divórcio ou casamento eterno?...

2010-04-25

25 de Abril



Abril de Sim Abril de Não


Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.

Manuel Alegre

2010-04-24

CinV (99) Crescimento demográfico (nº 44)

Sobre este tópico, Bento XVI apresenta algumas linhas de reflexão.

1) A sua relação intrínseca com o verdadeiro desenvolvimento
Não há desenvolvimento autêntico sem o respeito pelos direitos e deveres fundamentais; ora entre estes encontram-se “os valores irrenunciáveis da vida e da família”;

2) A falsidade da sua responsabilização pelo subdesenvolvimento
“Considerar o aumento da população como a primeira causa do subdesenvolvimento é errado, inclusive do ponto de vista económico”. É uma resposta clara a muitos sociólogos, políticos e economistas que consideram a “bomba” do crescimento demográfico como a grande causa do subdesenvolvimentos dos povos. As muitas bocas exercem uma forte pressão sobre a pequena quantidade e qualidade dos alimentos disponíveis. Mas o Papa não vai por esse caminho. Volta-se para os países desenvolvidos que estão a envelhecer, por duas vias:
- por um lado, aponta os avanços científicos que reduziram drasticamente a mortalidade infantil e aumentaram o tempo de vida das pessoas: “basta pensar, por um lado, na considerável diminuição da mortalidade infantil e no alongamento médio da vida que se regista nos países economicamente desenvolvidos”
- por outro, recorda os graves inconvenientes que a diminuição de natalidade acarretam contribuindo inclusivamente para alguns estrangulamentos económicos que “obrigam” a uma crescente imigração, tão pouco desejada e tão mal enquadrada do ponto de vista dos direitos humanos; para o provar aí estão “os sinais de crise que se observam nas sociedades onde se regista uma preocupante queda da natalidade”.

3) Necessidade de uma paternidade responsável
Esta é um verdadeiro factor de desenvolvimento: “Obviamente é forçoso prestar a devida atenção a uma procriação responsável, que constitui, para além do mais, uma real contribuição para o desenvolvimento integral”.

Sexualidade
Está feita a ponte para o problema da sexualidade. Uma das maiores fontes de atrito entre a Igreja a sociedade, não só agora mas também ao longo de muitos séculos, situa-se no campo da moral sexual. Hoje o problema reveste uma acuidade bem maior porque vivemos numa sociedade fortemente erotizada, onde o amor se banalizou e a questão da sexualidade parece ter-se reduzido a um problema de ensinamento de técnicas que evitem gravidezes indesejadas ou o “sexo seguro”, sem uma adequada concepção abrangente e harmoniosa do ser humano na sua integridade.
Sem entrar nos “pormenores” de fricção, o Papa recorda que a sexualidade deve ser sempre vista na perspectiva do desenvolvimento integral da pessoa: “A Igreja, que tem a peito o verdadeiro desenvolvimento do homem, recomenda-lhe o respeito dos valores humanos também no uso da sexualidade”.
Neste enquadramento estruturante de defesa de uma sexualidade verdadeiramente humana, há concepções e ideias dominantes tão reducionistas que não podem deixar de ser rejeitadas:
- a sexualidade vista como “um mero facto hedonista e lúdico”;
- a educação sexual reduzida a uma mera aprendizagem ou ensino técnico, cuja “única preocupação (consista em) defender os interessados de eventuais contágios ou do « risco » procriador”.
Olhar assim a sexualidade é “empobrecer e negligenciar o seu significado profundo”, significado esse que deve “ser reconhecido e assumido responsavelmente tanto pela pessoa como pela comunidade”:
- responsabilidade individual, para que a sexualidade não seja vivida e sentida “como uma simples fonte de prazer”;
- responsabilidade pública, para que não esteja sujeita nem dependente de simplistas “políticas de planificação forçada dos nascimentos”.
Em ambos os casos “estamos perante concepções e políticas materialistas, no âmbito das quais as pessoas acabam por sofrer várias formas de violência”

Esta reflexão conclui-se com uma concepção que a Igreja tem defendido intransigentemente, a da competência própria e até específica da família frente ao papel subsidiário do Estado: “A tudo isto há que contrapor a competência primária das famílias neste campo, relativamente ao Estado e às suas políticas restritivas, e também uma apropriada educação dos pais”.

