humano perante a admirável experiência do dom.”

2009-12-15

CinV (68) Estilo circular

Até agora tenho procurado analisar a encíclica número a número, mas neste capítulo vou sentir dificuldade dado o modo de exposição, a que ontem chamei de circular. Isto significa que cada número não trata apenas de um assunto, seguindo um método pedagógico, mas vai utilizando os vários conceitos, intercambiando-os ou associando-se de modos variados, repetindo-os em contextos diferentes. Este é um aspecto que deverá ser tido em conta na leitura da encíclica.
Mesmo correndo o risco de me repetir, gostaria de exemplificar o que acabo de dizer com o modo como aparecem e se articulam, por exemplo, o dom, a gratuidade e a fraternidade, valores que tornam este um dos capítulos mais interessante do ponto de vista doutrinal, insistindo na lógica da gratuidade, que contrapõe a qualquer outra e que considera indispensável estender a todos os âmbitos da vida pessoal e social.

Logo a abrir temos uma associação clara entre dom e gratuidade em contraposição com a mentalidade utilitarista da vida: “A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilitarista da existência” (34).
A esta trilogia acrescenta pouco depois a justiça, colocando-a ao mesmo nível: “a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade” (34).
Como se de uma sinfonia se tratasse, introduz uma “nova variação” ao falar de “uma economia da gratuidade e da fraternidade” que deve regular não só a sociedade civil mas também o mercado e o Estado, associando-lhe um novo conceito, o da “reciprocidade fraterna” (38), em contraponto com o actual espaço económico onde predomina uma lógica mercantilista, que tende a espalhar-se por todos os âmbitos da vida pessoal e social. Por isso, insiste que também “nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão económica.” (36).

Por aqui se vê, como não é fácil a análise número a número. Contudo, cada número tem cambiantes e novidades que a visão de conjunto nem sempre permite destacar.
Dada esta justificação, vou preparar-me para continuar estas minhas notas sobre uma encíclica que merece uma leitura cuidada e que, como já foi dito por vários comentadores e políticos, é uma contributo fundamental, neste tempo de crise, não só porque aponta as causas mas sobretudo porque propõe soluções.

2009-12-14

CinV (67) Capítulo III

O próprio título “Fraternidade, Desenvolvimento económico e Sociedade Civil”, só por si, faz-nos logo suspeitar da riqueza de temas que serão tratados. Contudo, ainda fica muito por imaginar, pois este capítulo é um verdadeiro entrançado onde continuamente se cruzam e repetem motivos como o dom, a gratuidade, a fraternidade e a justiça em contraponto com o mercado e a globalização económica.
Estes valores, tão queridos para a doutrina da Igreja, tornam-se as ideias força, que, ao longo de todo o capítulo, se vão enredando numa circularidade, mais típica de João Paulo II: a mesma ideia é analisada numa perspectiva, depois aparentemente abandonada, para ser retomada acrescentando algo de novo.
Assim vemos que a “economia da gratuidade e da fraternidade” deve presidir não só à sociedade civil, mas também ao mercado e ao Estado. Até porque “quando o Estado e o mercado se põem de acordo” as consequências prontamente ferem gravemente a cidadania: definha a solidariedade entre os cidadãos, diminui a participação e a adesão ao bem comum, enfraquece o serviço gratuito, que “são realidades diversas do «dar para ter», próprio da lógica da transacção, e do «dar por dever», próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei do Estado”. Porque falha no seu fundamento, o mercado ignora o bem comum, separando o “agir económico do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição”. E ao violar a justiça, o mercado põe em causa a coesão social e origina uma grave falta de confiança, ambas, curiosamente, indispensáveis ao seu próprio bom funcionamento. Além disso, a lógica mercantilista não só se opõe à lógica do dom e da gratuidade (e este é “o grande desafio que temos diante de nós”), mas ignora também que toda a decisão económica tem consequências morais, alargando a brecha entre a economia e a ética.
Por isso, este tempo de globalização exige uma nova cultura empresarial, pois “a gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência”. Mas requer também profundas mudanças no modo de conceber a empresa. A deslocalização das empresas e a excessiva liberdade do mercado de capitais são particularmente geradoras de injustiças quando se pensa que “investir é apenas um facto técnico e não humano e ético”.
Para se poder dar uma resposta adequada a estes graves perigos exige-se uma “autoridade política” que proceda “à realização duma nova ordem económico-produtiva, responsável socialmente e à medida do homem”. Não é aceitável que a actual economia globalizada elimine a função dos Estados ou os obrigue a uma cooperação mais intensa ao serviço do seu interesse. Os riscos de tal cooperação estendem-se mesmo às ajudas internacionais impedindo-as de “apoiar a consolidação de sistemas constitucionais, jurídicos, administrativos nos países que ainda não gozam de tais bens” e de “reforçar as garantias próprias do Estado de direito”.
A globalização, que está na base de tantas injustiças nacionais e internacionais, “é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões”. Os seus riscos e perigos só “poderão ser superados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica e ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de humanização solidária”.

