divórcio ou casamento eterno?...

2010-07-30

A ALEGRIA DE SER FELIZ

Com este título publiquei um artiguito que gostaria de partilhar com os meus amigos do blog.

O episódio de Sodoma, recordado no domingo passado e fixado na literatura e na expressão comum, desafiou-me a imaginar o diálogo de Deus com Abraão nos tempos actuais.
Talvez Deus perguntasse não pelo número de justos mas antes pelo número de felizes. Não é que não haja justos hoje. Que os há! Mas hoje a preocupação das pessoas parece muito menos centrada na justiça do que na felicidade. Não estou a julgar nada nem ninguém. Estou apenas a referir uma impressão que tenho: hoje, a maior parte de nós regula-se pela lógica do bem-estar, pela lógica da felicidade. Não investiguei estudos sociológicos. Apenas me baseei num olhar empírico, mais ou menos atento, de quem olha à sua volta.
Haverá cinquenta felizes para salvar a cidade? Mas o que têm o número de felizes com a salvação da cidade? Tem muito, porque uma cidade de infelizes é necessariamente infeliz e acaba por definhar. Precisamos de serviços onde as chefias transmitam alegria aos seus funcionários e tornem o ambiente de trabalho alegre e feliz. Precisamos de pessoas que não ponham a felicidade nos seus interesses imediatos ou na sua inércia mas na atenção dedicada aos outros. De que vale a uma equipa de futebol ter onze “galácticos” se não jogar com alegria?
E bastam cinquenta felizes? Não sei, mas quantos mais forem mais se “pega” e em vez de cinquenta passarão a ser cem, depois duzentos, até que se chega um momento em que ser infeliz é tão anormal que ninguém quererá ser infeliz. Bonitas palavras, mas a felicidade não se compra ao virar da esquina. Pois não, mas constrói-se no dia a dia, com esforço, dedicação, persistência. A nossa felicidade, a felicidade de cada um, depende muito das decisões que tomamos, do modo como gerimos as diversas situações, dos sacrifícios e renúncias que aceitamos fazer e das “coisas boas” imediatistas e egoístas a que somos capazes de dizer não.
Olhemos à nossa volta. Muitos confundem felicidade com consumismo, consumismo desenfreado, que chega ao ponto de ser mais importante o acto de comprar do que aquilo que se compra. Já ouvi mais que uma vez um miúdo dizer ao pai ou à mãe “compra-me uma coisinha”. Mas o quê? Qualquer coisinha. “Coisinha” que mal, chegados a casa, é atirada para o baú dos esquecidos. Conheço vários adultos que quando se “sentem em baixo” vão “fazer compras”. Necessárias? Fisicamente, não; psicologicamente, sim. “Todos nós experimentamos, quase palpavelmente, os tristes efeitos desta sujeição cega ao mero «consumo»: antes de tudo, uma forma de materialismo crasso; e, ao mesmo tempo, uma insatisfação radical, porque se compreende imediatamente que quanto mais se tem mais se deseja, enquanto as aspirações mais profundas restam insatisfeitas e talvez fiquem mesmo sufocadas.” (SRS 28).
Para outros, a felicidades está no álcool ou noutras drogas. Quem não ouviu já alguém dizer: “Não estava bêbado; estava apenas alegre com uns copos!” Alegria associada a copos! Há sempre alguma desculpa: uns, porque precisam de combustível para perder a timidez; outros, porque se trata de um ritual de convívio social. Poucos pensam que também se trata de uma indústria bem montada não para beber uns copos e conviver, mas para derreter dinheiro que vai enchendo a caixa até o pagador (o “feliz”) “cair para o lado”. Ainda não entendi bem como pode alguém ser feliz porque deixou de ser capaz de se controlar, de saber o que faz e se sujeita a ser manipulado por negociateiros sem escrúpulos!
Há os que confundem felicidade com poder: a orgia do poder é uma imagem clássica. Ter poder, controlar os outros, manipular os factos. E esta observação aplica-se a todos os poderes mas especialmente ao da comunicação social. Há muito jornalista honesto e sério, mas quantos não caem na tentação de “ganhar fama” (outra forma de felicidade) com meias verdades, insinuações, escolha adequada no modo e no tempo para divulgar insignificâncias significantes!
Também para muitos crentes, há a “felicidade do monte Tabor”: “É tão bom estarmos aqui”, no quentinho e afastados daquele mundo lá em baixo cheio de tentações, de maldade e corrupção: é tão bom não ter de “sujar as mãos” na construção de um mundo melhor. É tão bom estar aqui em paz interior, em comunhão íntima com Jesus. Pois é. Realmente nada podemos sem esta comunhão íntima, sem esse encontro transformador com a Pessoa de Jesus, mas não é para ficarmos no sossego do Tabor: é para levar a mensagem aos coxos, cegos, presos, doentes, pobres. Seguir Jesus Cristo é ir ao Tabor carregar as pilhas, mas não é ficar lá por muito feliz que isso nos deixe. Essa felicidade é fundamental, mas torna-se egoísta e alienante se não se converte no serviço aos outros. “Senhor, o que é preciso para ganhar a vida eterna? Cumprir os mandamentos… Mas se queres ser perfeito (feliz) vai vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”. E o escriba retirou-se cabisbaixo, porque esperava uma resposta intelectual e não vivencial ou existencial! Queria uma reflexão teórica e não uma exigência prática! Mas Jesus não nos poupa: com a corrosiva parábola do Samaritano veio mostrar a prioridade da ortopraxis sobre a ortodoxia, do fazer o bem sobre o saber a doutrina. Mas nós preferimos o saber ao fazer! E passe a heresia: o que seria de Maria, que “escolheu a melhor parte”, se Marta não fizesse o almoço?
É que a felicidade só existe no serviço ao outro, mesmo que isso implique, e implica quase sempre, sofrimento físico ou cansaço moral. Como disseram os nossos Bispos: “Criado por Deus para a felicidade, o ser humano encontra na sua dedicação ao bem da comunidade em que se insere os meios para realizar essa felicidade pessoal e social” (15.Set.2003).
Boas férias e sejam muito felizes sem abusar dos supermercados nem dos copos!