2010-04-18

Alijar o essencial

Quem acompanhou a Eucaristia presidida pelo Papa hoje em Malta, teve a oportunidade de ouvir uma passagem dos Actos dos Apóstolos que poucas vezes nos é dado ouvir: as atribulações por que passou S. Paulo e os seus colegas de viagem na travessia do Mediterrâneo a caminho de Roma (Act 27). Duas observações sobre este episódio.
A primeira refere-se às dificuldades que acompanham sempre o evangelizador. Destaco três tipos. Um está na dificuldade em divulgar, de modo sedutor e suficientemente adaptado à época em que vivemos, a mensagem libertadora de Jesus de Nazaré. Hoje sofremos muito com esta dificuldade. Falamos, mas não nos entendem. Muitas vezes respondemos, mas a perguntas que ninguém faz. Estamos atentos mas mais ao “nosso umbigo” do que às reais necessidades das mulheres e dos homens de hoje.
O outro está na falta de paciência perante a falta de frutos imediatos que a nossa boa vontade e esforços nos “autoriza" a esperar ou até a exigir. Esquecemos que o Reino de Deus cresce como uma semente. A nós compete regar, pôr o adubo, arrancar as ervas daninhas e esperar que a semente se converta, ao seu ritmo, em planta. Aliás, Jesus já nos acautelara contra essa pressa: “é um o que semeia e outro o que colhe”. E o senhor do campo fez uma coisa incrível: não deixou arrancar o joio e mandou esperar até à ceifa. Será possível tal disparate? É, se nos lembrarmos que muitas vezes podemos considerar joio o que é trigo e julgar como trigo o que é joio. Isto é, nem sempre vemos a história e a realidade com os olhos da autêntica justiça e da fé e demasiadas vezes julgamos apenas pelas aparências.
E há ainda as próprias dificuldades “físicas”: o cansaço, físico e psicológico, a “falta” de tempo, a necessidade de estudar, reflectir e preparar em vez do comodismo de improvisar e de repetir o que sempre temos feito na nossa actividade pastoral.

A segunda nota diz respeito à própria Igreja, tantas vezes simbolizada por uma barca. O barco em que seguia Paulo começou a ser fustigada por ventos muito fortes que ameaçavam afundá-lo. Então tomaram a decisão apropriada para tais situações: ir alijando o que não era necessário. Primeiro foi a carga, que certamente servia para dar lucro a alguém. Depois até os “aparelhos do navio”, porque esses meios de orientação já não serviam para nada: “nem o sol nem as estrelas se viam há muitos dias”.
Também hoje a Igreja e a humanidade estão num “mar encapelado” criado por uma crise profunda: uma crise não apenas financeira, mas também económica, cultural, social e sobretudo ética.
A humanidade talvez esteja a alijar demasiadas coisas, sobretudo os seus valores de referências. Talvez esteja a atirar pela borda fora coisas que ainda lhe são necessárias para poder continuar com segurança e rumo o seu caminho, até os poder substituir por outros mais adequados aos novos tempos mas também, pelo menos tão seguros e certos como os que tinha até aqui e que a ajudaram a chegar até aqui.
A Igreja talvez não esteja a alijar uma série de aderências históricas, que agora não são essenciais e só servem para atrasar e a amarrar ao passado: cumpriram o seu papel fundamental nesse tempo mas, hoje, perderam validade, não respondem às necessidades actuais e, portanto, dificultam a sua missão. Torna-se urgente alijar essa carga inútil para poder ter espaço para os novos “aparelhos do navio”, que, sempre fieis à Palavra de vida eterna, revistam formas mais adequadas às exigências e aos desafios que continuamente aparecem.
É o que o Espírito de Deus espera da Igreja em geral e de cada um dos seus membros e comunidades em particular: “Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, para que assim possa responder, de modo adaptado a cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações e o seu carácter tantas vezes dramático” (GS 4).