Procurei, um pouco atabalhoadamente, elencar alguns dos problemas abordados neste capítulo. Agora é tempo de os analisar com mais detalhe.

2009-12-13

CinV (66) Felicidade (nº 33)

Curiosamente nesta longa encíclica, a palavra felicidade aparece apenas duas vezes (33; 52) mas só neste nº há uma ligeira avaliação, pela negativa, da sua natureza: “a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na história apenas com a própria acção induziu o homem a identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acção social”.
De qualquer modo, no fundo, todos procuramos a felicidade; nem sempre da maneira mais correcta, mas o “ser feliz” é uma ânsia universal. Talvez por isso ela tenha sido um dos caminhos mais aliciantes de prender a atenção das pessoas. E nem sempre pelos motivos mais nobres.
Assim poderemos falar de várias formas de felicidade.

A felicidade, que vem do ter coisas ou até apenas do mero exercício de comprar, é uma felicidade infeliz, já que nos arrasta para “uma insatisfação radical, porque se compreende imediatamente que, se não se está premunido contra a inundação das mensagens publicitárias e da oferta incessante e tentadora dos produtos, quanto mais se tem mais se deseja, enquanto as aspirações mais profundas restam insatisfeitas e talvez fiquem mesmo sufocadas” (SRS 28).

A felicidade, que vem do prazer nas suas várias versões, é uma felicidade efémera. Esgota-se, como palha a que se ateia o fogo, tanto mais rapidamente quanto maior é a paixão. Ou então, dura ainda menos, quando o efeito do álcool ou da droga termina numa ressaca dolorosa. Então perde-se a “imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais. Caso contrário, explorando directamente os seus instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objectivamente ilícitos, e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual” (CA 36).

A felicidade, que vem do poder, tem, dizem alguns, uma dimensão erótica quase insuperável. Alimenta-se dessa sensação inebriante de “poder” dispor dos outros e das coisas a seu bel-prazer, de fazer e mandar fazer o que lhe apetece, podendo tornar-se numa verdadeira alienação e num exercício de domínio ditatorial, se não permitir que a atenção aos outros e o seu bem-estar não moderarem tal dinâmica.

A felicidade, que vem da “consciência do dever cumprido”, isto é, da convicção de viver coerentemente com as suas convicções, é uma felicidade interior mais genuína, mais à dimensão da pessoa, porque soube resistir às dificuldades inerentes aos seus compromissos e sentiu -se senhora dos seus actos e não controlada pelos vários “deuses esquecidos” que dominam grande parte da vida das pessoas. Sentir-se senhor de si e da sua vida em vez de ser empurrado pela vida dá uma felicidade que não sendo ruidosa cala no fundo do coração.

A felicidade, que vem do serviço aos outros, é uma felicidade também muito íntima e profunda, que nem as dificuldades do estar-ao-serviço conseguem apagar. Também esta não é vistosa nem barulhenta, mas é uma felicidade autêntica e libertadora, que nos faz sentir realizados como pessoa. É que o ser humano é um ser-para-os-outros: “Criado por Deus para a felicidade, o ser humano encontra na sua dedicação ao bem comum da comunidade em que se insere os meios para realizar essa felicidade pessoal e social” (Carta da CEP, Responsabilidade solidária pelo bem comum, 1).

Finalmente, para os crentes, a felicidade vem do seu encontro com Deus, no mais fundo da sua intimidade. Uma felicidade que pode passar pela “noite escura”, pelo êxtase ou pela alegria interior normal, mas sempre consciente de que a felicidade só atingirá a sua plenitude no Reino de Deus. É esta felicidade que nos leva a viver, mesmo no meio das dificuldades, com alegria, aquela alegria que Palavra da Liturgia de hoje repete tão insistentemente: “Clama jubilosa… solta brados de alegria… exulta, rejubila de todo o coração” (Sof 3,14); “Entoai cânticos de alegria” (Is 12, 6); “Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo alegrai-vos” (Fil 4,4).