2010-07-26

Esperança e Critérios de Vida

Com este título publicou a Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra um texto de reflexão sobre o momento actual. Partindo da gravidade da situação que vivemos propõe-se deixar uma palavra de esperança e de estímulo para que, em conjunto, superemos estes tempos difíceis e construamos um mundo maa à medida da pessoa, de cada pessoa.
Apesar de longo, aqui o deixo na íntegra.

1. Vivemos dias marcados pela dúvida e pela incerteza, que afectam os indivíduos e as instituições e perturbam sobremaneira as relações sociais e económicas e as decisões políticas. Em face deste espectro, que amarga a existência e tolhe a razão, a CDJP (Comissão Diocesana Justiça e Paz) de Coimbra julga oportuna uma palavra de esperança, fundamentada na fé em Jesus de Nazaré, que centrou a sua mensagem no convertei os vossos critérios de vida (Mc 1,15), na capacidade de superar as crises, que marcaram a nossa História colectiva, e na força transformadora dos valores éticos por que pugnamos e que tantos reclamam como essenciais à vida em sociedade.
Reconhecemos que a presente situação mundial é complexa e grave, marcada por uma crise, mais estrutural do que conjuntural, e por uma globalização económica e financeira desregulada, que inverte a ordem dos valores, ao colocar os interesses económicos e a especulação acima da dignidade e dos direitos das pessoas, com efeitos perversos sobre sociedades, indivíduos e decisores políticos.
As sociedades em geral – e a ocidental em particular – vivem demasiado centradas em interesses imediatos e egoístas, com a consequente perda do sentido do bem comum e de referenciais éticos estruturantes. Parece prevalecer o comodismo de quem desiste de construir o futuro, conformando-se, como agora nos referiu Bento XVI, com uma dinâmica social que “absolutiza o presente, isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro”. É uma cultura do efémero, permeável à publicidade manipuladora, à corrupção sob múltiplas formas, ao endividamento irresponsável.
Portugal, em concreto, é um país que soma a esta cultura um conjunto de deficiências preocupantes, entre as quais se destacam:
- situação periférica e escassos recursos naturais nem sempre aproveitados da melhor forma;
- fraco desenvolvimento económico;
- população envelhecida e acentuada queda da natalidade;
- débil vontade na procura de qualidade e excelência individual, institucional e colectiva:
- com demorada aplicação da Justiça,
- com níveis preocupantes de iliteracia e insucesso na Escola,
- com falta de equidade no acesso aos cuidados de Saúde, apesar dos padrões de qualidade reconhecidos internacionalmente;
- assimetria económica (a maior da União Europeia) em que quase dois milhões de pobres contrastam com titulares de remunerações ou prémios exorbitantes, sem relação com resultados das empresas, reformas escandalosas, com curtíssimas carreiras contributivas, e outras mordomias e benefícios, fruto, em grande parte dos casos, de clientelismo político-partidário;
- problemas graves, persistentes e estruturais, ao nível do emprego e das condições de trabalho, que remetem um número preocupante de concidadãos para a exclusão.

