divórcio ou casamento eterno?...

2010-05-23

LIVRAI-NOS, SENHOR, DOS NOSSOS INIMIGOS

Partindo das palavras do Papa na viagem da vinda para Portugal que alguns jornalistas transcreveram bem como "os imaiores inimigos da Igreja estão dentro da igreja" (as palavras originais são: "a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja"), procurei aprofundá-las um pouco mais, não me restringindo aos padres pedófilos, como terá sido a interpretação de muitos. Para isso escrevi este artigo acabado de publicar, com o título que deu ao post:

O Papa veio até nós e conquistou a simpatia de muitos que o olhavam “de lado”. Porque falou de valores quando muitos não têm rumo, falou de esperança quando muitos se sentem sem futuro, falou da urgência e da obrigação de estar atento aos mais pobres quando o seu número cresce assustadoramente: tudo isto são temas fundamentais e esquecidos para a sociedade em crise. Também falou da fé, da verdade, da salvação em Jesus Cristo e estimulou instantemente os católicos a serem suas testemunhas autênticas.
A empatia pode ter começado quando ele disse aos jornalistas que (os) inimigos da Igreja estavam dentro dela. As palavras exactas não terão sido estas mas a ideia é que conta. Esta afirmação foi, primeiro, uma afirmação que sempre deixa boa impressão num “chefe”. Mas pode também ter sido uma crítica velada a tantos católicos amantes da teoria da conspiração. Vamos ser claros. É evidente que a Igreja tem gente que não gosta dela; não sei se hoje, tempo do vale tudo e do indiferentismo, haverá muitos interessados em destruí-la. Conheço não católicos que, apesar das suas reservas, acham que a Igreja continua a ser um dos pilares orientadores, com a sua defesa intransigente da solidariedade, do bem comum, da atenção aos outros, da centralidade da pessoa, valores indispensáveis em qualquer sociedade que pretenda ser justa.
A maior parte dos católicos terá entendido na frase do Papa uma referência aos padres pedófilos. Não sei se era ou não. Mas para mim há muitas outras formas de os católicos se tornarem inimigos da Igreja.
Uma delas é a nossa incapacidade de ser testemunhas autênticas de Cristo, um dos grandes apelos do Papa, mas também de Jesus, na hora da despedida, como recordámos no domingo passado: “E sereis minhas testemunhas até aos confins da terra” (Act 1,11). Somos realmente verdadeiras testemunhas de Cristo, da sua Palavra, dos valores do Reino que ele veio pregar? Quantos se calam por vergonha de se dizerem cristãos e quantos se dizem cristãos mais valendo que tivessem vergonha de o dizer? Quantos se comportam como os adúlteros que dizem que amam profundamente o cônjuge mas vão fazendo os seus biscates extra? Não é por acaso que Oseias compara a idolatria à prostituição e ao adultério. E se somos testemunhas sérias, como o somos? Só por palavras ou por uma vida coerente? As respostas não nos são muito favoráveis à Igreja, que somos todos nós, pois parecem indicar que nos parecemos mais com infiltrados do paganismo do que com construtores de uma Igreja libertadora, aberta a todos, preocupada mais com a pessoa (ortopraxis) do que com as doutrinas (ortodoxia), respeitando a denúncia de Jesus na parábola do Samaritano.
Na já citada primeira leitura do domingo passado talvez esteja a resposta este nosso paganismo disfarçado de cristianismo: “Por que estais a olhar para o céu?”. Eu diria que inconscientemente todos olhamos para o céu, por duas razões. A primeira prende-se com a nossa preocupação de salvação eterna. Somos católicos, temos de algum modo garantido um lugar no Reino de Deus. “Coitados dos não crentes!”. Aqui nem faço comentários. Apenas recordo da minha velha catequese que um dos pecados contra o Espírito Santo era “a presunção de se salvar sem merecimento”. Não vou entrar na análise da meritocracia, que ignora que Deus dá tudo de graça; mas na presunção de que nada temos que fazer se não “olhar o céu”. A segunda razão está na nossa falta de “fervor dos santos”, de autenticidade cristã, que espera que tudo venha já feito do céu. Que posso fazer eu? Que podemos fazer nós? O Senhor é que age. Quanto tem de capciosa esta profissão de fé! Deus é realmente o Senhor da história, mas sempre quis precisar de nós. Precisa dos nossos braços para levantar o ferido à beira do caminho, da nossa boca para sermos voz das vítimas de injustiças silenciosas e silenciadas, da nossa inteligência para termos uma melhor qualidade de vida, do nosso coração para sermos solidários na construção de um futuro mais humano, da nossa vontade para mudarmos o estilo de vida, nosso e desta sociedade geradora de injustiças. Precisa das pessoas, crentes ou não, para fazermos uma comunidade que não seja apenas jurídica, mas moral. Portanto não podemos, como Pedro, ficar extasiados no monte Tabor, esquecendo que a vida continua cá em baixo na cidade dos homens e das mulheres com os seus problemas, as suas alegrias e tristezas, os seus desesperos e exaltações.
Mas conscientemente “não olhamos para o céu”. Olhamos para a terra, para os valores da terra, para os prazeres e alegrias terrenos. Adoramos o deus dinheiro: por ele, quantos “vendemos a alma” e nos tornamos escravos de uma insatisfação existencial que leva a gastar o que não precisamos e tantas vezes o que não podemos. Adoramos o deus prazer: em seu louvor, sacrificamos o esforço que é preciso para “fazer o bem”, para ser cidadão e praticar uma cidadania responsável e recusamos a mudança do nosso estilo de vida hedonista e depredador, gerador de um crescente aumento de pobreza. Adoramos o deus do poder, que dada a banalização do sexo na sociedade, se tornou, segundo alguns, um prazer mais erótico que o próprio sexo: para subir na vida, quantos atropelos cometemos, por vezes espezinhando os outros; para fazer carreira no partido e quantas violações das consciências; para apanhar, que seja, umas migalhas do poder, a quantas humilhações nos sujeitamos e quantas pessoas se tornam canas agitadas pelo vento.
É este o nosso “olhar para o céu”? É assim que queremos testemunhar os valores do Reino?
Assim, não somos inimigos numa Igreja que deve ser rosto de Jesus Cristo? Mas há mais...