De um modo ou doutro, todos andamos atrás da felicidade. Os caminhos são muitos. A opção está nas mãos de cada um. O mal é que muitas vezes não optamos; deixamo-nos levar…

Desconstrução da Consciência Ética

Vivemos uma situação de baixa, baixíssima, densidade ética. A nossa sociedade vive sem critérios, num verdadeiro desnorte no rumo a seguir. E não se trata apenas do “cidadão” comum, mas atravessa toda a sociedade até ao topo passando pelos vários níveis intermédios.
Estamos a viver uma das crises mais graves e a pior não será a económica ou financeira. Olhemos os nossos políticos, porque, sendo tão mediáticos, tornam-se exemplo a seguir.
Que regras pautam os partidos? Terão os deputados consciência do que é o serviço público? Que respeito têm uns pelos outros? Estão os nossos governantes a servir o interesse nacional ou a tentar acalmar, com cedências inaceitáveis, os corporativismos tão abundantes na sociedade e sem preocupação com o bem comum? Temos um primeiro-ministro com “falta de carácter”? Se temos, será só ele, ou muitos outros, incluindo os que os acusam? E se temos, por que o elegemos ou isso não tem qualquer significado para nós? Por que é tão difícil legislar contra a corrupção, que tanto mina a nossa sociedade e contamina as relações sociais a todos os níveis? E poderia multiplicar os exemplos "por aí abaixo".

Parece-me que estamos na fase terminal da desconstrução da consciência ética, que deveria presidir à organização da nossa sociedade.
Eu diria que perdemos a noção do “remorso”, uma campainha de alarme da nossa conduta, tal como a dor é um indicativo do nosso estado de saúde. Hoje quase ninguém sente remorso. E, portanto, nada temos a emendar. Habituamo-nos a fazer aquilo de que gostamos, acicatados por uma cada vez mais eficiente máquina geradora de necessidades artificiais, irresistivelmente agradáveis, e por uma indústria de entretenimento assente no estímulo ao uso e abuso de “drogas” alienantes, geradoras de “felicidades” artificiais e efémeras, que só degradam a pessoa e a tornam receptiva ao “vício”. Perante vícios tão atractivos, a “virtude” é preterida, os valores éticos são ignorados e as normas “seguras” para um futuro melhor são abandonadas.
Esta desconstrução nota-se também na dificuldade em suportar qualquer contrariedade ou “sacrifício”. Perdemos o estofo interior para suportar dificuldades, que fazem parte estruturante da vida. Para remediar multiplicamos as substâncias psicotrópicas e anti-depressivas.

Consequência desta falta de remorso e da incapacidade de aceitar ser contrariado, o outro está a tornar-se para nós um adversário ou um inimigo. Começámos pelo individualismo, que se fechava em si mas ainda via gente à sua volta, passámos ao indiferentismo que, se vê, não olha, para acabarmos no desejo de abater o outro. A situação piora, quando o outro tem ideias diferentes das minhas. Este é um dos grandes dramas da nossa vida política: há intervenientes que não consideram os outros como colegas de caminhada para a construção de um país mais justo, mas inimigos a abater ou até a “ferir de morte”. Bento XVI diz que “a sociedade globalizada faz-nos vizinhos mas não irmãos” (CV 19). Mas eu penso que nem vizinhos somos, pois não conhecemos os que vivem perto e até sucedeu já alguém morrer em sua casa e os vizinhos só descobrirem dias, meses ou até anos depois. Que vizinhança é esta!?

Neste contexto, a atribuição do Prémio Pessoa a D. Manuel Clemente ganha um significado muito relevante. Ele foi escolhido pelo seu sentido de humanidade, bom senso, atenção aos sinais dos tempos de cada instante histórico, espírito aberto sempre preocupado em fazer pontes, pela sua intervenção decidida contra a exclusão e marginalização, a sua capacidade de tolerância, a sua coragem de dar sempre a cara na defesa dos seus princípios. E até a sua noção de felicidade é instrutiva: “estar com as pessoas”; "estar" no sentido de “serviço, de promoção e desenvolvimento”.
D. Manuel Clemente, nesse seu “firme propósito” de simplicidade, humanidade e sentido de serviço, é um bom exemplo para imitarmos na luta contra este marasmo que nos cerca. O seu Prémio é um desafio para ele, mas sobretudo para todos nós, incluindo os seus colegas bispos.

