divórcio ou casamento eterno?...

2010-02-27

Tudo começou em 1953

Há 57 anos, neste mesmo dia, nascia uma menina numa das maternidades espalhadas pelo país. Teve um infância e adolescência muito felizes, cheias, não de dinheiro e luxos, mas de muito amor e carinho. Andou de terra em terra devido à profissão do pai. Fez muitos amigos, porque contagiava de alegria e tinha a capacidade de acolher os outros. Licenciou-se em Medicina, o seu grande sonho. O seu nome não consta do catálogo dos VIPs nem vem na “Caras”, mas sempre foi coerente no modo como encarou a vida e depois a sua vocação de médica.
Há dias tomou posse de Chefe de serviço e proferiu umas palavras que definem bem a sua maneira de ser e de estar:

Há trinta e dois anos que trabalho neste Hospital e há mais de vinte em exclusividade e em regime de 42h semanais. Foi uma vida dedicada aos HUC e é nesta condição que gostaria de dizer algumas palavras.
Ao longo destes anos, procurei nortear-me por alguns princípios que, na minha opinião, são indispensáveis para um exercício mais humano e humanizador da Medicina, embora algumas vezes não tenha sido compreendida e até penalizada.
Nunca me motivou trabalhar em Medicina privada porque sempre acreditei que podia contribuir para fazer do Serviço Público um serviço de excelência, igualmente acessível aos ricos e aos pobres, já que estes são sistematicamente preteridos pelo privado.
Um tal Serviço Público deve satisfazer certos condicionalismos: ter como objectivo prioritário a pessoa do doente, promover uma melhoria contínua da qualidade própria de um Hospital universitário, fazer uma rigorosa e transparente gestão dos recursos e valorizar e estimular os funcionários envolvendo-os e fazendo-os sentirem-se igualmente responsáveis, na certeza de que só com a colaboração de todos estes objectivos poderão ser alcançados.
A contenção exagerada de custos dos bens essenciais ao bom funcionamento dos Serviços não pode fazer-se à custa da qualidade, não esquecendo, no entanto, o binómio benefício-custo. Os custos devem obrigatoriamente e podem ser reduzidos com uma melhor gestão de pessoal, com a automatização, com a informatização generalizada e continuamente actualizada, com a simplificação de burocracias e com o combate eficaz e decidido ao desperdício.
Neste momento que estão a ser estruturadas e organizadas novas instalações para o Serviço de Patologia Clínica dos HUC (SPC), espero poder contribuir para o desenvolvimento de um Laboratório devidamente perspectivado, não para o curto prazo, mas já para o século XXII. Apelando à minha experiência parecem-me indispensáveis infra-estruturas com luz natural e espaços amplos e racionalmente aproveitados bem como a utilização dos mais recentes meios tecnológicos que rentabilize pessoal e custos e optimize a relação do Laboratório com os outros Serviços Clínicos, de modo a garantir o máximo de qualidade e uma mais rápida e eficiente troca de conhecimentos e de informações.
Dada a situação crítica do País, que precisa de nós até cada vez mais tarde, é minha intenção continuar, enquanto puder, a dar o meu contributo profissional e a sustentar a mesma luta que me propus, quando fiz opção pela Medicina, estimulada por uma vocação virada exclusivamente para o serviço da pessoa do doente e não pela ambição do poder ou pelo desejo de maiores vantagens económicas.
Por isso continuarei, como até aqui, a incomodar os meus superiores hierárquicos bem como aqueles que dependem de mim, sempre que o doente, a qualidade do meu Serviço (SPC) e o bom nome dos HUC estiverem em causa.

Esta mulher é a Fátima, a mulher por quem me apaixonei há 40 anos. Depois de algumas tímidas tentativas de escolher companheira, fiquei presa a esta jovem de 17 anos, pela sua alegria, vivacidade, etc.. Mas sobretudo fiquei preso por uma citação evangélica que ela me escreveu numa carta quando ainda mal nos conhecíamos: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã. Procurai em primeiro lugar o Reino e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,31.33). Era uma das minhas citações preferidas, porque definia um dos princípios fundamentais da minha vida e, por isso, logo pensei “não vou largar esta mulher”. Foi um “luta” difícil, porque partia com muitas desvantagens: tinha mais 11 anos que ela e a concorrência era muito mais nova e atraente; “vestia tão mal” que ela até se “envergonhava” de a verem comigo; era tão tímido que só através das cartas eu lhe falava do meu amor mas de modo tão insistente, chato e piegas que ela já mal podia ver as minhas cartas. Não sei bem porquê nem como, passado quase um ano de persistência, ela começou a mudar de opinião até que percebeu que também me amava.

Há 39 anos que partimos juntos num projecto a dois que ainda se mantém. Ambos passámos por algumas dificuldades profissionais, por causa da nossa fidelidade a alguns princípios. Mas foram 39 anos que não trocava por nada deste mundo. É certo que tivemos muitas discussões, porque nós somos, usando uma linguagem matemática, “ângulos diametralmente opostos” (o tema mais frequente assentava na quadratura do círculo: como conciliar uma pessoa, que é “escrava do relógio”, como eu, com outra que é a “anarquia” quase pura em termos de horários, como a Fátima?), mas somos absolutamente unidos no vértice do nosso projecto e princípios orientadores da vida.

Há sobretudo duas coisas que eu admiro na Fátima:
1) A capacidade que ela teve, ainda com apenas 18 anos, de aturar um solteirão de quase 30 anos, viciado na independência pessoal e na timidez de afrontar o mundo, alguém carente de carinho e atenção. É que eu também passei um infância muito feliz, com pouco dinheiro e nenhuns luxos numa terra perdida do interior, mas com muito, muito amor e carinho dos pais e irmãos. Mas depois vim para o Seminário, onde a regra era, na altura, muito mais o rigor e a disciplina do que o carinho e o amor (que também lá encontrei, mas pouco). Mas o Seminário deu-me duas coisas inestimáveis: 1) descobri, mais pela reflexão e estudo do que pela prática vivida, quem é Jesus Cristo e que Deus é Amor puro, comunicativo e incondicional e por isso o meu “não vos preocupeis com o dia de amanhã” e 2) adquiri uma bagagem cultural muito boa para altura.
A Fátima aceitou-me desde a primeira hora com estas minhas limitações e preencheu essa lacuna de afecto, tornando-se um elemento fundamental para eu crescer com mais equilíbrio e deixar de ser “bicho do mato” e “rato de biblioteca”.

2) Há quatro anos que vou intervalando períodos de quimioterapia com períodos de repouso, mas sobretudo nos períodos de tratamento devo ser insuportável, sem paciência, possivelmente agressivo com ela, que todos os dias têm de me levar 4 vezes comida ao Hospital (com algum apoio de outros familiares), porque eu me dou ao luxo de não comer lá, e de, de um modo tão egoísta, não consigo obrigar-me a não a obrigar a tal esforço e desgaste. E, mais uma grande lição para mim, nunca ouvi da Fátima um desabafo, um queixume, um “estou farta”, um gesto sequer que mostre o mais pequeno desagrado perante estas minhas atitudes. Muitos amigos me acompanham e mostram a sua solidariedade, mas ninguém, como a Fátima me ama e “ama até ao fim”, sempre a incentivar-me e a manifestar o amor que eu sinto nela.
Nestes momentos lembro-me sempre das promessas mútuas feitas frente ao altar e na presença de uma comunidade de crentes e de amigos: “Eu, Fátima, recebo-te por meu esposo a ti, Zé, e prometo ser-te fiel e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida”. Eu também fiz estas promessas. Estou convicto de que também as cumpriria, mas tenho dúvidas se seria capaz de imitar a Fátima na intensidade com que as está a cumprir.