Na génese desta situação encontram-se diversas razões, tais como:
- a inexistência de um projecto, ambicioso e inovador, para o desenvolvimento do país, que seja mobilizador dos cidadãos na construção de novos paradigmas;
- a falta de lideranças credíveis empenhadas na prossecução dos princípios do Estado de Direito Social, sem submissão a conveniências eleitoralistas ou promoções pessoais;
- a existência de uma débil sociedade civil, demasiado acomodada nos seus “direitos” e reticente às mudanças;
- a incapacidade para alcançar consensos político-sociais suficientemente alargados, que possibilitem o empreendimento de reformas há muito diagnosticadas como essenciais para o desenvolvimento sustentado do país;
- o aproveitamento ineficiente dos fundos europeus e das comparticipações estatais e das oportunidades históricas que os mesmos constituíram;
- a conivência das elites financeiras que, displicentemente e escondendo a realidade, aliciaram os cidadãos com propostas de empréstimos ao consumo e nunca de poupanças;
- o desenvolvimento de uma economia paralela alimentada, por exemplo, por pequenos e grandes negócios que não pagam impostos ou pela conivência de quem não pede factura dos bens e serviços que compra;
- sintomas de uma corrupção sistémica que se estende desde os patamares mais elevados da administração até ao cidadão comum.

Acresce que a actual situação orçamental e o nível de endividamento ao estrangeiro são terreno fértil para crescente especulação financeira, o que coloca Portugal – a par com outros países – em graves dificuldades para alcançar maior credibilidade no concerto das nações e para conseguir empréstimos internacionais, a fim de fazer face ao pagamento da dívida e das despesas não cobertas pelas receitas fiscais. Basta lembrar que no Orçamento de Estado para 2010 as despesas dos juros eram já superiores a cinco mil milhões de euros.

2. A situação acima referida condicionou as medidas políticas, necessárias e urgentes, que são do conhecimento público. Reconhecemos que, num contexto de interdependência e de globalização, controlado pela especulação financeira, essas decisões se tornam cada vez mais difíceis e complexas, parecendo-nos indispensável que sejam acompanhadas de uma procura activa de consensos.
De facto, o esforço de equilíbrio das finanças públicas deve manter-se associado à correcção das grandes desigualdades na repartição da riqueza e do rendimento. Assim, é fundamental que o Estado cumpra o seu papel na regulação social, em particular no combate à pobreza e na protecção dos desempregados. Além disso, na reorganização das empresas e das instituições, do sector público e do sector privado, importa promover maior rendibilidade dos bens e serviços e melhorar o grau de eficiência e eficácia humana, económica e energética.
Por exigência do bem comum, compete ainda aos que mais ganham, podem e sabem estar à altura da solidariedade e das responsabilidades que devem assumir.
Portanto, exige-se que, em todas as medidas, o direito do pobre seja sempre o primeiro a ser salvaguardado, evitando a deterioração da já difícil situação em que se encontram os mais fragilizados.

3. A CDJP deseja, neste momento de desalento e de dúvidas, trazer uma palavra de esperança, pois acredita que os portugueses, tal como têm feito ao longo da sua História, saberão superar as dificuldades e assumir os sacrifícios, fazendo valer as suas energias e potencialidades.
Em nome da esperança, somos chamados hoje a um novo esforço que impõe mudanças radicais, a nível pessoal e colectivo. O futuro está também nas nossas mãos, e isso exige a generalização de um ambiente social de comportamentos éticos, que deve assentar:
- numa forte consciência de que todos temos alguma responsabilidade na actual situação, pois, “é por demais fácil alijar sobre os outros a responsabilidade das injustiças se se não dá conta ao mesmo tempo de como se tem parte nelas e de como a conversão pessoal é algo necessário, primeiro que tudo o mais” (OA 48);
- em novos estilos de vida, que alterem hábitos consolidados de consumismo, de falta de cidadania, de degradação da Natureza, de modo a garantir um desenvolvimento sustentável e a manutenção da Terra habitável pelas gerações futuras;
- “numa justa liberdade perante os bens materiais” (FC 37), nomeadamente perante o dinheiro, um instrumento para a nossa qualidade de vida e não um deus que nos escraviza e aliena;
- na disponibilidade para acolher o outro como companheiro na construção da sociedade, sem o hostilizar ou recear como um concorrente, enriquecendo-nos mutuamente com as diversidades individuais e grupais;
- numa confiança responsável na solidariedade, cimento estruturante da coesão social, inerente a uma cidadania comprometida e interventiva;
- em formas novas de organizar a sociedade, fundadas no serviço ao bem comum, a começar pelas instituições, nacionais e internacionais, reguladoras dos mercados financeiros;
- na multiplicação de iniciativas inovadoras de quem acredita na nossa capacidade para encontrar soluções para grande parte das dificuldades que nos atingem;
- numa atenção séria para que os principais responsáveis da crise em que vivemos não sejam os primeiros beneficiários da mesma;
- na procura de um “desenvolvimento económico, social e político, autenticamente humano”, baseado no “princípio da gratuitidade como expressão de fraternidade” (CV 34).