2010-05-14

Bento XVI: Especial atenção aos pobres e fracos

O Papa apelou insistentemente ao cuidado com os mais fracos em quase todos os seus discursos e homilias, não apenas aos organismos da Pastoral Social, mas a todos, incluindo nas suas palavras aos bispos. Este cuidado não pode ser visto como um acidente mas como uma da funções essenciais da Igreja:

“O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os seus níveis: desde a comunidade local passando pela Igreja particular até à Igreja universal na sua globalidade. A Igreja também enquanto comunidade deve praticar o amor. Consequência disto é que o amor tem necessidade também de organização enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado. A consciência de tal dever teve relevância constitutiva na Igreja desde os seus inícios: «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um» (Act 2, 44-45)” (DCE 20).

“Com o passar dos anos e a progressiva difusão da Igreja, a prática da caridade confirmou-se como um dos seus âmbitos essenciais, juntamente com a administração dos Sacramentos e o anúncio da Palavra: praticar o amor para com as viúvas e os órfãos, os presos, os doentes e necessitados de qualquer género pertence tanto à sua essência como o serviço dos Sacramentos e o anúncio do Evangelho. A Igreja não pode descurar o serviço da caridade, tal como não pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra” (DCE 22).

“Chegados aqui, registemos dois dados essenciais tirados das reflexões feitas:
a) A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência.
b) A Igreja é a família de Deus no mundo. Nesta família, não deve haver ninguém que sofra por falta do necessário. Ao mesmo tempo, porém, a caritas-ágape estende-se para além das fronteiras da Igreja; a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado «por acaso» (cf. Lc 10, 31), seja ele quem for” (DCE 25).

“A passagem que Ele (Jesus) faz realizar da Lei e dos Profetas ao duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, a derivação de toda a vida de fé da centralidade deste preceito não é uma simples moral que possa, depois, subsistir autonomamente ao lado da fé em Cristo e da sua re-actualização no Sacramento: fé, culto e ethos compenetram-se mutuamente como uma única realidade que se configura no encontro com a ágape de Deus. Aqui, a habitual contraposição entre culto e ética simplesmente desaparece. No próprio «culto», na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido, é em si mesma fragmentária. Por outro lado, o «mandamento» do amor só se torna possível porque não é mera exigência: o amor pode ser «mandado», porque antes nos é dado” (DCE 14).