Que bom ter encontrado a Fátima há 40 anos.
Que bom continuar com ela e com o mesmo amor mútuo.
Que bom que deste projecto tenham surgido a Renata e o David, os nossos amores primeiros, duas flores com alguns inevitáveis espinhos que, sempre nos amaram muito. E de um modo especial nestes últimos quatro anos em que a vida foi mais complicada para a família, nós sentimos ainda mais o quão grande era o seu amor por nós, retratado numa acrescida atenção e cuidado amorosos. Não falei deles, porque hoje é o dia da Fátima.
Que bom acreditar que, mesmo no Reino de Deus, este amor vai não só continuar como atingir outros níveis indescritíveis.

Um beijo muito grande para ti, Fátima.

2010-02-26

CinV (95) Globalização (4) (nº 42)

Apesar das suas limitações, “a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas fizerem dela”. Esta firmação empurra-nos para consequêcias que não podemos ignorar.

1. Protagonismo humano
Somos chamados, todos, a ser protagonistas e a não deixar a s decisões apenas aos outros, especialmente aos actuais centros de decisão internacionais, que já provaram, para lá da incapacidade natural de prever o futuro, a sua “falta de humanidade” e de atenção aos mais carenciados: “Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade”.
Para ser protagonistas, há duas atitudes a evitar:
- a de cair numa oposição acrítica marcada por preconceitos e chavões que se ouvem nas “mesas dos café”: “Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos”;
- a de correr “o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportunidades de desenvolvimento por ele oferecidas”.

2. Correcta utilização
Para que este protagonismo seja exercido com “razoabilidade”, isto é, exercido de acordo com a sabedoria milenar, que o próprio Jesus repetiu, do “ser simples como as pombas e prudentes como as serpentes”, impõe-se:.
- uma boa gestão dos recursos mundiais: “Adequadamente concebidos e geridos, os processos de globalização oferecem a possibilidade de uma grande redistribuição da riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido; se mal geridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade, bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro”;
- a correcção dos muitos desvios que afectam a centralidade da pessoa e dos povos: “É preciso corrigir as suas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem novas divisões entre os povos e no interior dos mesmos e fazer com que a redistribuição da riqueza não se verifique à custa de uma redistribuição da pobreza ou até com o seu agravamento, como uma má gestão da situação actual poderia fazer-nos temer”.

3. Orientação adequada
A globalização abre muitas perspectivas positivas, desde que se tome consciência de que se trata de um instrumento, mas um instrumento que deve estar ao serviço de todos. Esta convicção é um pilar fundamental nestes tempos de mudança porque são muitos os perigos que nos espreitam: “A transição inerente ao processo de globalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão ser superados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica e ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de humanização solidária”.
Mas há duas dificuldades que cuja erradicação vai levar o seu tempo, demasiado tempo:
- a maior, talvez, é aceitar que essa “alma antropológica e ética”, que deve orientar a globalização, implica que cada um de nós a deve assumir e interiorizar. E, olhando para as nossa associedade e para as pessoas que as constituem, não vemos que elas próprias aceitem ser orientads por um espírito “antropológico”, isto é, que faça da pessoa, de toda a pessoa de qualquer cultura, o centro das preocupações e decisões, e “ético”, isto é, que os princípios e os valores sejam tais que a humanidade inteira se constitua numa comunidade de irmãos: “Infelizmente esta alma é muitas vezes abafada e condicionada por perspectivas ético-culturais de natureza individualista e utilitarista”;
- a outra, mais fácil de interiorizar, mas difícil de praticar, ´consiste em admitir que a globalização é algo de pluridisciplinar, que envolve todas as dimensões do ser e do agir humanos: “A globalização é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo a teológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da humanidade em termos de relacionamento, comunhão e partilha".

2010-02-25

CinV (94) Globalização (3) (nº 42)

Outra atitude a evitar é olhar a globalização apenas como económica: “É bom recordar que a globalização há-de ser entendida, sem dúvida, como um processo sócio-económico, mas esta sua dimensão não é a única. Sob o processo mais visível, há a realidade de uma humanidade que se torna cada vez mais interligada; tal realidade é constituída por pessoas e povos, para quem o referido processo deve ser de utilidade e desenvolvimento, graças à assunção das respectivas responsabilidades por parte tanto dos indivíduos como da colectividade”.

Trata-se de uma realidade – a interdependência – que João Paulo II tanto destacou, elevando-a inclusivamente a categoria moral: “No caminho da desejada conversão, rumo à superação dos obstáculos morais para o desenvolvimento, pode-se já apontar, como valor positivo e moral, a consciência crescente da interdependência entre os homens e as nações. O facto de os homens e as mulheres, em várias partes do mundo, sentirem como próprias as injustiças e as violações dos direitos humanos cometidas em países longínquos, que talvez nunca visitem, é mais um sinal de uma realidade interiorizada na consciência, adquirindo assim uma conotação moral. Trata-se antes de tudo da interdependência apreendida como sistema determinante de relações no mundo contemporâneo, com as suas componentes - económica, cultural, política e religiosa - e assumida como categoria moral” (SRS 38). Esta afirmação apresenta um argumento muito significativo: o facto de sentirmos como feitas a nós as injustiças que atingem pessoas que nunca conheceremos ou países que nunca visitaremos. É uma dimensão do conceito de próximo, que nem sempre percebemos na riqueza do seu significado: já não só os nossos amigos, o que já todos percebemos bem; mas também não são só os nossos vizinhos ou cidadãos do nosso país; são todos, como explicita o próprio Bento XVI: “A parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado «por acaso», seja ele quem for” (DCE 25).

Aliás, Kofi Annan, quando secretário-geral da ONU, expressava a mesma ideia da interdependência por outras palavras: “Vivemos num mundo em que nenhum indivíduo e nenhum país existe isoladamente. Todos vivemos não só na nossa comunidade, mas também no mundo. Os povos e culturas são cada vez mais híbridos. De Berlim a Bangalore, são reconhecíveis os mesmos ícones, quer no cinema, quer num monitor de computador. Somos todos consumidores na mesma economia global. Somos todos influenciados pelas mesmas ondas de mudança política, social e tecnológica. A poluição, o crime organizado e a proliferação de armas letais não se prendem com considerações relacionadas com as fronteiras: são ´problemas sem passaporte´ e, como tal, são o nosso inimigo comum. Estamos interligados, somos interdependentes” (26.Dez.1999).

Para João Paulo II, colocar a interdependência no plano moral tem como consequência que a resposta apropriada tenha de vir também do plano moral: “Quando a interdependência é reconhecida assim, a resposta correlativa, como atitude moral e social e como «virtude», é a solidariedade. Esta, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38). Assim, a solidariedade deixa de ser um qualquer sentimento momentâneo, para se tornar numa “virtude”, isto é, num hábito permanente de vida, na tal determinação firme e perseverante de lutar pelo bem de todos nós.