2009-12-10

CinV (65) Civilização do Amor

A melhor resposta à globalização económica está na globalização do amor. Aliás é este o grande desafio dos cristãos: testemunhar o amor de Deus, que quis amar-nos em primeiro lugar e de modo gratuito, e o amor ao próximo, que tem de ser sinal e prova desse amor que Deus nos tem, porque “amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus” (DCE 15).
Para melhor responder aos desafios da globalização, é instrutivo termos presente dois episódios bíblicos: a torre de Babel (Gn 11,1-9) e o Pentecostes (Act 2,1-13). Ambos são modelos de universalismo, mas assentam em diferentes concepções de unidade:
- na Torre de Babel, a unidade anula as diversidades humanas (todos falam uma mesma língua e todos constroem uma mesma obra); no limite, conduz à negação do sujeito e à dispersão das pessoas tornadas incapazes de comunicarem e de se entenderem;
- no Pentecostes, a unidade respeita a diversidade das pessoas (cada um ouve a Palavra de Deus na sua língua), permitindo que cada um entenda e se possa abrir aos outros sem deixar de ser ele próprio (todos são capazes de entender na sua própria língua) numa perspectiva de unidade orientada para o desenvolvimento autêntico de todas as pessas e da pessoa na sua totalidade.

Daqui se percebe que é obrigatória a passagem de Babel para o Pentecostes. A oscilação entre o particularismo e o universalismo, ao longo de todo o AT, culminou com o universalismo da comunidade cristã potenciado por Jesus Cristo que nos "permite" chamar “Abba, Pai” (Gal 4,6; Rom 8,15), isto é, nos faz perceber que ao tornarmo-nos filhos de Deus, filhos do mesmo Pai, nos tornámos irmãos de todos os homens. Perceber esta fraternidade universal não decorre automaticamente da natureza humana, pois só pode ser alcançado pelo dom do Espírito de Jesus. Desta fidelidade ao dom de Jesus decorrem três consequências fundamentais para a globalização:
- a radical igualdade de todos, o que exclui qualquer discriminação;
- a legítima diversidade entre as pessoas; o que exclui todo o uniformismo;
- estas diferenças devem ser vistas num perspectiva secundária frente ao que é fundamental: a salvação de Deus que se manifesta na filiação e na fraternidade; o que exclui a absolutização de qualquer uma das formas de diversidade.

Compete, pois, a todos os que se reconhecem no universalismo do Pentecostes lutar para que a globalização se oriente neste sentido, recusando o de Babel, sendo agentes e protagonistas desta civilização nova que, para os cristãos, sempre na fidelidade ao Espírito do Pentecostes e na esperança da sua promessa de fazer “novas todas as coisas” (Ap 21,5), deve assumir a configuração:
- de uma “cultura da solidariedade” (SRS 38-40);
- de uma “cultura da doação”: “A economia tornar-se-á mais humana mediante um conjunto de reformas a todos os níveis, inteiramente orientadas para o melhor serviço ao verdadeiro bem comum, isto é, mediante uma visão ética fundamentada sobre o valor infinito de cada homem e de todos os homens; uma economia que se deixa inspirar pela necessidade de criar relações entre os povos, com base num constante intercâmbio de dons, numa verdadeira cultura da doação que deve capacitar todos os países para responder às necessidades dos menos afortunados”("Cor Unum"; A fome no mundo (4.Out.1996), 40);
- da “civilização do amor”: “A sua dialéctica não será o ódio, a disputa, a avareza, mas o amor, o amor gerador de amor, o amor do homem para com o homem, não por um qualquer interesse transitório e equívoco ou por alguma condescendência amarga e mal tolerada, mas por amor a Ti: a Ti, ó Cristo, descoberto no sofrimento e na necessidade de todos os nossos semelhantes. A ‘civilização do amor’ prevalecerá no meio da inquietação das implacáveis lutas sociais e dará ao mundo a sonhada transformação da humanidade finalmente cristã” (Paulo VI; Homilia de encerramento do Ano Santo: 25.Dez.1975).