“No desenrolar deste encontro, revela-se com clareza que o amor não é apenas um sentimento. Os sentimentos vão e vêm. O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas não é a totalidade do amor. É próprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e incluir, por assim dizer, o homem na sua totalidade” (DCE 17)

Bento XVI: Fé e Esperança

O Papa falou muito, entre nós, de fé e esperança. Aqui deixo uma citação da sua encíclica sobre a esperança:

"Chegou o momento, porém, de nos colocarmos explicitamente a questão: para nós, hoje a fé cristã é também uma esperança que transforma e sustenta a nossa vida? Para nós aquela é «performativa» – uma mensagem que plasma de modo novo a mesma vida – ou é simplesmente «informação» que, entretanto, pusemos de lado porque nos parece superada por informações mais recentes? Na busca de uma resposta, desejo partir da forma clássica do diálogo, usado no rito do Baptismo, para exprimir o acolhimento do recém-nascido na comunidade dos crentes e o seu renascimento em Cristo. O sacerdote perguntava, antes de mais nada, qual era o nome que os pais tinham escolhido para a criança, e prosseguia: «O que é que pedis à Igreja?». Resposta: «A fé». «E o que é que vos dá a fé?». «A vida eterna». Como vemos por este diálogo, os pais pediam para a criança o acesso à fé, a comunhão com os crentes, porque viam na fé a chave para a «vida eterna». Com efeito hoje, como sempre, é disto que se trata no Baptismo, quando nos tornamos cristãos: é não somente um acto de socialização no âmbito da comunidade, nem simplesmente de acolhimento na Igreja. Os pais esperam algo mais para o baptizando: esperam que a fé – de que faz parte a corporeidade da Igreja e dos seus sacramentos – lhe dê a vida, a vida eterna. Fé é substância da esperança. Aqui, porém, surge a pergunta: Queremos nós realmente isto: viver eternamente? Hoje, muitas pessoas rejeitam a fé, talvez simplesmente porque a vida eterna não lhes parece uma coisa desejável. Não querem de modo algum a vida eterna, mas a presente; antes, a fé na vida eterna parece, para tal fim, um obstáculo. Continuar a viver eternamente – sem fim – parece mais uma condenação do que um dom. Certamente a morte querer-se-ia adiá-la o mais possível. Mas, viver sempre, sem um termo, acabaria por ser fastidioso e, em última análise, insuportável. É isto precisamente que diz, por exemplo, o Padre da Igreja Ambrósio na sua elegia pelo irmão defunto Sátiro: «Sem dúvida, a morte não fazia parte da natureza, mas tornou-se natural; porque Deus não instituiu a morte ao princípio, mas deu-a como remédio. Condenada pelo pecado a um trabalho contínuo e a lamentações insuportáveis, a vida dos homens começou a ser miserável. Deus teve de pôr fim a estes males, para que a morte restituísse o que a vida tinha perdido. Com efeito, a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça». Antes, Ambrósio tinha dito: «Não devemos chorar a morte, que é a causa de salvação universal»." (SS 10)

2010-05-12

Bento XVI: Ser cristão hoje

Problemas com a Net impediram-me de começar ontem uma pequena antologia de afirmações de Bento XVI. Mas ainda vou a tempo. Hoje a temática é ”ser cristão hoje”. Concluo com uma explicitação de João Paulo II sobre o mesmo tema.

“Nós cremos no amor de Deus — deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).

"Podemos agora dizer: o cristianismo não era apenas uma «boa nova», ou seja, uma comunicação de conteúdos até então ignorados. Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só «informativa», mas «performativa». Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova" (SS 2).

"A fé em Cristo nunca se limitou a olhar só para trás nem só para o alto, mas olhou sempre também para a frente para a hora da justiça que o Senhor repetidas vezes preanunciara. Este olhar para diante conferiu ao cristianismo a sua importância para o presente" (SS 41).

"Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projectos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática" (CV 4).

"O critério «o homem todo e todos os homens» serve para avaliar também as culturas e as religiões. O cristianismo, religião do «Deus de rosto humano», traz em si mesmo tal critério" (CV 55).