No fundo é, como faz Bento XVI, retomar a dimensão cultural da globalização, que já analisámos atrás: “ A superação das fronteiras é um dado não apenas material mas também cultural nas suas causas e efeitos”.

2010-02-21

Carta pessoal de Henri Boulad a Bento XVI

Uma vez que andam por aí resumos da "Carta pessoal de H. Boulard a Bento XVI" queria lembrar que esta carta foi escrita, como se vê no final, no dia 18.Julho.2007 e desafiar todos os que estão preocupados com a crise que a Igreja (também) atravessa a fazermos um debate sobre a prórpia Igreja, nas suas várias dimensões. Aliás já aqui deixara um pequeno contributo com o meu post "Faltam cem dias".
Pode ser uma boa ajuda, conhecer a Carta na sua versão integral. É por isso que a deixo aqui , apesar de longa, depois de a ter traduzido macarronicamente do francês. É longa, mas vale a pena ser lido, para descordar, concordar, mas sobretudo para estimular a nossa responsabilidade de baptizados.


Carta pessoal ao Papa Bento XVI: SOS pela Igreja de hoje

Santo Padre

Atrevo-me a dirigir-me directamente a vós, pois meu coração sangra, ao ver o abismo em que se está precipitando nossa Igreja. Quero pedir desculpa pela minha franqueza filial, ditada tanto pela “liberdade dos filhos de Deus”, à qual nos convida S. Paulo como pelo meu amor apaixonado pela Igreja. Quero também pedir desculpa pelo tom alarmista desta Carta, porque acredito que “um pouco mais e seria tarde” («il est moins cinq») e que a situação não podia esperar mais tempo.

Permiti que comece por me apresentar. Jesuíta egipto-lianês do rito melquita, farei dentro em pouco os meus 76 anos. Sou, há 3 anos, reitor do Colégio dos jesuítas no Cairo, depois de ter ocupado os seguintes cargos : superior dos jesuítas em Alexandria, superior regional dos jesuítas no Egipto, professor de Teologia no Cairo, director da Caritas-Egipto e vice-presidente da Caritas Internacional para o Médio Oriente e a África do Norte. Conheço muito bem a hierarquia católica do Egipto por ter participado, durante muitos anos, nas suas reuniões, enquanto Presidente dos Superiores religiosos dos Institutos do Egipto. Tenho relações muito pessoais com cada um deles, alguns dos quais são meus antigos alunos. Além disso, conheço o Papa Chenouda III, que costumo visitar com bastante regularidade. Quanto à hierarquia da Europa, tive oportunidade de me encontrar muitas vezes com muitos dos seus membros, entre os quais o Cardeal Koening, o Cardeal Schonborn, o Cardeal Martini, o Cardeal Daneels, o Arcebispo Kothgasser, os bispos diocesanos de vários países europeus. Estes encontros tiveram lugar aquando das minhas digressões anuais para conferências na Europa: Áustria, Alemanha, Suiça, Hungria, França, Bélgica, … Nestas digressões, dirigi-me a auditórios muito variados e aos média (jornais, rádios e televisões, …). Fiz o mesmo no Egipto e no Próximo Oriente. Visitei uns cinquenta países nos quatro continentes e publiquei trinta livros em quinze línguas, nomeadamente em francês, árabe, húngaro e alemão. Entre os meus treze livros nesta língua, talvez tivésseis lido Gottessohne, Gottestochter, que vos deu o vosso amigo, o P.e Erich Fink,da Baviera.

Não estou a dizer isto para me vangloriar, mas para vos dizer simplesmente que os meus propósitos são fundados sobre um conhecimento real da Igreja universal e da sua situação hoje, em 2007.

Quanto ao objectivo desta carta, procurarei ser o mais breve, o mais claro e o mais objectivo possível. Em primeiro lugar, algumas constatações (a lista esta longe de ser exaustiva):

1. A prática religiosa está em declínio constante. As igrejas da Europa e do Canadá são frequentadas por um número cada vez mais reduzido de pessoas da terceira idade, que vão desaparecer dentro de pouco tempo. Então nada mais restará do que fechar estas igrejas ou transformá-las em museus, em mesquitas, em clubes ou em bibliotecas municipais, como já se fez. O que me surpreende é que muitas delas estejam em vias de ser totalmente renovadas e modernizadas mediante grandes gastos com a intenção de atrair os fiéis: mas não é isto que travará o êxodo.

2. Os seminários e os noviciados se esvaziam ao mesmo ritmo e as vocações desaparecem estão em queda livre. O futuro é ainda mais sombrio e perguntamo-nos quem adquirirá mais relevo. Cada vez mais as paróquias europeias são actualmente assumidas por padres da Ásia e da África.

3. Muitos padres deixam o exercício sacerdotal e o pequeno número dos que o exercem ainda – com uma idade muitas vezes perto da “reforma” – são obrigados a assumir o encargo de várias paróquias, de maneira expedita e administrativa. Muitos dentre eles, tanto na Europa como no Terceiro Mundo, vivem em concubinato à vista e com conhecimento dos seus fiéis, que muitas vezes os aceitam, e do seu bispo, que não pode fazê-lo, mas… dada a falta de padres.

4. A linguagem da Igreja é anacrónica, aborrecida, repetitiva, moralizadora e completamente inadaptada para nossa época. Não se trata em absoluto de acomodar-se e de fazer demagogia, porque a mensagem do Evangelho deve estar presente em toda a sua crueza e exigência. O que é necessário antes de mais é proceder a esta “nova evangelização”, para a qual nos convidava João Paulo II. Mas esta, contrariamente ao que muitos pensam, não consiste simplesmente em repetir o antigo, que já não atrai nada, mas em inovar, inventar uma nova linguagem que rediga a fé de maneira apropriada e que tenha significado para o homem de hoje.
5. Isto só poderá fazer-se por uma renovação profunda da teologia e da catequese, que deverão ser repensadas e reformuladas totalmente. Um padre e religioso alemão que encontrei recentemente dizia-me que a palavra “mística” não era mencionada uma só vez no Novo Catecismo. Fiquei estupefacto. Temos que constatar que a nossa fé é demasiado cerebral, abstracta, dogmática e fala muito pouco ao coração e ao corpo.
6. A consequência é que grande parte dos cristãos se voltam para as religiões da Ásia, as seitas, a "New Age", as igrejas evangélicas, o ocultismo, etc. Como nos podemos admirar disto? Eles vão procurar algures o alimento que não encontram entre nós, porque têm a impressão de que lhes damos pedras em vez de pão. A fé cristã que, outrora, conferia um sentido à vida das pessoas, é para elas hoje um enigma, a sobrevivência de um passado acabado.
7. Sobre o plano moral e ético, as imposições do Magistério, repetidas à saciedade, sobre o casamento, a contracepção, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade, o casamento dos padres, os divorciados recasados, etc. não tocam mais as pessoas e só provocam cansaço e indiferença. Todos estes problemas morais e pastorais merecem algo mais do que declarações peremptórias. Necessitam de uma abordagem pastoral, sociológica, psicológica, humana … numa linha mais evangélica.