Até porque, como diz a primeira Leitura de hoje, que foi lida em todo o mundo excepto em Malta: “Deve obedecer-se antes a Deus do que aos homens” (Act 5,29).

2010-04-13

Quem fala com Tomé com todos é

O episódio relatado pelo evangelho de domingo passado estimulou-me a reflectir com qual dos apóstolos me identificava mais.


Pedro é aquele homem com o coração ao pé da boca, que se atira sem pensar nas consequências. Não quis ele andar sobre as águas? Não puxou da espada e cortou a orelha ao criado do sumo-sacerdote? Não queria ficar toda a eternidade no cimo do Monte Tabor? Não foi ele o primeiro (e único) que respondeu à pergunta sobre quem era Jesus? Mas é homem também a quem o medo tolhe a vontade e o empurra para acções que depois o amarguram, mas não o fazem perder a cabeça: o quanto deve ter sofrido por ter negado o seu Mestre, a pessoa que ele certamente mais amava!
Gosto muito de Pedro, mas não me serve de modelo porque depois ficou o chefe da Igreja e eu não me dou muito bem com as chefias.

João, “o discípulo amado” por excelência. Amou profundamente e passou a vida, até à sua velhice extrema, a repetir: “Amai-vos uns aos outros” ou “Se dizeis que amais a Deus que não vedes e não amais o irmão que vedes sois mentirosos” ou “Não se ama por palavras mas por obras”. É amor demais para eu ser capaz de imitar em plenitude.

Sobre Tiago tenho algumas reservas, sobretudo pelo seu comportamento como bispo de Jerusalém: um homem fechado, incapaz de qualquer abertura. Não havia volta a dar-lhe: queres ser cristão, tens de ser circuncidado e deixar de comer carne de porco. Esta estreiteza de vista, que alguns (?!) responsáveis da Igreja herdaram, é demasiado claustrófoba para o meu espírito que precisa de ar para respirar.
Sei que tem muitos admiradores e seguidores, mas eu não vou muito por aí.

Dos outros, de quem se fala pouco, restam os mais conhecidos: Tomé e Judas.
E, para mal dos meus pecados, não sei dizer com qual simpatizo mais. Mas vamos por partes.

Primeiro quero esclarecer que não alinho muito, ou melhor nada, na tese da traição ou da ganância do dinheiro. Eu olho para Judas, como um cidadão tão preocupado com a situação do seu país, com a necessidade da sua libertação que apostou tudo em Jesus. O drama dele é que Jesus não tinha a mesma perspectiva que ele quanto à missão libertadora. Por isso (digo eu!), Judas quis colocar Jesus entre a espada e a parede: entregava-o às autoridades judaicas para obrigar Jesus a tomar uma posição e chefiar uma revolta à maneira de Judas.
Nesta perspectiva, devo dizer que Judas é o exemplo que a maioria de nós segue: muito gostamos de colocar Deus entre a espada e a parede. Exigir de Deus o que eu quero e não o que Ele quer. Daí as promessas, o cumprimento formal (e hipócrita tantas vezes) dos seus “mandamentos”, cumpridores como o fariseu que satisfazia religiosamente a letra da lei. Até muita da nossa oração é para obrigar Deus a fazer o que nos interessa e agrada.

Depois vem Tomé, que me parece o melhor modelo para este momento que vivemos. Neste tempo em que somos continuamente manipulados, onde a mentira faz parte da notícia, do comentário, da opinião publicitada. Em que não sabemos em quê ou em quem devemos ou podemos acreditar. Tomé não foi em cantigas. Nem sequer nos amigos confiou. Eu não quero ir tão longe. Mas basta olhar para a nossa sociedade e ver, por exemplos, o que os “amigos” políticos fazem aos seus amigos. Mas os exemplos podem estender-se a todos os âmbitos da vida e a toda a escala social por aí abaixo.
Tomé quis ver para crer. Não concordo com ele, quando o que está em questão é a fé. A fé é crer sem ver, como aliás Jesus lhe disse. A fé é acreditar no que não posso demonstrar. Caso contrário não é fé mas ciência.
Mas, fora do âmbito da fé, Tomé indica-nos o caminho a seguir: não acreditar em tudo o que nos dizem. Procurar confirmar as opiniões dominantes. Assegurar-se de que não se trata de interesses individuais ou tribais. Procurar descobrir o que é verdadeiro, no meio de tanta confusão.