Em nome da mesma esperança, decorrendo o Ano Europeu da Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social e vivendo o único tempo da História em que temos recursos mais do que suficientes, é imperativo combater estereótipos e preconceitos colectivos sobre a pobreza e cuidar de todos os habitantes da Terra “sem privilegiar nem excluir ninguém” (CA 31), por exigência
- da promoção da dignidade inviolável de cada pessoa,
- do destino universal dos bens, que “Deus criou para uso de todos” (GS 69) e
- da indispensável coesão social, pacificadora e geradora de uma justa equidade.

Sabemos que uma das principais causas da pobreza é o desemprego. Por isso, urge tomar medidas adequadas para que o emprego se torne, como é de facto, o factor mais decisivo na inclusão. Efectivamente, como diz Bento XVI, “a exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual”. E continua, recordando “a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social” (CV 25).
Neste contexto, é de condenar tanto quem contrata a recibo verde, com salários indignos, ou ilegalmente, como quem recusa propostas de emprego e continua a receber apoios sociais, bem como quem permanece “de baixa” sem estar doente.

4. A Comissão está convicta de que a crise, tendo sempre uma gravosa carga negativa, é ou pode ser uma oportunidade estimuladora de um mundo diferente, até porque na sociedade portuguesa há muitas pessoas e organizações que dão um testemunho de vida nesse sentido:
- cuidam fraternalmente dos outros, sobretudo dos mais frágeis, contribuindo activamente para a construção de uma sociedade mais justa e solidária,
- partilham gratuitamente saberes e competências técnicas e profissionais em apoio de pessoas e situações mais vulneráveis,
- acreditam na nossa capacidade de inovar e empenham-se em construir alternativas, por exemplo, reestruturando empresas ou ocupando novos nichos do mercado;
- assumem o compromisso de ser agentes de uma História comum e com o seu testemunho de vida estimulam colegas e amigos,
- persistem mesmo perante fracassos ou falta de resultados imediatos, muitas vezes servindo-se das dificuldades para descobrir caminhos novos.

O trabalho que temos pela frente começa no coração de cada um e concretiza-se nos vários espaços de influência e poder de que todos dispomos. Um trabalho que exige diálogo, projectos em comum, colaboração em rede. Se foi a “rede” que gerou esta crise é em “rede” que vamos vencê-la, tendo presente a sentença evangélica de que não é possível “colocar vinho novo em odres velhos”.
As comunidades eclesiais são especialmente chamadas
- a testemunhar os valores de “um reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz” (GS 39) e a convicção de que “a «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão” (CV 6),
- a ser voz das vítimas de injustiças silenciosas e silenciadas (cf. JM 20),
- a estimular espaços de debate e de consciencialização da gravidade da situação e da necessidade de uma conversão de mentalidades e atitudes.

Saibamos, pois, ser exigentes na ética, connosco e com os outros, e ser solidários com aqueles que necessitam. Sejamos os construtores do futuro, norteados pelo sentido de justiça e de paz que o Verbo de Deus inscreveu em cada um de nós.
“Soou a hora da acção. Estão em jogo a sobrevivência de tantas crianças inocentes, o acesso a uma condição humana de tantas famílias infelizes, a paz do mundo e o futuro da civilização. Que todos os homens e todos os povos assumam as suas responsabilidades” (PP 80).