8. A Igreja, que foi a grande educadora da Europa durante séculos, parece ter esquecido que esta Europa atingiu a maturidade. A nossa Europa adulta recusa-se a ser tratada como menor. O estilo paternalista de uma Igreja Mater et Magistra está definitivamente caduco e não cola mais hoje. Os cristãos aprenderam a pensar por si mesmos e não estão dispostos a aceitar qualquer coisa.

9. As nações que foram as mais católicas outrora – a França, “filha primogénita da Igreja” ou o Canadá francês ultra-católico – deram uma guinada de 180º, virando-se para o ateísmo, o anticlericalismo, o agnosticismo, a indiferença. Para um certo número de outras nações europeias, o processo está em curso. Pode verificar-se que quanto mais um povo foi dominado e protegido pela Igreja no passado, maior é a sua reacção contra ela.

10. O diálogo com as outras Igrejas e as outras religiões sofreu hoje um recuo inquietante. Os notáveis avanços realizados durante meio século parecem neste momento comprometidos.

Perante esta constatação quase demolidora, a reacção da Igreja é dupla:

- Tende a minimizar a gravidade da situação e a consolar-se constatando uma certa renovação no seu campo mais tradicionalista bem como nos países do terceiro mundo;

- Invoca a confiança no Senhor, que a socorreu durante 20 séculos e que será bem capaz de a ajudar a ultrapassar esta nova crise, como fez com as precedentes. Não tem ela promessas da vida eterna? …

A isto respondo:

- Não é apoiando-se no passado nem recolhendo os fragmentos que se resolvem os problemas de hoje e do amanhã.

- A aparente vitalidade das Igrejas do terceiro mundo é enganosa. O mais verosímil é que estas novas Igrejas passem, mais cedo ou mais tarde, pelas mesmas crises que a velha cristandade europeia conheceu.

- A modernidade é incontornável e foi por ter esquecido isto que a Igreja passa hoje por esta crise. O Vaticano II tentou recuperar quatro séculos de atraso, mas tem-se a impressão que a Igreja está em vias de fechar lentamente as portas que se então abriram e tentada a voltar para Trento e o Vaticano I mais que para um Vaticano III. Recordemos a declaração de João Paulo II tantas vezes repetida: “Não há alternativa ao Vaticano II".

- Até quando continuaremos a jogar a política da avestruz e a esconder a nossa cabeça na areia? Até quando nos recusaremos a olhar as coisas de frente? Até quando tentaremos salvar, a qualquer preço, a fachada – uma fachada que já não ilude hoje ninguém? Até quando continuaremos a virar as costas, a crisparmo-nos contra toda a crítica, em vez de ver aí uma oportunidade de renovação? Até quando continuaremos a adiar para as calendas gregas uma reforma que se impõe imperativamente e que não é retomado há muito tempo?

- Só olhando decididamente para diante e não para trás, é que a Igreja cumprirá a sua missão de ser “luz do mundo, sal da terra, fermento na massa". Contudo, o que infelizmente verificamos hoje é que a Igreja está na cauda da nossa época, depois de ter sido a pioneira durante séculos.

- Repito o que dizia no início desta carta: «IL EST MOINS CINQ» (“um pouco mais e seria tarde”) – fünf vor zwölf! A História não espera, sobretudo na nossa época, em que o ritmo embala e acelera.

- Toda empresa que detecta um défice ou disfunções coloca-se imediatamente em questão, reúne peritos, tenta recuperar-se e mobiliza todas as suas energias para superar a crise.

- Por que não faz a Igreja o mesmo? Por que não moviliza todas as suas forças vivas para um aggiornamento radical? Porquê?

- Por preguiça, cobardia, orgulho, falta de imaginação, de creatividade, quietismo culpável, na esperança de que o Senhor tudo resolverá e que a Igreja já conheceu outras crises no passado?

- Cristo, no Evangelho, põe-nos em guarda: “Os filhos das trevas são muito mais espertos na gestão dos seus assuntos do que os filhos da luz…”

ENTÃO, QUE FAZER?… A Igreja de hoje tem uma necessidade imperiosa e urgente de uma TRIPLA REFORMA:

1. Uma reforma teológica y catequética para repensar a fé e reformulá-la de modo coerente para os nossos contemporâneos. Uma fé, que já não significa nada, que não dá sentido à existência, não passa de um adorno, de uma superestrutura inútil que cai por si mesma. É o caso hoje.

2. Uma reforma pastoral para repensar a fundo as estruturas herdadas do passado (Ver aqui as minhas sugestões neste âmbito).

3. Uma reforma espiritual para revitalizar a mística e repensar os sacramentos com vista a dar-lhes uma dimensão existencial, a articulá-os com a vida.

A Igreja de hoje é muito formal, muito formalista. Dá a impressão que a instituição abafa o carisma e que o que unicamente conta é uma estabilidade puramente exterior, uma respeitabilidade superficial, uma certa fachada. Não nos arriscamos a que um dia Jesus nos trate por “sepulcros caiados…"?

Para terminar, sugiro a convocação, a nível da Igreja universal, de um sínodo geral, no qual participariam todos os cristãos – católicos e otros – para examinar com toda a franqueza e clareza os pontos acima assinalados e todos os que fossem propostos. Tal sínodo, que duraria três anos, seria coroado por uma assembleia geral – evitemos o termo “concílio" – que sintetizaria os resultados desta investigação e dela tiraria as conclusões.

Termino, Santo Padre, pedindo-vos perdão pela minha franqueza e pela minha audácia e solicitando a vossa bênção paternal. Permiti-me também dizer-vos que vivo estes dias na vossa companhia, graças ao vosso notável livro “Jesus de Nazaré", que é objecto da minha leitura espiritual e da minha meditação diária.

Sinceramente vosso no Senhor

P. Henri Boulad, s.j.
henriboulad@yahoo.com
Collège de la Sainte-Famille
B.P. 73 – Faggala – Le Caire – Egypte
Tel. (00202) 25900411 – 25900892 – Privé : 25883838

Graz, 18 de Julho de 2007

2010-02-19

Onde esta(va) Deus no Haiti?

tiEsta foi a pergunta que a Ana fez a um dos meus últimos posts e cuja resposta não cabe em duas ou três linhas. Mas vou tentar deizar algumas pistas.

A primeira pergunta a que temos de responder honestamente é: quem é Deus para mim? Há muitas imagens de Deus e todas elas feitas à nossa imagem e semelhança. Assim nenhuma delas é cem por cento verdadeira, até porque Deus é indefinível, é o Grande Mistério. Mas há algumas que não têm suficiente seriedade. Para muitos, Deus é uma espécie de comerciante, com quem se pode negociar, tipo "dou (as “promessas”)  para que me dês (os meus interesses)": a concretização de um bom negócio ou a passagem num exame. Para outros, Deus é um milagreiro que deve intervir nas leis da Natureza ou nos comportamentos humanos para que tudo corra bem. Esta imagem é que está, parece-me, subjacente à pergunta da Ana, e que insinua que Deus devia ter evitado o terramoto no Haiti, pelo grande mal e sofrimento que causou.