Que S. Tomé me ajude e a todos nós!

2010-04-03

A URGÊNCIA DE UMA NOVA VISÃO

Antigamente, tudo parava liturgicamente. Parecia uma reminiscência ou uma de “mistérios antigos”, em que um(a) deus(a) descia aos infernos e a Terra ficava sem capacidade de produzir nada.
Hoje vemos as coisas doutra maneira: mais espiritual, mais enriquecedora. É um tempo de paragem, uma paragem criativa, em que procuramos pensar no nosso ser cristão, nos porquês da nossa fé e da nosso modo de vivê-la frente aos outros.
A Carta do Papa aos católicos da Irlanda é um bom texto de apoio, porque aborda muitas questões para as quais não temos tido tempo para pensar.
O meu pequeno contributo para hoje é o artigo que acabo de publicar e que aqui reproduzo.

A Carta, que o Papa acaba de enviar aos católicos da Irlanda, que, no fundo, é dirigida à própria Igreja universal que se manifesta nas várias Igrejas locais e suas comunidades paroquiais. As suas análises e propostas devem ser bem ponderadas por todos.
Não vou falar da pedofilia, cuja extrema gravidade foi, finalmente, interiorizada nesta longa caminhada ética da humanidade. Pois não há muito tempo, a maioria esmagadora olhava para estas violências com excessiva benevolência e sem sensibilidade para perceber que, mesmo “quando éreis suficientemente corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós, que sofrestes abusos nos colégios, deveis ter compreendido que não havia modo de evitar os vossos sofrimentos” (6).
O Papa aponta algumas causas habituais: a rápida transformação social e a secularização, a rarefacção da prática sacramental, a adopção, por padres e leigos, de pensamento e análise da realidade sem referência suficiente ao Evangelho, a fraca e deficiente recepção do Concílio e, “em particular, a tendência, ditada por recta intenção mas errada, para evitar abordagens penais em relação a situações canónicas irregulares” (4).
Mais importantes, no momento actual da Igreja, são as causas próximas cujas repercussões vão muito para lá deste crime hediondo.
Procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa”. A Igreja, preocupada com as estatísticas e incapaz de mexer em estruturas seculares já desajustadas ao nosso tempo, tem cometido o erro de aceitar “qualquer um”, facilita preferindo a quantidade à qualidade, baixou o nível de exigência esquecendo que “é hora de propor de novo a todos, com convicção, esta “medida alta” da vida cristã comum” que é o Sermão da Montanha” (MNI 31).
Insuficiente formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados“. Pela minha experiência no Seminário da diocese de Coimbra não subscrevo de todo estas palavras. Mas, se o Papa o diz, é porque tem fundadas razões para o afirmar e todos esperamos que sejam rectificados estes aspectos. Penso que ficariam bem aqui as palavras de João Paulo II: “A sua (dos presbíteros) vida é uma ininterrupta manifestação, melhor, uma quotidiana realização da sua (de Jesus) "caridade pastoral": sente compaixão pelas multidões porque estão cansadas e esgotadas como ovelhas sem pastor; procura as dispersas e tresmalhadas e festeja o tê-las reencontrado; recolhe-as e defende-as; conhece-as e chama-as, uma a uma, pelo seu nome, condu-las aos pastos verdejantes e às águas refrescantes; para elas põe a mesa, alimentando-as com a Sua própria vida” (PDV 22).
Uma tendência na sociedade a favorecer o clero e outras figuras com autoridade”. Embora esta tendência seja reduzida na sociedade, ela está ainda presente em demasiados membros do clero, que muitas vezes se consideram donos e senhores da paróquia e não têm o devido respeito pelos leigos, esquecendo a recomendação conciliar: “Os sagrados pastores devem reconhecer e fomentar a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja; recorram espontaneamente ao seu conselho prudente, entreguem-lhes confiadamente cargos em serviço da Igreja e dêem-lhes margem e liberdade de acção, animando-os até a tomarem a iniciativa. Considerem atentamente e com amor paterno, em Cristo, as iniciativas, pedidos e desejos propostos pelos leigos. E reconheçam a justa liberdade que a todos compete na cidade terrestre” (LG 37).
Uma preocupação inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos”. Esta atitude é tão à medida de outras instituições “humanas” e tão contrária ao Evangelho (“Seja este o vosso modo de falar: sim, sim; não, não”: Mt 5,37), que, para já não vou comentar, pois dado o seu (ab)uso nestes casos, como em muitos outros, merece um futuro comentário mais alargado.
O Papa faz outra acusação, cujas consequências no dinamismo da Igreja são iniludíveis. Dirigindo-se aos Bispos acusa-os de graves erros de avaliação e sobretudo de falta de liderança: “alguns de vós falhastes, por vezes gravemente… Foram cometidos sérios erros no tratamento das acusações … foram cometidos graves erros de juízo e verificaram-se faltas de governo. Tudo isto minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência” (11). Por isso: “Proponho que se realize uma Missão a nível nacional para todos os bispos, sacerdotes e religiosos. Alimento a esperança de que, haurindo da competência de peritos pregadores e organizadores de retiros quer da Irlanda como de outras partes, e reexaminando os documentos conciliares, os ritos litúrgicos da ordenação e da profissão e os recentes ensinamentos pontifícios, alcanceis um apreço mais profundo das vossas respectivas vocações, de modo a redescobrir as raízes da vossa fé em Jesus Cristo e a beber abundantemente nas fontes da água viva que ele vos oferece através da sua Igreja” (14).
Mas nós os leigos também temos muitas culpas porque não vivemos a sério o ser cristão, não assumimos tornar a Igreja mais rosto de Jesus Cristo, não somos exigentes, sempre com caridade e fortaleza, com os padres e os bispos que temos. Silenciados pelo nosso comodismo e incoerência e pelo nosso complexo de inferioridade frente ao clero, valorizamos mais a dependência e subserviência ou hostilidade à hierarquia do que a obediência libertadora ao Evangelho: “Também os leigos devem ser encorajados a fazer a sua parte na vida da Igreja. Fazei com que sejam formados de modo que possam dizer a razão, de maneira articulada e convincente, do Evangelho na sociedade moderna e cooperem mais plenamente na vida e na missão da Igreja. Isto, por sua vez, ajudar-vos-á a ser de novo guias e testemunhas credíveis da verdade redentora de Cristo” (11