2009-12-09

CinV (64) Globalização (nº 33)

Globalização é uma das palavras que aparece mais vezes na encíclica (cerca de 20 vezes) especialmente o nº 42, onde faz uma análise mais desenvolvida
Contudo, neste nº 33, Bento XVI afirma que, desde Paulo VI, “a novidade principal foi a explosão da interdependência mundial,” mais conhecida por globalização. Originária dos países desenvolvidos acabou por se estender a todo o planeta e envolver todas as economias. Trata-se de um fenómeno ambivalente ou mesmo ambíguo:
- por um lado, “foi o motor principal para a saída do subdesenvolvimento de regiões inteiras e, por si mesmo, constitui uma grande oportunidade”, que poderia servir de exemplos a muitas outras regiões e países;
- por outro, porque ldevido à falta do “guia da caridade na verdade, este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até agora desconhecidos e de novas divisões na família humana”.

João XXIII tinha já intuído o fenómeno (MM 208-220) e Paulo VI falara mesmo dele (PP 3), até porque entretanto tinham surgido condições para o seu aparecimento:
- no campo sócio-político, a criação da ONU (1945) com os objectivos de organizar um mundo destruído pela guerra e de evitar novos conflitos armados;
- no campo económico, a criação de instituições financeiras internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial, destinadas a reorganizar a economia mundial desregulada com a guerra.

Como vimos, a globalização é um fenómeno com aspectos negativos e positivos.
Dos aspectos negativos, podem referir-se a criação de fracturas sociais de carácter estrutural:
- a fractura homem-natureza, devido à sua febre desenvolvimentista que quebrou o equilíbrio planetário com a crescente poluição e a produção de resíduos não recicláveis;
- a fractura produtivos-improdutivos, com o triunfo definitivo do capitalismo financeiro, que vitima sobretudo as pessoas e os povos improdutivos;
- a fractura capital-trabalho, com a sua lógica do lucro, geradora de violações graves dos princípios estruturantes da dignidade da pessoa e da família humana:
- opção pelos pobres: mil milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia;
- destino universal dos bens: 60% da população mundial detém apenas 5,6% da riqueza;
- solidariedade: fomenta as desigualdades e condiciona as ajudas;
- subsidiariedade: recusa ou minimiza a participação dos cidadãos e dos países.
Do lado dos aspectos positivos, deve creditar-se-lhe a grande oportunidade para uma crescente tomada de consciência:
- ecológica, que levar-nos-á a um novo relacionamento com o meio ambiente, a três níveis: reconciliação consigo mesmo (ecologia mental), convivência com os outros (ecologia social) e respeito para com a natureza (ecologia ambiental);
- planetária, qua judará a interiorizar que todos somos cidadãos de um único mundo e responsáveis por todos (SRS 38) e que para problemas globais só pode haver soluções globais.

“Por isso, conclui Bento XVI, a caridade e a verdade colocam diante de nós um compromisso inédito e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na perspectiva daquela «civilização do amor», cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura”.

2009-12-07

CinV (63) Colonização

A propósito da citação com que terminei o último comentário – “um percurso de autonomia que havia de realizar-se na liberdade e na paz; quarenta anos depois, temos de reconhecer como foi difícil tal percurso, tanto por causa de novas formas de colonialismo e dependência de antigos e novos países hegemónicos, como por graves irresponsabilidades internas aos próprios países que se tornaram independentes” – lembro que estes processos, muito deles ínvios não são novos. Por isso, hoje se fala em neo-colonialismo .
A colonização, surgida com as Descobrimentos de novos Povos que viviam uma dinâmica cultural muito diferente da nossa, foi, por nós, os europeus, especialmente portugueses e espanhóis, quase transformada num verdadeiro genocídio, pois levou à morte milhões de pessoas porque erradicámos os seus hábitos e costumes, contaminámos as populações locais com doenças para as quais não dispunham de anti-corpos, escravizámos muitos deles. E tudo isto, um pouco por causa da fé e muito por causa do dinheiro.