“Onde estava Deus?” será uma pergunta justa? Vejamos o comportamento da Natureza. Há cerca de quatro mil e quinhentos milhões de anos, a Terra começou a formar-se. Devido a várias circunstâncias (força da gravidade, radioactividade interna, bombardeamento de meteoritos e asteróides), nos seus inícios, era um bola de fogo que foi arrefecendo com o tempo e de fora para dentro. Sob a superfície sólida há, ainda hoje, um mar de magma incandescente que liberta continuamente gases, que fazem pressão sobre as várias placas que suportam os continentes. A pressão vai aumentando e só há duas soluções: ou vai sendo aliviada através dos vulcões ou, se encontram um “falha”, os gases destabilizam as zonas fracturadas e temos um tremor de Terra. Qual foi o papel de Deus neste caso? Ter formado a Terra? Ou, deixando-nos de egocentrismos, ter criado o Universo, e sobretudo tê-lo criado tão imperfeito?
No fundo, realmente, o que nós perguntamos é por que existe o mal. Juntar Deus e o mal é que nos complica tudo. E, conscientemente ou não, todos subscrevemos o dilema de Epicuro: “Se Deus quer evitar o mal e não pode, não é omnipotente; se pode e não quer, não é bom; se não pode nem quer, não é Deus; se pode e quer, então é malvado”. Este raciocínio aparentemente tão evidente tem um defeito de base, que vou tentar explicar com um exemplo comezinho: Pode Deus fazer a quadratura do círculo? Não, porque é absurdo: um quadrado não pode ser círculo. De igual modo, pode Deus criar um mundo absolutamente perfeito? Não, porque só Deus é absolutamente perfeito. Portanto, não é Deus que não pode criar esse mundo simplesmente porque ele não é “criável”. O mesmo se pode dizer do Homem. Deus não pode criar um Homem absolutamente perfeito, porque tal Homem seria (como) Deus. Tudo o que é criado tem limites. É esta finitude que nos traz o mal nas suas várias dimensões: física, psicológica, moral, metafísica, espiritual.

Mas avancemos mais um pouco. Sendo a liberdade uma das causas do mal, Deus podia ter criado o Homem sem liberdade. Mas não quis, porque um Homem sem liberdade não seria Homem; seria uma marioneta. E Deus, por amor, preferiu criar o Homem com liberdade, mesmo “sabendo os riscos que corria”: saberia o Homem, feito à sua semelhança, exercer correctamente a soberania que lhe confiou? Quereria o Homem continuar a sua tentativa titânica de ultrapassar os limites impostos ou deixar-se-ia guiar por Deus? (G. Fohrer) A missão que Deus deu à humanidade de “guardar e cultivar o jardim” contém em si a tentação de manipular a própria força criadora. Mas sem liberdade não há Homem. É a liberdade que caracteriza o Homem, de tal modo que o primeiro acto verdadeiramente humano foi o ter comido da árvore do bem e do mal (E. Fromm), contra a vontade de Deus.

Uma consequência teológica é que, ao criar o Homem com liberdade, o nosso Deus despiu-se da sua omnipotência, pois a partir daí a história passou a ser um diálogo dialéctico entre a vontade de Deus e a vontade do Homem, que, no fundo, será sempre um Ulisses que qtudo quer saber e fazer ou um Prometeu que até vai ao céu roubar o fogo a Júpiter. E o nosso Deus é um “fraco”, estruturalmente incapaz de impor a sua vontade a alguém, porque respeita a autonomia do Homem e da Natureza. Por isso não é legítimo atribuir-lhe as culpas que pertencem a um ou a outra.

Então, afinal, onde estava Deus no Haiti? Estava em todas as vítimas da Natureza e do Homem, porque Deus está sempre e primeiramente em todas as vítimas da história. O nosso Deus é um Deus crucificado. Esta é outra linha que devemos ter presente no nosso raciocínio. Deus podia fazer o milagre de salvarao seu Filho da morte na cruz. Mas isso era interferir na vontade dos homens que o condenaram; seria o tal “Deus milagreiro”. Se Ele não evitou o sofrimento do seu Filho, como podemos culpá-lo de não evitar o sofrimento dos outros. Mais: Deus não podia salvar o seu Filho da morte, porque faz parte estrutural da pessoa humana morrer e Jesus era (também) homem. com todas as suas limitações. Mas nós, os crentes, sabemos que este Deus “fraco”, crucificado, é quem tem a “última palavra”, porque nada acaba na Cruz. Tudo começa na Cruz e culmina na Ressurreição.

E onde está Deus agora no Haiti? Está em todos os que ajudam a reconstruir o país e levam esperança e amor aos que tudo perderam. Onde está o Amor, aí está Deus.
É este o nosso papel. Tudo fazer para evitar todas as formas de sofrimento e de mal,em vez de os ir aumentando com a cruz das nossas injustiças.
Porque o mal nunca é querido por Deus, que é Amor. O mal é um mistério que só o escândalo da Cruz ajuda a iluminar.

2010-02-16

O Papa em Portugal

A propósito da vinda a Portugal de Bento XVI publiquei na minha coluna habitual do Correio de Coimbra a reflexão que reproduzo agora aqui.