2010-07-18

As poupanças da Saúde

Sou um doente de cancro que há mais de quatro anos frequenta a Ortopedia B dos HUC (Hospital Universitário de Coimbra). Não posso dizer que passei lá os momentos mais agradáveis da minha vida, mas posso afirmar com toda a convicção que encontrei lá sempre, da parte de todos os “servidores” desde o Director, Médicos, Enfermeiros, Administrativos e Auxiliares, para lá do bom e cuidadoso tratamento clínico, a melhor dedicação, carinho e amor à pessoa do doente. Sempre há um sorriso, uma laracha, uma anedota, um estímulo a estarmos bem dispostos. Quando, numa das minhas estadias, entornei, a meio da noite, um urinol quase cheio e foi preciso fazer toda a cama de lavado, lá veio, embrulhado num sorriso, “não se preocupe, estamos cá para isto!”.
Mesmo quando não estou internado (felizmente tenho intervalos, mais ou menos alargados, em casa, o que é muito mais agradável) lá vou todos os quinze dias para pedir duas seringas de heparina. E, no meio de tanta azáfama, há sempre alguém que interrompe o que está a fazer para preparar as seringas.
Não quero endeusar ninguém, até porque em todo o lado há bons e maus, embora nuns sítios mais que noutros, mas sinto-me na obrigação de dizer estas palavras introdutórias.
É que nestas minhas andanças por lá e pela leitura de jornais tive conhecimento de que estão a ser implementadas algumas restrições. Espero que elas não ponham em causa a centralidade da pessoa do doente.
Sei que a situação financeira do país obriga a contenções de custos, nomeadamente na Saúde. Mas também sei que infelizmente algumas Administrações e chefias intermédias dão prioridade à ”redução de camas”, ao corte nos medicamentos, à desorganização de Serviços com grande qualidade assistencial construídos, com muita dedicação ao longo de vários anos.
A racionalização dos custos tem de passar obrigatoriamente por uma melhor gestão dos recursos humanos e técnicos e reorganização dos Serviços de modo a aumentar a produtividade e eficiência, a diminuir o recurso a horas extraordinárias, mesmo, que para isso, tenham de ser afrontados lobbies “intocáveis”, a evitar desperdícios, como, por exemplo, a diminuição de consumo energético, um maior cuidado na utilização do material, a substituição do papel pelo suporte informático ou até da água engarrafada pela água da torneira.
outras situações, que, podendo não ter um grande impacto económico, não só põem em causa a credibilidade das medidas tomadas, mas também porque, partindo de pessoal dirigente, servem de justificação a uma não colaboração colectiva, sem a qual nenhuma medida pode ser eficaz. Por exemplo, a atitude de um administrador ou um director de serviço, acabado de nomear, que gasta balúrdios na compra de mobiliário novo para o seu gabinete que já encontrava condignamente apresentável, ou na aquisição de novos carros.
As nossas derrapagens económicas e éticas e a falta de qualidade de serviços prestados são também fruto da incompetência de muitas das chefias, a todos os níveis. Por isso gostaria de referir uma conversa que, há já alguns anos, tive em Lisboa, com alguém conhecedor destes meios. Queixava-me eu dos “jobs for boys” e ele, com sorriso irónico, respondeu-me: “Pois os governos são muito acusados disso, mas da minha experiência e da de outros amigos, os principais responsáveis por essas nomeações, e algumas envolvem pessoas bem incompetentes, não são tanto os Governos mas muito mais a Maçonaria e a Opus Dei, que dividem, equitativamente entre si, os “tachos” mais apetecíveis e poderosos”.
Abri a boa de parolo ingénuo, mas depois fui vendo as nomeações mais sonantes e tentar saber qual o seu partido e verifiquei que muitas vezes não joga “a bota coma perdigota”.

E por aqui me fico, porque não sei como denunciar este escândalo. Porque se fossem só os governos nós podíamos castigá-los pelo voto, mas, se são essas seitas que não concorrem directamente às eleições, como é que os podemos pôr fora da corrida carreirista?

2010-07-10

Os amigos de Alex

Tive a oportunidade e a sorte de participar num encontro de velhos amigos. A faixa etária alargava-se dos 50 aos 80 anos. Muita gente boa. Vários amigos que não via há anos. Pusemos a conversa em dia. E tivemos no meio do convívio um espaço comunitário para quem quisesse partilhar a sua vida, as suas relações com os outros e as relações com Deus. Tudo muito informal. E ficámos a saber mais uns dos outros e de cada um de nós.
Vim de lá com um sentimento de muita alegria, por rever tantos amigos, mas também com uma sensação de “saber a pouco”. Ali, comigo, estava gente muito séria, cristãos convictos a maior parte, intelectualmente todos com as suas licenciaturas. Uma “espécie de elite” cívica e eclesialmente que, dada a sua idade, alguns passaram pelo Maio de 68, mais alguns pelo Vaticano II, todos pelo 25 Abril. Talvez, por isso, eu estivesse à espera de que se debatesse mais a pergunta que me martela a cabeça: “O que foi feito das nossas utopias?”.
Para lá do meritório e indispensável apoio familiar a netos e a pais idosos, quase não se ouviu falar dos projectos em que estivemos ou estamos comprometidos para tornar este mundo mais à medida da pessoa.
Pareceu-me também haver subjacente uma certa desilusão, um certo desencanto destes tempos, que, talvez, nos tenha incapacitado de colocarmos a questão fundamental: “O que vamos fazer para que este estado de coisas mude? O que estamos a fazer para que não continue tudo na mesma?”. Será inevitável que o pesar dos anos nos vá enferrujando como agentes da História? Será isto envelhecer?
Com toda aquela sabedoria que só a vida dá, não teremos nada para ajudar a mudar estes tempos? O tempo de crise, para os homens e mulheres sábios, não é apenas um tempo de desgraças e dificuldades; é sobretudo um tempo de oportunidade, um “tempo de graça”. Oportunidade para ajudar a mudar. Oportunidade para pôr “vinho novo em odres novos”.