A propósito queria recordar aqui uma carta. É possível que muitos a conheçam, mas mesmo assim não resisto a publicá-la, sobretudo porque ajuda a colocarmo-nos na “pele do outro”, exercício que é tanto difícil e tão raro.
Trata-se de uma carta aberta que Guaipuro Cuauhtémoc, chefe índio azteca, enviou aos governos da Europa, a propósito do debate internacional sobre a questão da dívida externa:
“Também eu posso reclamar pagamentos. Também posso reclamar juros. Consta no Arquivo das Índias, papel sobre papel, assinatura sobre assinatura, que só entre os anos de 1503 e 1660 chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes das Américas. Saque? Deus me livre de pensar assim! Porque seria pensar que os irmãos cristãos faltam ao seu sétimo mandamento. Expoliação? Guarde-me o céu de imaginar que os europeus, tal como Caim, matam e depois negam o sangue do irmão. Genocídio? Isso seria dar crédito a caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas, que qualificaram o nosso encontro de destruição das Índias, ou a radicais, como o doutor Arturo Pietri, que afirma que o arranque do capitalismo e da actual civilização europeia se deveu à inundação de metais preciosos arrancados por vocês, meus irmãos europeus, aos meus também irmãos da América. Não! Esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de vários empréstimos amigáveis da América para o desenvolvimento da Europa (…), o início de um Plano Marshall para assegurar a reconstrução da bárbara Europa, arruinada pelas suas deploráveis guerras contra os cultos muçulmanos, introdutores da álgebra, da arquitectura, do banho diário e outras conquistas superiores da civilização”.

Embora "politicamente pouco correcta", esta carta, olhada numa perspectiva planetária (não estamos na era da globalização?), representa um (outro) ponto de vista, que nos deveria fazer reflectir: a nós, que tanto falamos de direitos dos povos, mas na prática temos muita dificuldade em resistir a um etnocentrismo auto-suficiente.

2009-12-05

CinV (62) Progresso (nº 33)

Paulo VI dedicara especial atenção a este tema. Avançou com princípios orientadores, fez propostas de reforma dos vários sistemas internacionais, defendeu a solidariedade entre todos, tanto a nível das pessoas como das nações, assinalou que um progresso para ser autêntico teria que ser integral e solidário, isto é, implicar “o homem todo e todos os homens”. A sua encíclica foi uma violenta pedrada no charco, cujas ondas de choque rapidamente foram esquecidas.

Por isso, passados 20 anos, João Paulo II volta ao assunto com a encíclica Sollicitudo rei socialis. Tendo como referência constante o destino universal dos bens (que recorda 11 vezes) e o primado da pessoa, denuncia o contraste chocante entre o superdesenvolvimento e o subdesenvolvimento apontando como suas causas “a avidez exclusiva do lucro e a sede do poder a qualquer custo” (SRS 38). Proclamou que a estas “estruturas de pecado” e “mecanismos perversos” que alimentam as desigualdades só se pode responder com reformas estruturais dos estilos de vida e dos mecanismos de comércio internacional (SRS 43), que tenham como base:
- um novo sistema de valores baseado na solidariedade, cujo conteúdo “não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes, mas é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38);
- a convicção de que todos somos irmãos e constituímos uma única família: “A consciência da paternidade comum de Deus, da fraternidade de todos os homens em Cristo, «filhos no Filho», e da presença e da acção vivificante do Espírito Santo conferirá ao nosso olhar para o mundo como que um novo critério para o interpretar. Por cima dos vínculos humanos e naturais, já tão fortes e estreitos, delineia-se, à luz da fé, um novo modelo de unidade do género humano, no qual deve inspirar-se em última instância a solidariedade. Este supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, é o que nós cristãos designamos com a palavra «comunhão».” (SRS 40).

Bento XVI lamenta que o progresso “permaneça ainda um problema em aberto”, especialmente agudizado com a actual crise:
- algumas regiões, “outrora oprimidas pela pobreza, registaram mudanças notáveis em termos de crescimento económico e de participação na produção mundial” e aqui podiam recordar-se os avanços espectaculares conseguidos pela China e pela Índia;
- outras, “vivem ainda numa situação de miséria comparável à existente nos tempos de Paulo VI; mais, em certos casos pode-se mesmo falar de agravamento”, como é a situação na África subsariana.
Recorda causas já antigas, umas que se mantiveram e outras que foram evoluindo:
- Paulo VI acusara, por exemplo, “as altas tarifas aduaneiras impostas pelos países economicamente desenvolvidos que ainda impedem os produtos originários dos países pobres de chegar aos mercados dos países ricos”;
- Bento XVI destaca o processo de descolonização, cuja condução por culpa de ambas as partes ou de terceiros, nem sempre, ou melhor, a maior parte das vezes, não conduziu aos resultados desejados: na altura, esperava-se ou sonhava-se “um percurso de autonomia que havia de realizar-se na liberdade e na paz; quarenta anos depois, temos de reconhecer como foi difícil tal percurso, tanto por causa de novas formas de colonialismo e dependência de antigos e novos países hegemónicos, como por graves irresponsabilidades internas aos próprios países que se tornaram independentes”.