Termino com palavras de João Paulo II, que podem ler-se como uma síntese destas ideias de Bento XVI:

"Pode-se porventura « programar » a santidade? Que pode significar esta realidade na lógica dum plano pastoral?
Na verdade, colocar a programação pastoral sob o signo da santidade é uma opção carregada de consequências. Significa exprimir a convicção de que, se o Baptismo é um verdadeiro ingresso na santidade de Deus através da inserção em Cristo e da habitação do seu Espírito, seria um contra-senso contentar-se com uma vida medíocre, pautada por uma ética minimalista e uma religiosidade superficial. Perguntar a um catecúmeno: «Queres receber o Baptismo?» significa ao mesmo tempo pedir-lhe: «Queres fazer-te santo?» Significa colocar na sua estrada o radicalismo do Sermão da Montanha: «Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste» (Mt 5,48).
Como explicou o Concílio, este ideal de perfeição não deve ser objecto de equívoco vendo nele um caminho extraordinário, que apenas algum « génio » da santidade poderia percorrer. Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. Agradeço ao Senhor por me ter concedido, nestes anos, beatificar e canonizar muitos cristãos, entre os quais numerosos leigos que se santificaram nas condições ordinárias da vida. É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta « medida alta » da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direcção. Mas é claro também que os percursos da santidade são pessoais e exigem uma verdadeira e própria pedagogia da santidade, capaz de se adaptar ao ritmo dos indivíduos; deverá integrar as riquezas da proposta lançada a todos com as formas tradicionais de ajuda pessoal e de grupo e as formas mais recentes oferecidas pelas associações e movimentos reconhecidos pela Igreja" (NMI 31).

2010-05-07

CinV (101) Abertura à vida (nº 44)

Bento XVI destaca a ideia de que “a abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e económica”. A sociedade de hoje apresenta muitas ambiguidades: uma delas é referente à vida. Todos queremos viver, viver muito tempo, ter uma “boa vida” que não é necessariamente significado de uma vida boa. Mas, por um lado,há a falta de cuidados pessoais, como os comportamentos de risco, seja no trabalho, na estrada, na indústria de entretenimento, as ganâncias e egoísmos tribais geradores de exclusão, de marginalização, de pobreza, a falta de políticas efectivamente em defesa da vida e da vida em plenitude, como, por exemplo, as políticas habitacionais ou de transportes. Por outro, quase todos acabamos por viver a correr, sem tempo para saborear a vida, sempre empurrados pelos acontecimentos, numa palavra, acabamos por viver mal, isto é, sem qualidade de vida. Tudo vai contra o que o Papa classifica de abertura moralmente responsável: nem somos responsáveis (a culpa é sempre dos outros) nem nos preocupamos com os critérios morais em que o cuidado, a gratuidade, a solidariedade, a fraternidade, a justiça, pouco ou nada contam (“o problema não é meu!”).
A aberturaçà vida, no contexto do crescimento demográfico, assenta em quatro argumentos.

1. Contribui para a saída da miséria
“Grandes nações puderam sair da miséria, justamente graças ao grande número e às capacidades dos seus habitantes”, fazendo naturalmente um aproveitamento adequado dos dons e talentos dos seus membros. “Pelo contrário, nações outrora prósperas atravessam agora uma fase de incerteza e, em alguns casos, de declínio precisamente por causa da diminuição da natalidade, problema crucial para as sociedades de proeminente bem-estar”.

2. Evita a crise nos sistemas de segurança social
Nas nações ditas desenvolvidas, as pessoas, ao preferiram o egoísmo e o bem-estar pessoais, foram contribuindo para défices crescentes de população, que em muitos casos ultrapassam o chamado «índice de substituição». Estes comportamentos hedonistas não têm repercussões apenas no próprio ou na própria família, mas oneram pesadamente a sociedade, numa série de âmbitos que o Papa enumera:
- o perigo de ruptura dos sistemas de assistência social e o aumento dos seus custos;
- a contracção da “acumulação de poupanças e, consequentemente, dos recursos financeiros necessários para os investimentos”;
- a redução da quantidade e disponibilização de trabalhadores qualificados, o que “restringe a reserva aonde ir buscar os «cérebros» para as necessidades da nação”. Isto resolve-se muitas vezes pela “importação de massa cinzenta” de países que, vivendo uma fase de desenvolvimento emergente, mais carenciados estão de gente qualificada para poder estimular e até conduzir o processo de crescimento e de participação no concerto das nações.