FALTAM CEM DIAS

Ouvi dizer que Bento XVI vem a Portugal daqui a uns cem dias. Quero crer que as comunidades estão a preparar-se. É uma crença periclitante, pois penso no que se passa com as Visitas Pastorais que o Bispo faz às paróquias. Deitamos muitos foguetes, organizamos encontros, mas… que preparação espiritual e doutrinal se faz? Que compromissos pessoais e comunitários delas resultam? Conheço bem a velha cassete desculpabilizadora de que os “frutos espirituais não se vêem e o Espírito trabalha no silêncio”. Certo! Mas discordo do argumento. Se não se vêem resultados, como sabemos que eles existem? Dir-me-ão que sou um “homem de pouca fé”. Aceito. Mas se não há sinais visíveis no nosso estilo de via, afinal o que fica: haverá mesmo um “trabalho espiritual”? Não é pelos frutos que se conhece a árvore? “Não se esconde a candeia debaixo do alqueire”, mas põe-se à vista de todos para que “os homens vendo as vossas boas obras glorifiquem o vosso Pai que está no Céu” (Mt 5, 25-16). Bem sei que “é um o que semeia e outro o que colhe” (Jo 4,37), mas estamos mesmo a semear alguma coisa?
A visita do Papa não é uma visita, mas um acontecimento: é uma oportunidade rara para reflectir e nos reflectirmos. O Papa vem e pode juntar muita gente, mas o que fica no “dia seguinte” em nós, nas nossas comunidades, na Igreja e na sociedade em Portugal?
A Palavra de domingo passado, além de enaltecer a caridade, lançava-nos um outro grande desafio: o de ser profeta. “Cinge os teus rins e levanta-te para ires dizer tudo o que Eu te ordenar” (Jer 1,5) e “passando pelo meio das pessoas, Jesus seguiu o seu caminho” são a missão do profeta a que todos, individual e colectivamente, somos chamados. Destas palavras fiz uma ponte para a vinda do Papa. Ser profeta é a nossa vocação “desde o ventre materno”. E temo-la falhado no mundo de hoje, que tanto precisa de uma palavra e de um testemunho credíveis de esperança, de sentido de vida, de afirmação de que nenhum crise é definitiva mas, antes, uma ocasião para tentar “uma nova terra”, com espaço e acolhimento para todos, pessoas e povos.
Mas também temos falhado na missão de profetas dentro da Igreja: não só os leigos, mas também os leigos. Assim, devíamos lembrar o Papa para que pedisse contas das recomendações que fez aos nossos Bispos e apresentar-lhe as dificuldades e propostas, a partir da nossa condição de baptizados, superando o nosso complexo de inferioridade frente ao clero, pois também nós amamos a Igreja e queremos que ela seja cada vez mais um rosto sedutor de Jesus Cristo. Devemos, por isso, exigir que a Comunhão se torne efectiva e não apenas formal sem qualquer conteúdo estruturante da comunidade cristã: por exemplo, que os Conselhos Pastorais sejam assumidos seriamente por todos como o principal órgão da comunidade, que participem efectivamente na definição, programação e avaliação dos planos pastorais. Precisamos de ver garantido o direito fundamental à Eucaristia, sem a qual não pode existir nenhuma comunidade cristã (PO 6): para isso são necessárias medidas inovadoras e ousadas que não se resumam a manter fórmulas seculares passadistas. Necessitamos de uma moral conjugal e sexual vista à luz dos novos contextos e não apenas por celibatários sexagenários que pouco sabem da prática da família de hoje nas suas várias vertentes. Queremos uma catequese bem elaborada e adaptada aos dias de hoje: mesmo a sua vertente sacramental (e onde está a doutrina conciliar ou a DSI?), é tão pobre especialmente quanto ao Baptismo, pelo qual “somos incorporados em Cristo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes da função sacerdotal, profética e real de Cristo” (LG 31), e ao Matrimónio que, num “processo gradual e contínuo”, exige uma preparação remota, próxima e imediata (FC 66-68) e um especial “cuidado pós-matrimonial” numa sociedade que lhe é tão centrífuga e num contexto teológico de tão difícil compreensão do “grande mistério do amor de Deus”, de que o Matrimónio é sinal, pois “só na condição de se assumirem como partícipes de tal amor e desse “grande mistério”, é que os esposos podem amar “até ao fim”: ou se tornam partícipes dele, ou então não conhecem plenamente o que seja o amor nem quanto sejam radicais as suas exigências” (Carta às Famílias, 19). Precisamos de padres, que irradiem fé, esperança e amor de Deus, sejam acolhedores e servidores e não donos da comunidade e que “a sua vida seja uma quotidiana realização da "caridade pastoral" (de Jesus): sente compaixão pelas multidões porque estão cansadas e esgotadas como ovelhas sem pastor; procura as dispersas e tresmalhadas e festeja o tê-las reencontrado, recolhe-as e defende-as, conhece-as e chama-as uma a uma pelo seu nome, condu-las aos pastos verdejantes e às águas refrescantes, para elas põe a mesa, alimentando-as com a Sua própria vida” (PDV 22).
Haverá espaço para os leigos falarem ao Papa? E caso haja, quererão dizer-lhe estas coisas ou preferirão dizer-lhe o “politicamente correcto”, tornando-se “mais papistas que o Papa”?
Mas também, como profetas, temos o dever de nos comprometermos perante o Papa a ser testemunhas sedutoras de Jesus Cristo em todos os âmbitos da vida social, a contribuir para tornar as nossas celebrações eucarísticas um sinal irradiante da beleza amorosa do nosso Deus e “apetecíveis” sobretudo para os mais novos, a ser, como comunidade, o agente principal do exercício da caridade, com a convicção profunda de que “para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (DCE 25).
Vamos a isto? Cem dias talvez ainda cheguem para tomarmos estas decisões que vão implicar profundas mudanças na Igreja e nos nossos comportamentos individuais e sociais.

2010-02-14

CinV (93) Globalização (2) (nº 42)

Vimos que o Papa denuncia uma mentalidade fatalista que muitos têm perante a globalização. Daqui decorrem dois perigos que geram um círculo vicioso cuja consequência é reforçar as dimensões negativas da globalização.
O primeiro consiste em nos acomodarmos, desistindo de lutar porque “não adianta nada”, porque “que posso eu fazer?”, porque “o sistema segrega ou esmaga quem se lhe opõe”. Esta atitude é especialmente perigosa porque promove uma abulia e uma sonolência, impróprias de quem tem a obrigação e a missão de ser agente, consciente e livre, da historia. Mas há também o perigo de, ao deixarmos a globalização “à solta”, ela prosseguir sem regras e critérios "humanos", instalando-se a lei da selva, a lei do mais forte ou do menos escrupuloso: “Se a globalização for lida de maneira determinista, perdem-se os critérios para a avaliar e orientar. Trata-se de uma realidade humana que pode ter, na sua fonte, várias orientações culturais, sobre as quais é preciso fazer discernimento”. Este pluralismo, que só pode ser enriquecedor, tem de ser visto no largo contexto da humanidade como uma única família: “A verdade da globalização enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem”. Como temos visto, o Papa vai recordando, de tempos a tempos, como um gong, este critério da unidade do género humano e dele vai retirando consequências várias. Também aqui aparece mais uma: “Por isso é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial”.
Esta afirmação está carregada de conteúdo, como se vê pelas palavras utilizadas:
- orientação: tem de haver um rumo orientador, um sentido claro, objectivos últimos bem definidos;
- cultural: não se trata de uma mera posição individual ou acidental, mas de um conjunto de valores estruturantes de uma comunidade;
- personalista: estes valores devem dar prioridade à pessoa; aliás o primado da pessoa é um dos grandes pilares da DSI, de tal modo que João Paulo II a coloca como o critério de toda a acção da Igreja: “Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa essencial, diria mesmo em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis leigos, são chamados a prestar à família dos homens” (ChL 37);
- comunitária: a pessoa é um ser-para-os outros, tem uma dimensão social estruturante, que João Paulo II caracteriza assim: “O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão” (RH 14);
- aberto à transcendência: quando se fecha na sua imanência, a pessoa não só se considera auto-suficiente, prometeica, mas também perde a visão panorâmica, a visão de conjunto, da sua história passada, presente e futura;
- integração mundial: constituímos, como acabei de referir, uma única família, temos todos igual direito a sentarmo-nos à mesa comum, porque “a origem primeira de tudo o que é bem é o próprio acto de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos". Mas "Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém” (CA 31).

2010-02-11

CinV (92) Globalização: Atitudes a superar (1) (nº 42)

A ideia central aqui desenvolvida sobre a globalização não é apenas a da sua ambiguidade ou ambivalência, característica típica de todos os processos e dinamismos humanos, mas sobretudo a necessidade de assumirmos o papel de seus orientadores e agentes e de não nos deixarmos controlar por ela.
É evidente que a globalização tem “algumas limitações estruturais, que não se hão-de negar nem absolutizar”, mas o Papa prefere destacar as nossas responsabilidades no processo bem como o carácter instrumental que a globalização necessariamente deve ter, socorrendo-se de um discurso de João Paulo II: “A priori, a globalização não é positiva nem negativa. Ela será aquilo que dela se fizer. Nenhum sistema é um fim em si mesmo, e é necessário insistir sobre o facto de que a globalização, assim como qualquer outro sistema, deve estar ao serviço da pessoa humana, da solidariedade e do bem comum” (27.Abril.2001).