2009-12-04

CinV (61) Problemas novos, soluções novas (nº 32)

Para problemas novos, soluções novas.
Mas não serve qualquer solução. Há condições a ter em conta:
- serem procuradas em conjunto;
- respeitarem as “leis próprias de cada realidade”; na leitura da realidade, os cristãos (e não só) com frequência cometem duas falhas: 1) olham para a realidade não como ela é, mas como gostariam que fosse (a realidade também merece respeito), o que nos empurra para soluções inapropriadas, como se estivéssemos a responder a perguntas que ninguém fez; 2) esquecem que a realidade tem leis próprias que devem ser respeitadas: “Todas as realidades que constituem a ordem temporal – os bens da vida e da família, a cultura, os bens económicos, as artes e profissões, as instituições políticas, as relações internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso – não só são meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus, quer consideradas em si mesmas, quer como partes da ordem temporal total: «e viu Deus todas as coisas que fizera, e eram todas muito boas» (Gén. 1, 31)”, apesar de “o uso das coisas temporais ter sido, no decurso da história, manchado com graves abusos” (AA 7);
- terem como ponto de partida “uma visão integral do homem, que espelhe os vários aspectos da pessoa humana”
- serem “contempladas com o olhar purificado pela caridade”.

A dignidade humana e as exigências da justiça obrigam a reformas a vários níveis:
- as opções económicas não podem “aumentar, de forma excessiva e moralmente inaceitável, as diferenças de riqueza”; as crescentes desigualdades, que se repercutem num aumento maciço de pobreza, “tendem não só a minar a coesão social – e, por este caminho, põe em risco a democracia –, mas têm também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do «capital social», isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil”;
- deve considerar-se “como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos ou da sua manutenção”, pois é sabido que “uma situação estrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos e de desperdício de recursos humanos, já que o trabalhador tende a adaptar-se passivamente aos mecanismos automáticos, em vez de dar largas à criatividade. Também neste ponto se verifica uma convergência entre ciência económica e ponderação moral. Os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos”;
- deve ser feita uma profunda reflexão sobre a economia e os seus fins, tendo em particular atenção a busca de soluções no curto e no longo prazo: “A diminuição do nível de tutela dos direitos dos trabalhadores ou a renúncia a mecanismos de redistribuição do rendimento, para fazer o país ganhar maior competitividade internacional, impede a afirmação de um desenvolvimento de longa duração. Por isso, há que avaliar atentamente as consequências que podem ter sobre as pessoas as tendências actuais para uma economia a curto senão mesmo a curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins”;
- são precisos modelos e conceitos novos de desenvolvimento: “uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunções e desvios”; esta reformulação é exigida pelo “estado de saúde ecológica da terra e pede-o sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomas são evidentes por toda a parte”.

2009-12-03

CinV (60) Doutrina Social da Igreja (nº 31)

Dado o amplo espectro da DSI, com maior razão se lhe exige “uma importante dimensão interdisciplinar para poder desempenhar a sua função com a eficácia adequada e necessária. Só assim ela poderá:
- actuar a sua dimensão sapiencial, permitindo “à fé, à teologia, à metafísica e às ciências encontrarem o próprio lugar no âmbito de uma colaboração ao serviço do homem;
- ajudar a eliminar uma das causas do subdesenvolvimento: “uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora, que requer «uma visão clara de todos os aspectos económicos, sociais, culturais e espirituais» (PP 13)”;
- evitar “a excessiva fragmentação do saber, o isolamento das ciências humanas relativamente à metafísica, as dificuldades no diálogo entre as ciências e a teologia que danificam não só o avanço do saber mas também o desenvolvimento dos povos”;
- superar os obstáculos que se levantam a uma “visão do bem completo do homem nas várias dimensões que o caracterizam. É indispensável o «alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma» para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do desenvolvimento e da solução dos problemas sócio-económicos”.
Por isso, Banto XVI alargar o âmbito e natureza da DSI: “Paulo VI já tinha reconhecido e indicado o horizonte mundial da questão social (PP 3). Prosseguindo por esta estrada, é preciso afirmar que hoje a questão social tornou-se radicalmente antropológica, enquanto toca o próprio modo não só de conceber mas também de manipular a vida, colocada cada vez mais nas mãos do homem pelas biotecnologias” (75).