Bem sei que trinta andorinhas não fazem a primavera. Mas trinta pessoas, como maior ou menor espaço de poder e influência, podem ajudar e fazer alguma coisa. Podem animar e estimular outros que até se revêem neles. Mas sobretudo podemos lutar com palavras e por gestos contra este ambiente de fatalismo, de egoísmos corporativos, de instintos tribais, do “problema não é meu”, do “salve-se quem puder”, quanto mais não seja repetindo, “oportuna e inoportunamente”, e praticando duas célebres recomendações:
- a de Madre Teresa de Calcutá: “se eu ajudar a resolver o problema que tenho à minha porta, estou a ajudar a resolver o problema do mundo inteiro” (citação livre), porque, acrescento eu, o mundo é feito de uma rede de “eus-nós”. Portanto se todos os “eus” fizessem o que propunha a madre Teresa, todos os problemas do mundo estariam cobertos (eu sei que há problema transcomunitários, mas também eles são resultado das acções de “eus-nós”). Com uma vantagem: tal como quem faz mal estimula os outros a fazer o mal e contribui para criar um ambiente propício a aceitar o mal (a corrupção, a marginalização, o egoísmo, a in-solidariedade, as várias formas de injustiça e violação dos direitos fundamentais, ou se quiserem vão ler as palavras de Jesus em Mt 15,19) como normal, o mesmo se passa com o bem. E que necessitados estamos de criar uma ambiente saudável cívica e eticamente.
- a de John Kennedy: “Não perguntes o que pode o teu país pode fazer por ti, mas o que podes tu fazer pelo teu país”. Eu só trocaria o “tu” pelo “nós”: o que podemos “nós”, os pequenos grupos como este, as pequenas comunidades eclesiais , os movimentos cívicos, as associações profissionais, o que é que estes “nós” todos podem fazer para que este país seja mais justo, mais solidário, mais humano. E podemos fazer muito para despertar a consciência e a vivência do bem comum. Porque se cada grupo fizer o seu muito que é sempre pouco (os grupos são sempre pequenos), os muitos poucos, porque multiplicados por milhões, dão muitos muitos, dão uma multidão.

2010-07-07

DEIXEMOS DE SER HIPÓCRITAS

Aqui deixo, como prometido, o comentário que publiquei no jornal, sobre a intervenção de Conh Bendit no Parlamento Europeu a propósito da ajuda à Grécia.