3. Enriquece as relações sociais
Famílias só com um filho ou monoparentais são espaço de afecto incompletos pois falta-lhes a dimensão mínima para serem a primeira escola de socialização. Deixou de fazer parte da sensibilidade geral, a percepção de que, por exemplo, uma família onde há vários filhos se torna uma mini-sociedade onde se “é obrigado” a aprende a viver com pessoas de diferentes idades, de diferentes sexos, de diferentes feitios, e assim se vai percebendo a grande diversidade que a vida irá apresentar a cada um quando for chamado a exercer plenamente a sua cidadania. Um tal micro-espaço, para lá de ser uma fonte ou uma reserva de afecto, permite aprender a dependência mútua e a indispensável solidariedade: “ Além disso, as famílias de pequena e, às vezes, pequeníssima dimensão correm o risco de empobrecer as relações sociais e de não garantir formas eficazes de solidariedade”.

4. Fomenta a confiança nos outros e no futuro
A construção do futuro exige apoio mútuo, associação de talentos, a certeza de que sozinhos nada podemos fazer. Sem estas condições, que só a entreajuda promove, caímos em “situações que apresentam sintomas de escassa confiança no futuro e de cansaço moral”. As consequências são o desnorte, o desânimo, a falta de objectivos, o cruzar os braços, o esperar dos outros as soluções para os problemas próprios. Mas quando todos pensarem assim, deixa de haver “outros” para resolver os problemas.

Daqui decorre uma dupla responsabilidade:
- para todos, mas especialmente para as famílias, a de “propor às novas gerações a beleza da família e do matrimónio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa”;
- para os poderes públicos, a de “instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade, preocupando-se também com os seus problemas económicos e fiscais, no respeito da sua natureza relacional”.

2010-05-01

CinV (100) Cultura da vida (nº 44)

Antes de dar a palavra a Bento XVI, queria recordar que o problema da abertura à vida vem na linha dos seus antecessores, especialmente João Paulo II que na sua encíclica Evangelium vitae analisa em pormenor a contraposição entre a cultura da morte (12, 19, 21, 24, 26, 28, 50, 87, 95, 100) e a cultura da vida (6, 21, 28, 50, 77), dedicando todo o capítulo IV (78-101) a “uma nova cultura da vida humana”. Para enquadrar o problema vou fazer duas citações de João Paulo II que destacam esta contraposição.

A primeira denuncia esta “espécie de conjura contra a vida” que existe na sociedade actual:
“Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática social actual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar a responsabilidade subjectiva no indivíduo, não é menos verdade que estamos perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira « cultura de morte ». É activamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma espécie de « conjura contra a vida ». Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais, familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para além até atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os povos e os Estados” (EV 12).

A outra proclama que não pode haver democracia nem paz sem uma nova cultura da vida:
“O Evangelho da vida não é exclusivamente para os crentes: destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a todos.
Por isso, a nossa acção de « povo da vida e pela vida » pede para ser interpretada de modo justo e acolhida com simpatia. Quando a Igreja declara que o respeito incondicional do direito à vida de toda a pessoa inocente — desde a sua concepção até à morte natural — é um dos pilares sobre o qual assenta toda a sociedade, ela « quer simplesmente promover um Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil ».
O Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. Actuar em favor da vida é contribuir para o renovamento da sociedade, através da edificação do bem comum. De facto, não é possível construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente, já que por um lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz.
De facto, não pode haver verdadeira democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus direitos.
Nem pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove a vida, como recordava Paulo VI: « Todo o crime contra a vida é um atentado contra a paz, especialmente se ele viola os costumes do povo (...), enquanto nos lugares onde os direitos do homem são realmente professados e publicamente reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz e geradora de convivência social ».
O « povo da vida » alegra-se de poder partilhar o seu empenho com muitos outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o « povo pela vida », e a nova cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da cidade dos homens” (EV 101) .

Fazer com que todos se empenhem numa verdadeira cultura da vida é uma forma muito mais eficaz para promover o Trabalhador do que todas as manifestações do 1º de Maio. Que as manifestações se façam, mas que se faça muito mais!