Assim sendo, há várias atitudes que devemos analisar com cuidado e tomar as medidas apropriadas para lidar saudavelmente com a globalização.
A primeira que o Papa denuncia é a do fatalismo: “Notam-se às vezes atitudes fatalistas a respeito da globalização, como se as dinâmicas em acto fossem produzidas por forças impessoais anónimas e por estruturas independentes da vontade humana”.
Esta é uma atitude muito frequente e não só relativamente à globalização. É certo que muitos mecanismos que criamos para fazer o bem ou promover o desenvolvimento das pessoas ou das sociedades podem, com facilidade, tornar-se “mecanismos perversos” (SRS 16) e resvalar para “estruturas de pecado”, acabando por “se reforçar, expandir e tornar fontes de outros pecados, condicionando a conduta dos homens” (SRS 36). Esta é uma preocupação presente noutros documentos, pois o que está em jogo é a nossa condição (ou não) de protagonistas e agentes da história. Na Instrução sobre a “Liberdade cristã e a Libertação” pode ler-se: “O conjunto de das instituições e práticas (estruturas) que os homens já encontram em acção ou criam, no plano nacional ou internacional, e que orientam ou organizam a vida económica, social ou política (embora) necessárias em si, tendem, frequentemente, a fixar-se e a endurecer em mecanismos relativamente independentes da vontade humana, paralisando ou pervertendo o desenvolvimento social ou gerando a injustiça. No entanto, dependem sempre da responsabilidade do homem que pode modificá-las e não de um pretenso determinismo histórico” (LC 74).
Estas duas citações parecem não levar muito em conta os inúmeros condicionalismos em que vivemos, nos influenciam e até limitam a nossa vontade de “fazer bem”. É certo que, muitas vezes, nos desresponsabilizamos e preferimos deixar “andar as coisas”, mas, por outro lado, não podemos esquecer que o mundo e as pessoas também estão marcados pelo pecado. Já S. Paulo resumia de um modo exemplar este nosso dilema: “Sabemos, de facto, que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é que faço. Ora, se o que eu não quero é que faço, estou de acordo com a lei, reconheço que ela é boa. Mas então já não sou eu que o realizo, mas o pecado que habita em mim. Sim, eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita coisa boa; pois o querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico” (Rom 7,14-19).

Por isso, me parece mais condizente com esta nossa realidade tão condicionante as palavras do Sínodo dos Bispos de 1971, que associa a nossa responsabilidade com a nossa impotência: “Perante esta situação do mundo hodierno, marcado pelo grande pecado da injustiça, sentimos a nossa responsabilidade nela, ao mesmo tempo que experimentamos a nossa impotência para a superar, com as nossas forças. Tal situação leva-nos a colocar-nos, com coração humilde e sincero, à escuta da Palavra de Deus, que nos mostra novos caminhos para a acção em prol da justiça no mundo” (30).

2010-02-07

CinV (91) Autoridade Mundial em João XXIII

O IV Capítulo da encíclica Pacem in Terris conclui que a interdependência crescente entre os povos (130-132) exige uma autoridade mundial (133-137) que deve ser instituída de comum acordo (138), proteger os direitos das pessoas (139) e respeitar o princípio da subsidiariedade (140-141). Considera a ONU um passo importante nesse sentido (142-144) e lembra a necessidade de fomentar uma maior consciência universal (145).
Partindo de uma divergência evidente – a autoridade existe na comunidade nacional mas não na comunidade mundial – João XXIII desenvolve a tese de que, existindo um bem comum universal, tem também de haver uma comunidade universal para o poder realizar: “Como o bem comum de todas as nações propõe hoje questões que interessam a todos os povos e como tais questões só podem ser encaradas por uma autoridade pública cujo poder, forma e instrumentos sejam suficientemente amplos e cuja a acção se estenda a todo o mundo, resulta que, por exigência da própria ordem moral, é mister constituir uma autoridade pública ao nível mundial” (137).
Convém destacar esta novidade de um “bem comum universal”, que as condições de interdependência impõem (130), mas que é em tudo paralelo ao bem comum nacional, apenas incorporando um novo nível, os Estados nacionais (130). Por esta razaão, os direitos humanos continuam a ser o seu objectivo último (139) no respeito pelo princípio da subsidiariedade (140-141). Por isso, também as relações mútuas tanto entre as pessoas (35) como entre as nações (80) devem ser regidas pelos mesmos valores: verdade, justiça, amor/solidariedade e liberdade.
Como os Estados nacionais, integrados numa comunidade superior, nem sempre são capazes de garantir os direitos humanos, impõe-se, pois, a necessidade de estruturar esta comunidade mundial à imagem de cada Estado. Daí a distinção que o Papa faz entre “o direito das gentes (ius gentium)”, que regula as relações entre os povos, e “o direito internacional comum (ius omnibus nationibus commune)”, que regularia o funcionamento de uma comunidade política mundial (133).
Pio XII já tinha postulado a necessidade de uma autoridade mundial, mas apenas no âmbito da segurança (prevenção da guerra). João XXIII amplia-lhe as competências, estendendo-a ao largo âmbito do bem comum universal.
Por isso, João XXIII começa por destacar três aspectos: a inutilidade da guerra como meio para resolver os conflitos entre os povos (114; 126-129); a incapacidade dos Estados nacionais para garantirem o bem comum internacional (132-135); o fim da corrida aos armamentos, sobretudo os nucleares, exigido pela recta razão e pela dignidade humana (109-113).
Faz uma longa referência à ONU, desejando “vivamente” que ela se adapte cada vez melhor aos nossos tempos (142-145). E, ao defender decididamente, apesar de algumas reservas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (144-145), coloca um ponto final numa doutrina teológica, vigente durante vários séculos, que defendia uma concepção atomistíca da comunidade mundial, pois considerava o Estado, cada Estado, como uma "sociedade perfeita", quer dizer, como uma comunidade onde o homem podia conseguir todos os bens, de ordem política, social, económica e cultural, de que tem necessidade, excepto no plano religioso, reservado à Igreja, também ela uma "sociedade perfeita", mas na ordem espiritual.
João XXIII tem consciência das dificuldades na implementação de uma autoridade mundial, pelo que oferece três contributos:
- não ser imposta pela força, mas instituída de comum acordo, para poder garantir a igualdade entre os povos e limitar o predomínio das grandes potências (138),
- estar ao serviço do bem comum universal, "tendo como objectivo fundamental o reconhecimento, o respeito, a tutela e a promoção dos direitos da pessoa humana" (139); note-se que a referência é ainda "apenas" aos direitos humanos e não, como por exemplo fará Paulo VI, o desenvolvimento dos povos, sinal de que João XXIII foi um "papa de transição": teve intuições proféticas, mas ainda não dispunha de conceptualizações adequadas para as transcrever;
- respeitar o princípio da subsidiariedade, na sua dupla vertente: resolver os problemas que os Estados não podem resolver (140) mas sem calcar as competências próprias das autoridades nacionais (141).