Esta é uma daquelas palavras que também parecem ter desaparecido da nossa linguagem diária. E, no entanto, Jesus aplicou-a várias vezes e com um sentido muito demolidor. Em causa estava sempre alguém que queria parecer o que não era ou queria apresentar-se como modelo de virtudes: os que dão esmola e tocam a trombeta para que todos saibam (Mt 6,2); os que rezam com ostentação e não por convicção (Mt 6,5); os que jejuam proclamando-o com o seu aspecto “desfigurado” e sofrido (Mt 6,16); os que vêem o argueiro no olho dos outros mas não enxergam a trave que têm no seu (Mt 7,4s). As referências e citações podiam continuar, mas destaquei estas porque todas elas fazem parte do Sermão da Montanha, a grande síntese dos ensinamentos de Jesus sobre os valores do Reino.
Recentemente um deputado europeu utilizou duas vezes essa palavra para classificar os governantes e deputados (e podia ter incluído também, com toda a justiça, a grande maioria dos cidadãos) europeus a propósito da ajuda à Grécia. Refiro-me à intervenção de Conh Bendit, no mês passado, que os jornais devem ter passado nalguma nota de roda-pé, pois estas coisas poderiam incomodar os seus patrões económicos. Aliás, a maioria dos nossos jornalistas incomoda-se e luta (e muito bem!) contra o controlo governamental da imprensa mas não tem grandes problemas em se humilhar (e muito mal) perante o discreto mas eficaz poder económico.
A dita intervenção, que pode e deveria ser leitura obrigatória, vem reproduzida no youtube (http://www.youtube.com/watch?v=wg5SU_bDNsA&feature=player_embedded). Dela quero extrair algumas ideias. Levá-las a sério pode ajudar-nos a construir uma Europa mais solidária e a retomar a sua “alma” de que aqui falei no último comentário.
A primeira crítica de Conh Bendit tem a ver com os quatro meses que andámos a “encanar a perna à rã”. Nem sequer a urgência imposta pela galopante degradação do que sucedia na Grécia conseguiu comover (outra palavra tão evangélica e tão esquecida) os poderosos “senhores da Europa”. Quem não perdeu tempo foram os especuladores com tal benesse.
Depois de longos meses de ponderação, as soluções paridas foram exemplares: estamos a pedir à Grécia “algo quase impossível de cumprir”: as exigências eram tais e os limites temporais tão curtos que era impossível a qualquer país cumpri-las. Perguntava o deputado: “quanto tempo demora(ria) a fazer uma reforma de pensões em França e na Alemanha e quantos governos teriam de cair”? E aqui vem a primeira sugestão. É preciso dar tempo para um consenso, porque o que está em causa são pessoas, a vida de pessoas, os seus empregos, a perda de salários, tudo isto alimentado pela “loucura dos financeiros”. Todos sabemos que na Grécia há muita corrupção, que é preciso combatê-la, mas este não é um motivo suficientemente forte para não procurarem vias realistas e de consenso para vencer uma crise tão profunda.
Segunda sugestão: em vez de pedirmos o impossível, e pelas razões atrás referidas, temos que “inspirar atitudes de responsabilidade”, mas a todos. No entanto, o princípio orientador de alguns governantes e muitos financeiros parece ser “eu quero ganhar dinheiro com a desgraça dos gregos!” E dá dois exemplos muito clarificadores.
O primeiro refere-se ao empréstimo: “nós pedimos dinheiro a juros de 1,5 a 3% e vamos emprestá-lo à Grécia a 5%”. Interessante, não é!? Por isso ele apoia a ideia de outros dos seus colegas da criação de um Fundo Monetário Europeu. Mas esclarece um Fundo de solidariedade, um fundo contra a especulação, um fundo que pense nas pessoas e governos necessitados e não nos lucros que isso possa trazer aos generosos emprestadores. Esta generosidade envergonha a Europa que espero que ainda possamos construir. É contra esta caricatura de Europa, baseada no egoísmo, no lucro fácil, na exploração dos mais pobres” que eu falo da necessidade de ajudarmos a descobrir a “alma” da verdadeira Europa, que ainda anda por aí, mas que corre sérios perigos se não estivermos vigilantes. Eu acredito na Europa. Eu não quero deitar tudo abaixo e começar do zero. A Europa já existe mas está a deixar-se contaminar pelos “ventos pestilentos vindos doutas partes” como recordei aqui.
O segundo exemplo é bem mais vergonhoso. Por isso, sugere que uma grande ajuda à Grécia era fazer daquele espaço uma zona de desarmamento, que houve um claro empenho na resolução do conflito entre gregos e turcos. E faz uma comparação: a Grécia com 11 milhões de habitantes tem cem mil soldados; a Alemanha, que tem uma população sete vezes maior tem duzentos mil. Quanto é que a Grécia poderia poupar se reduzisse significativamente o seu exército, poupando em armas, em fragatas, em submarinos, em aviões de combate?
Mas e a pergunta é corrosiva: será que “os senhores desta Europa” estão interessados nisto? E a sua resposta é clarinha como a água cristalina de uma fonte da montanha: “Nós somos hipócritas. A França vai vender à Grécia armamento e fragatas no valor de 2,5 mil milhões de euros; a Alemanha vai vender também material militar no valor de mais de mil milhões de euros. Nós somos hipócritas absolutos”. Que generosidade sem limites! Que comovente solidariedade! Que cretinos morais são estes “senhores da guerra” tão civilizados!
Vamos construir uma Europa solidária. Vamos varrer estes hipócritas, a não ser que também nós os cidadãos queiramos entrar no clube dos hipócritas, caso ainda lá não estejamos!