2010-04-02

Maria e Marta

Há quase dois mil anos, neste mesmo dia, um pequeno grupo de amigos vivia um dos momentos mais dramáticos das suas vidas. Tudo aquilo em que foram acreditando ao longo de três anos, toda a confiança, muito humana, que foram ganhando de que o seu Senhor e Mestre iria continuar a sua obra de modo claro e sem dificuldades de maior e que Ele era uma pessoa para a eternidade, tudo isso de repente começou a desmoronar-se. A excepção foram duas ou três mulheres. Mulheres, ainda por cima: gente que não merecia qualquer consideração. Só esse Mestre, de quem eles tanto esperaram, é que as considerava iguais aos homens em dignidade e consideração.
Chegada a Hora, a maior parte dos amigos de Jesus “fugiu”, alguns atraiçoaram-no, todos acreditavam que Ele ainda iriam salvar Israel do domínio dos Romanos. Ele bem os avisara, mas eles, cegos pelo ambiente cultural da época, não o levaram muito a sério. Até porque Ele fazia tudo “às avessas”. Punha toda aquela sociedade em questão. Censurava os sacerdotes e os levitas e louvava o estrangeiro samaritano. Falava com as mulheres em público, quando nem os maridos o podiam fazer. Não condenou a mulher adúltera, quando a lei mandava apedrejá-la. Falava e até tocava nos leprosos, uma atitude execranda naqueles tempos. Mandava reter a oferenda perante o altar enquanto não fossem feitas as pazes com as pessoas. Corria a golpes de chicotes aquele bando de ladrões que faziam do Templo a caverna de Ali Babá.
Mas os discípulos não perceberam quase nada disto. E este sentimento foi o que melhor assimilámos, nós os cristãos, sobretudo depois do século IV até hoje, apesar do legado preciosíssimo das Sagradas Escrituras e da Tradição. Mesmo a nível dos “altos dignitários”, quanta descrença nesta atitude transformadora que o Evangelho traduziu por metanóia, conversão do nosso modo de ser e de agir conforme a Pessoa de Jesus, esse Acontecimento único na História.