2010-02-04

CinV ( 90) Autoridade Política (nº 41)

Bento XVI analisa também as consequências políticas que não podem esquecer-se “quando se procede à realização duma nova ordem económico-produtiva, responsável socialmente e à medida do homem”. Todos nós temos a percepção de que, quando se fizerem reformas na sociedade, elas não podem ser apenas sectoriais, sob pena de perderem a sua eficácia ou, pior ainda, violarem ou esquecerem direitos fundamentais quer das pessoas quer dos povos. Hoje, mais do que nunca, todos os sectores estão indissociavelmente entrelaçados, porque todos estão ou devem estar ao serviço da totalidade da pessoa, enquanto “ser uno, composto de corpo e alma” (GS 14). estas são as principais consequências.

1. Alargar o sentido de autoridade, tendo em conta o seu significado polivalente: “Assim como se pretende fomentar um espírito empresarial diferenciado no plano mundial, assim também se deve promover uma autoridade política repartida e activa a vários níveis”.

2. Reconhecer como indispensável a função do Estado, que, nos últimos, tempos tem sido posta em causa pelo predomínio de forças e ideologias neoliberais: “Razões de sabedoria e prudência sugerem que não se proclame depressa demais o fim do Estado; relativamente à solução da crise actual, a sua função parece destinada a crescer, readquirindo muitas das suas competências”.

3. Reforçar o papel do Estado, por duas vias:
- uma crescente cooperação e respeito mútuos, até porque muitos dos principais problemas que afectam a humanidade são transfronteiriços e ainda estamos numa fase em que os Estados (e os povos) dão muito maior importância aos interesses nacionais do que aos internacionais: “A economia integrada de nossos dias não elimina a função dos Estados, antes obriga os governos a uma colaboração recíproca mais intensa”;
- a proliferação de Estados de direito sobretudo entre países que não têm uma tradição histórica neste campo ou, talvez por causa disso, vivem em regimes ditatoriais mais ou menos disfarçados, ou pior ainda são controlados pelos “senhores da guerra” gerando situações de um ingovernável e de perigoso grau de insegurança: “Existem nações, cuja edificação ou reconstrução do Estado continua a ser um elemento-chave do seu desenvolvimento”. Neste capítulo é fundamental um empenhado apoio internacional, uma “ajuda internacional, precisamente no âmbito de um projecto de solidariedade” também ela a todos os níveis:
- não só no âmbito económico, pois também aqui tem aplicação a sabedoria popular de
“casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”;
- mas também nas várias áreas da organização sócio-político, consolidando os “sistemas
constitucionais, jurídicos, administrativos nos países que ainda não gozam de tais bens”:
“A par das ajudas económicas, devem existir outros apoios tendentes a reforçar as garantias
próprias do Estado de direito, um sistema de ordem pública e carcerário eficiente no respeito
dos direitos humanos, instituições verdadeiramente democráticas”.

4. Evitar os perigos de um “neocolonialismos político” e a tentação de “exportar a (nossa) democracia”, a qualquer preço, sem ter em conta os contextos específicos de cada região: “Não é preciso que o Estado tenha, em todo o lado, as mesmas características: o apoio para reforço dos sistemas constitucionais débeis pode muito bem ser acompanhado pelo desenvolvimento de outros sujeitos políticos de natureza cultural, social, territorial ou religiosa, ao lado do Estado”.

5. Construir uma autoridade mundial. Sem usar directamente esta expressão, Bento XVI retoma uma ideia muito cara à DSI, sobretudo a partir de João XXIII, mas fá-lo de uma forma mais atenuada (ou realista?), atribuindo-lhe dois grandes objectivos, o de orientar a globalização económica e o de consolidar a democracia: “A articulação da autoridade política a nível local, nacional e internacional é, para além do mais, uma das vias mestras para se chegar a poder orientar a globalização económica; e é também o modo de evitar que esta mine realmente os alicerces da democracia”.

2010-02-01

CinV (89) Actualização do conceito de empresa (nº 41)

O espírito empresarial actualizado exige novos modelos de empresa: “Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem trabalha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de empresa, muito para além da simples distinção entre «privado» e «público»”. Mais uma vez, o Papa nos quer “libertar” do binómio mercado-Estado, recusando-se a aceitar que estas duas estruturas essenciais da organização social esgotem toda a capacidade criativa da(s) pessoa(s) ou seja suficientes para satisfazer as múltiplas e variadas necessidades do ser humao. Apesar da forte pressão materialista, a verdade é que todos sentimos que a nossa qualidade de vida passa obrigatoriamente por necessidade do âmbito “imaterial" e que o desenvolvimento da dignidade humana vai muito para lá do simples “ter”.
Por outro lado, destaca que estes dois modelos não podem gerir-se do mesmo modo: “Cada uma requer e exprime um espírito empresarial específico”. Recordar esta verdade simples é importante hoje, num tempo em que nem sempre são claras as fronteiras entre o público e o privado, lo que é fonte de graves suspeitas, fundadas ou não, sobre a falta de transparência que acabam por minar a credibilidade do cidadão nas suas instituições e na aplicação dos seus impostos.

Logo de seguida, Bento XVI olha para o futuro, tendo sempre como bússola norteadora o bem comum: “A fim de realizar uma economia que, num futuro próximo, saiba colocar-se ao serviço do bem comum nacional e mundial, convém ter em conta este significado amplo de espírito empresarial”.

Antes de continuar com a reflexão de Bento XVI, deixaria uma breve nota.
O bem comum, hoje tão reclamado, muitas vezes não passa de um conceito vago que parece ignorar que vivemos numa sociedade onde há conflitos de interesses e em que os seus membros se regem muito mais por princípios individualistas do que pelos da solidariedade e da subsidiariedade. Daí a necessidade de lhe dar um conteúdo mais concreto e enquadrá-lo com o exercício das responsabilidades dos cidadãos: “Uma concepção exacta de bem comum compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nas pessoas o desenvolvimento integral da personalidade” (MM 65). O Concílio retomou esta definição de João XXIII: “O bem comum compreende o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (GS 26).
Mas João XXIII foi mais longe enunciando um conjunto de exigências (MM 79-80), embora sem sair do âmbito económico, porque, no seu tempo, este era a principal fonte de desigualdades (e hoje ainda continua a ser, embora tenhamos tomado conciência de outras realidades igualmente injustas e discriminatórias):
- a nível nacional: dar emprego ao maior número possível de trabalhadores; evitar que se constituam categorias privilegiadas, mesmo entre trabalhadores; manter uma justa proporção entre salários e preços; tornar acessíveis a todos os bens e serviços de interesse geral; eliminar ou reduzir os desequilíbrios entre os sectores económicos; adaptar as estruturas produtivas aos progressos das ciências e das técnicas; moderar o teor de vida já melhorado da geração presente com a intenção de preparar um futuro melhor às gerações futuras;
- a nível mundial: evitar a concorrência desleal entre as economias dos vários países; favorecer a colaboração entre as economias por meio de convénios eficazes; cooperar para o desenvolvimento económico dos países menos evoluídos.

Mas, voltando a Bento XVI, vemos que ele acrescenta algo de novo, deduzindo os grandes contributos desta concepção mais ampla de uma economia ao serviço do bem comum:
- o intercâmbio e a formação recíproca entre as diversas tipologias de empresariado;
- transferência de competências:
- do mundo sem lucro para aquele com lucro e vice-versa,
- do sector público para o âmbito próprio da sociedade civil,
- do mundo das economias avançadas para aquele dos países em vias de desenvolvimento.