2010-07-01

Fogo do Céu

O Evangelho do domingo passado veio mesmo em boa altura para o meu estado de espírito e para me despertar para alguns exageros que estava tentado a cometer ou que já tinha cometido.
Há uns dias atrás tinha relido a intervenção do Conh Bendit sobre a hipocrisia dos europeus no modo como trataram a ajuda à Grécia. Chamou mesmo hipócritas aos governantes franceses e alemães, mas também aos próprios deputados europeus. E explicou porquê: só a França vai recuperar 2,5 mil milhões de euros e a Alemanha, pelo menos, mil milhões em … caças, submarinos, fragatas, etc.. Um dia destes reproduzo aqui a minha reflexão sobre essa intervenção. Para já retenho a palavra hipócritas que ele repetiu duas vezes.
Na semana passada foram aprovadas as conclusões da Comissão de deputados que tinha por objectivo determinar se Sócrates tinha ou não mentido ao Parlamento. Devo dizer que não ligo muito a Comissões de deputados a julgar os outros: primeiro, porque acredito na separação de poderes, embora essa pareça ser uma ideia já de outro mundo (do de Montesquieu, talvez!?); segundo, porque se contam pelos dedos de uma mão as comissões da Assembleia que tenham chegado a alguma conclusão "de geito". Mas o que me intrigou foi aquele jogo de palavras: “Sócrates não disse a verdade toda”. Que conclusão se tira daqui: mentiu ou não? Qual é a diferença entre “não dizer a verdade toda” e “mentir”? Que Sócrates não é um modelo de virtudes éticas não é novidade. Como não é novidade que ele seja pior que a esmagadora maioria dos cidadãos portugueses quando se trata de desenrascar para si pequenos “pormaiores” da vida do dia a dia. Mas os deputados desta Comissão estão exactamente ao mesmo nível de Sócrates naquele campo ao aprovarem uma “escrita daquelas”? O que me parece mais preocupante, em termos, de serviço público e bem comum, é sentir que para os deputados e para os jornalistas um dos nossos mais graves problemas é saber se Sócarates mentiu ao Parlamento e se o Parlamento, através da sua Comissão, mentiu ao país… tal o relevo que a comunicação social deu a estas questões. E lá me veio a palavra hipócrita do Conh Bendit a propósito do Sócrates, do parlamento, dos jornalistas, nunca esquecendo que sempre há excepções.

Dir-me-ão que são dois casos muito diferentes. “Fisicamente” são-no realmente, mas do ponto de vista ético estão muito próximos nos seus fundamentos. Mas escolhi estes por serem tão diferentes-semelhantes pois tinha muito por onde escolher. E servem só como exemplo daquilo a que me conduziu a reflexão deste Evangelho.
“Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?” (Lc 9,54). Esta frase foi como um soco no estômago. É que já por mais que uma vez, perante estas alarbices que vão tecendo a nossa sociedade, esta ideia me passou, como um relâmpago, pela cabeça. Eu procuro logo afastá-la, mas, de vez em quando, mal me descuido, lá aparece ela sorrateira e prazenteira: “e se descesse um fogo de um qualquer céu e limpasse esta sujidade?" .
Os discípulos fizeram aquela ameaça, como se sabe, porque uma aldeia se recusara a receber Jesus. Talvez essa ideia também me venha à cabeça, porque as pessoas não praticam a cidadania, porque não lutam pela justiça e o bem comum, porque se fecham no seu egoísmo e eu… acho isso, pelo menos teoricamente, inaceitável particularmente nos tempos que vivemos. Mas eu só escrevo e falo. Mas eu só olho para os outros e pouco para mim (aquela história do argueiro no olho do vizinho versus a trave que tenho no meu!).
Por isso, meditei as palavras que se seguiram: “Mas Jesus voltou-se e repreendeu-os. E seguiram para outra povoação”. Palavras sábias (ou divinas!?) que vou ver se não esqueço por estes tempos mais próximos (quantos: um dia? Uma semana? Um mês? Um ano?).
Do ponto de vista prático significam para mim que:
- vivo numa realidade que é como é e não como eu gostaria que ela fosse;
- não posso julgar os outros só com os meus critérios;
- não tenho a verdade toda.
Mas não vou para outra “povoação”. Isso não! Vou ficar nesta dos que acreditam que é possível viver em paz, em alegria, em esperança na construção de uma terra nova. Vou partir da nossa realidade como ela é e dar o meu contributo para que a “nossa aldeia” seja acolhedora e esteja sempre disposta a acolher os outros, mesmo e sobretudo os diferentes. Vou procurar descobrir o que os outros têm de bom e não estar sempre à espreita de segundas intenções. Vou continuar a escrever e a falar de esperança, de bondade, de fraternidade. Vou falar de que todos unidos podemos construir o bem comum para todos, ter uma melhor qualidade de vida. Vou continuar a bater-me pela centralidade da pessoa, de qualquer pessoa.
Mesmo sabendo que alguns vão continuar a ser hipócritas, vamos todos procurar que o seu número diminua e que mudem de equipa. O que não vai ser muito difícil, porque muitos dos hipócritas somos nós próprios
E, já que falar e escrever é muito pouco, vou ver se faço alguma coisinha por isso: no modo como vivo, nos meus gestos diários, na minha avaliação dos outros e fazer com que o “fogo do céu” me saia da cabeça e da “pena” (de escrever) sempre que alguma coisa me desagrade.