Por isso, hoje é um dia que nos convida à meditação sobre o que é “a melhor parte”. Jesus já o dissera a propósito de Marta e Maria, duas irmãs tão diferentes no seu feitio e no seu modo de ver a vida, mas ambas mulheres de muita fé: “Se cá estivesses, o meu irmão não teria morrido”.
Maria e Marta têm-me feito pensar muito. É essencial ser Maria para que os fundamentos da minha vida e da minha fé sejam profundos e resistam às intempéries da vida. É essencial ser Marta para que esses alicerces frutifiquem e não fiquem perdidos na contemplação extática mas improdutiva.
O que aconteceria se Marta se sentasse aos pés de Jesus e ali ficasse com Maria a noite e o dia seguinte e a noite seguinte e o dia seguinte? Teriam morrido à fome e à sede ou Jesus repetiria o milagre dos peixes e dos pães?
O que teria acontecido à expansão do Evangelho se Pedro, Tiago e João ficassem extáticos na contemplação de Jesus, Elias e Moisés, paralisados toda a vida no Monte Tabor esquecendo que o mundo, o real chato quotidiano, é cá em baixo, na cidade dos homens e das mulheres, que vivem tantas vezes sem sonhos nem utopias?
O que sucederia à missão que o Pai lhe assinalou, se Jesus ficasse eternamente no deserto e não afrontasse as aldeias e sobretudo a cidade dos doutores que escarneciam da sua doutrina e temiam, numa raiva mortal, o seu testemunho?
Afinal, se queremos ser cristãos a sério temos de assumir as duas facetas: a de Maria, que contempla, e a de Marta, que actua. Ora et labora sintetizou S. Bento. Não podemos ser espiritulistas por comodismo nem activistas por impulso. Não contam para aqui os que não sou uma coisa nem outra. Esses não são. Andam por aí, sem eira nem beira. Infelizmente este bando está a tornar-se esmagadoramente maioritário.
Por isso, eu quero ser Maria e Marta ao mesmo tempo. Quero, mas não sou. Algumas vezes parece que o consigo. Mas umas vezes sou só Maria; outras, sou só Marta; a maior parte da vezes talvez não seja nem uma nem outra.

Termino, com este oportuno apotegma de Silvano, um dos “padres do deserto”:
“Um irmão foi procurar abba Silvano à montanha do Sinai. Vendo os irmãos que trabalhavam, disse-lhes:
- Não trabalheis pelo alimento que perece. Maria, de facto, escolheu a melhor parte.
Silvano disse então a um dos seus discípulos:
- Zacarias, entrega um livro a este irmão e deixa-o na cela sem lhe dares mais nada.
Ao chegar a hora nona, o visitante olhava atentamente para a porta a ver se alguém vinha convidá-lo para comer. Como ninguém aparecia, levantou-se e foi ter com o Ancião:
- Os irmãos não comeram hoje?
O Ancião respondeu-lhe afirmativamente.
- Então por que não me chamaste?
O Ancião retorquiu:
- Porque tu és um homem espiritual e não tens necessidade deste alimento. Nós, porque somos carnais, precisamos de comer, por isso trabalhamos. Tu escolheste a melhor parte: leste todo o dia e não desejas comer alimento carnal.
Ao ouvir estas palavras, o irmão prostrou-se dizendo:
- Perdoa-me, apa.
O Ancião disse-lhe então:
- Na verdade, mesmo Maria tem necessidade de Marta. É graças a Marta que se faz o elogio a Maria” (PADRES DEL DESIERTO, Apotegmas, Sígueme, Salamanca 1986, p. 167).