João Paulo II esclarecera que “a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do «proletariado», da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte” (CA 54). Mas não ignora a importância das ciências sociais: “Aqui o termo «desenvolvimento» é tirado do vocabulário das ciências sociais e económicas” (SRS 8). Certamente não desenvolveu muito este tema porque Paulo VI lhe dedicara especial atenção. Depois de chamar a atenção para os seus riscos e limitações (OA 38-39), esclarece: “Animados pela mesma exigência científica e pelo desejo de melhor conhecer o homem, mas ao mesmo tempo iluminados pelo vivo impulso da sua fé, os cristãos que se aplicam às "ciências humanas" devem procurar estabelecer um diálogo que se preanuncia frutuoso, entre a Igreja e esse campo novo de descobertas. Obviamente cada uma das disciplinas científicas não poderá captar, na sua particularidade, senão um aspecto parcial, mas verdadeiro, do homem; a totalidade e o sentido porém, escapam-lhe. Entretanto dentro de tais limites, as "ciências humanas" garantem uma função positiva que a Igreja de bom grado reconhece. Elas podem mesmo alargar as perspectivas da liberdade humana, abrindo-lhe um campo mais vasto, que os condicionamentos até agora notados não lhe deixariam sequer prever. Elas poderiam ajudar também a moral social cristã, a qual verá o seu campo limitar-se sempre que se trata de propor alguns modelos sociais como melhores; ao passo que a sua posição crítica e de transcendência sairá reforçada, ao mostrar o carácter relativo dos comportamentos e dos valores que determinada sociedade apresentava como definitivos e inerentes à própria natureza do homem. Condição, ao mesmo tempo indispensável e insuficiente, para uma melhor descoberta do humano, estas ciências são uma linguagem, e cada vez mais complexa, mas que amplia em vez de diminuir o abismo do mistério do coração do homem e não lhe traz a resposta completa e definitiva ao desejo que sobe do mais profundo do seu ser” (OA 40).

2009-12-02

CinV (59) Caridade e Saber (nº 30)

Para o desenvolvimento humano ser integral tem de estar ao serviço de todas as pessoas e todos os povos, o que implica a sua interdisciplinaridade, isto é, “fazer interagir os diversos níveis do saber humano”. Não basta tomar medidas socioeconómicas avulsas. Não basta actuar em conjunto, pois “este agir comum precisa de ser orientado, porque «toda a acção social implica uma doutrina». Vista a complexidade dos problemas, é óbvio que as várias disciplinas devem colaborar através de uma ordenada interdisciplinaridade”.
Esta interligação é cada vez mais fundamental em todos os ramos do saber; cada tema, sobretudo se envolve o ser humano, será sempre limitado e pouco informativo se ficar enclausurado no campo restrito de uma única disciplina.
Mas o Papa vai mais longe. Não se trata apenas de uma ligação íntima entre os vários saberes, mas é preciso que essa articulação íntima envolva a caridade: “A caridade não exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser «temperado» com o «sal» da caridade”.
É importante chamar a atenção para esta articulação fundamental porque ela ainda está longe de ter entrado na mentalidade e na actividade de muitos cristãos e instituições cristãs. E é essencial porque “a acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. De facto, «aquele que está animado de verdadeira caridade é engenhoso em descobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la resolutamente» (PP 75)”.
O Papa já dera conta, na primeira encíclica, desta sua preocupação. Por um lado "é muito importante que a acção caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização social comum, tornando-se uma simples variante desta" (CDE 31). Por outro, tendo em conta que, como referi, em muitas situações o que funciona é apenas o voluntarismo, o Papa recorda que é precisa também a competência técnica (o saber da inteligência); mas, além disso, pelo menos aos cristãos, pede-se-lhe também muito mais: a prática da humanidade (o saber do coração) à maneira do bom samaritano: “ A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: têm necessidade de humanidade, precisam da atenção do coração. Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo facto de que não se limitam a executar habilidosamente a acção conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenções sugeridas pelo coração, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a «formação do coração»: é preciso levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor” (DCE 31).
É por isso que “a caridade na verdade requer, antes de mais nada, conhecer e compreender no respeito consciencioso da competência específica de cada nível do saber. A caridade não é uma junção posterior, como se fosse um apêndice ao trabalho já concluído das várias disciplinas, mas dialoga com elas desde o início. As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem. Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade na verdade. Todavia ir mais além nunca significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor”.