2010-04-01

Quinta-feira que é santa

Para os católicos esta semana tem um especial significado.
Nesta quinta-feira comemoramos o último momento de verdadeira amizade que Jesus viveu neste mundo, à mesa com os seus discípulos e amigos mais íntimos. Pouco depois, começava o verdadeiro calvário, com os vai-vens de Herodes para Pilatos, o escárnio dos soldados e das autoridades, a flagelação, a violenta e dolorosa via sacra a caminho do Gólgota para ser pregado na Cruz.
Hoje costumo recordar a Última Ceia, especialmente um dos seus momentos mais significativos. Refiro-me a “um” episódio que os evangelistas contam de modo muito diferente. E é essa diferença que alimenta a minha fé e as consequências dela decorrentes.

Os Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) narram a “instituição da Eucaristia”, com palavras muito próximas das que hoje repetimos nas celebrações eucarísticas: a partilha do pão e do vinho, com a garantia de que passou a ser o seu Corpo e Sangue que ia ser entregue por todos nós. E termina com “não beberei mais deste produto da videira até ao dia em que o hei-de beber de novo convosco no Reino de meu Pai”. Não são antes no recomendar: “Fazei isto em Minha memória” (Lc. 22,19).
O quarto evangelista, João, faz um relato totalmente diferente. Descreve a Ceia num âmbito muito mais íntimo e mais “profundo” onde os sentimentos de unidade e da partida que não é uma partida definitiva são desenvolvidos em vários tons e variações sobre o amor. No centro deste hino ao amor mútuo, João coloca o “lava-pés”. Depois de lavar os pés ao discípulos, disse-lhes: “Compreendeis o que vos fiz? Vós chamai-me Senhor e Mestre e dizeis bem, visto que o sou. Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como Eu fiz, façais vós também” (Jo 13,12-15).

Se João conta o lava-pés em vez da instituição da Eucaristia é porque estes dois acontecimentos são apenas um. Eucaristia = lava-pés? É estranho e até herético para muitos. E é por causa dessa estranheza ou quase heresia, que nós temos o cristianismo tão light, tão sem calorias, tão sem substância. Como dizia João Crisóstomo: “Porque o mesmo que disse: "Este é o meu corpo" e com a sua palavra firmou a nossa fé, é o mesmo que disse: "Vistes-me com fome e não me destes de comer". Portanto, não pode haver Eucaristia sem lava-pés nem lava-pés autêntico sem Eucaristia. Porque a Eucaristia não acaba como o ”Ide-vos”. É realmente a partir daí que nós mostramos a autenticidade com que a celebramos. Infelizmente elevamos muito alto a Eucaristia e bem porque sem Eucaristia não há Igreja e sobretudo porque a Eucaristia é o próprio Cristo; mas deixamos os outros, especialmente os pobres, tão baixo, apesar de também eles serem o próprio Cristo.
Deixo uma palavra final, que já devo ter repetido mais vezes. Mas é sempre bom repeti-la e sobretudo meditá-la:
”Há ainda um ponto para o qual queria chamar a atenção, porque sobre ele se joga numa medida notável a autenticidade da participação na Eucaristia, celebrada na comunidade: é o impulso que esta aí recebe para um compromisso real na edificação duma sociedade mais equitativa e fraterna. Na Eucaristia, o nosso Deus manifestou a forma extrema do amor, invertendo todos os critérios de domínio que muitas vezes regem as relações humanas e afirmando de modo radical o critério do serviço: «Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc 9,35). Não é por acaso que, no Evangelho de João, se encontra, não a narração da instituição eucarística, mas a do «lava-pés» (cf. Jo 13,1-20): inclinando-Se a lavar os pés dos seus discípulos, Jesus explica de forma inequívoca o sentido da Eucaristia. S. Paulo, por sua vez, reafirma vigorosamente que não é lícita uma celebração eucarística onde não resplandeça a caridade testemunhada pela partilha concreta com os mais pobres (cf. 1Cor 11,17-22.27-34).” (João Paulo II; MND 28)