divórcio ou casamento eterno?...

2011-01-23

O escândalo da divisão

Os cristãos estão a celebrar a Semana da Unidade, que decorre sob o lema que era a marca distintiva da Igreja de Jerusalém, a primeira comunidade cristã: “assíduos aos ensinamentos e à comunhão fraterna, à fracção do pão e às orações”.
Realmente a Comunidade primitiva de Jerusalém aponta muitas linhas a quem procura honestamente o caminho da unidade.

A unidade não é unanimismo nem sequer uniformidade. Havia uma pluralidade, uma diversidade que começou logo na manhã do Pentecostes. Nesse dia, juntou-se gente das mais diversas cidades e até etnias, que o livro dos Actos dos Apóstolos acha importante referir: “Partos, Medos, Elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia, da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, Judeus e prosélitos, Cretenses e Árabes” (Act 2,9-11). S. Lucas, com esta enumeração de povos, quis certamente simbolizar todo o mundo habitado. Esta diversidade de povos e línguas (culturas) entendiam-se, entendiam a Palavra de Deus que lhes era transmitida. Estavam admirados e assombrados com o facto de se poderem entender, apesar das suas divergências.
O ecumenismo hoje tem de partir desta realidade: ninguém possui a Palavra de Deus; a Palavra de Deus está aberta a todos e a todas as culturas e nenhuma cultura tem o direito de impor a sua interpretação. Se assim acontecer, em vez da unidade caímos na confusão da Torre de Babel e na incompreensão mútua. O acontecimento do Pentecostes está nos antípodas do acontecimento da Torre de Babel. Ambos são um fenómeno de universalidade, mas no Pentecostes, a diversidade não é violentada pela unidade mas enriquece-a, enquanto na Torre de Babel todos formavam uma unidade, mas uma unidade forçada, quase de escravos, de gente que era obrigada a unir-se para construir uma Torre que chegasse ao céu.
Não são os homens, mesmo os líderes religiosos, que têm de nos levar para o céu, muitas vezes com palavras e interpretações que são apenas suas, mas é o “céu” que desce a todos nós.

Daqui decorre outra lição: é um e o mesmo Espírito que nos unge a todos, independentemente das nossas culturas. As línguas de fogo que caíram sobre os que estavam reunidos deu-lhes o dom de “falarem noutras línguas, conforme o Espírito os inspirasse”. Isto é, cada um que pertence a uma religião ou a uma cultura tem de aprender a falar a língua do outro, a perceber o que ele quer dizer quando não diz as mesmas palavras que nós. Porque muitas vezes não diz as mesmas palavras, mas transmite o mesmo conteúdo fundamental. Por isso a Palavra de Deus não é refém de nenhuma Igreja, de nenhuma hierarquia. ELA É. Tudo o resto são apenas seus servidores. Infelizmente demasiadas vezes os servidores tornam-se donos e a Palavra de Deus é manipulada para servir a palavra dos manipuladores.

Mas há outras lições. Se deixarmos a longa enumeração simbólica de tantos povos, atrás citados, vemos que nessa comunidade primitiva, formada por pessoas unidas pela mesma língua e cultura, havia diferenças e conflitos de tal monta que se geraram graves tensões. Apesar do cuidado do autor dos Actos procurar amenizar os factos, o que é certo é que estalaram conflitos sérios, de que podemos recordar dois.
O caso das viúvas dos helenistas que eram discriminadas na distribuição dos bens, porque pertenciam a outra “facção”, à facção dos convertidos não judeus. Então os líderes não ignoraram a tensão e resolveram-na com sabedoria. Não fizeram de conta que não havia tensões. Agarraram o problema e encontraram uma solução para ele, em nome da paz no interior da comunidade e em nome das exigências de amor de Jesus ressuscitado: “Não convém deixarmos a Palavra de Deus para servirmos às mesas. Irmãos, é melhor procurardes entre vós sete homens de boa reputação, cheios de Espírito e de sabedoria; confiar-lhes-emos essa tarefa. Quanto a nós, entregar-nos-emos assiduamente à oração e ao serviço da Palavra” (Act 6,2-4). Como estas palavras andam hoje tão esquecidas nas nossas Dioceses e nas nossas paróquias. Quantas vezes se esquecem os primeiros responsáveis que a sua missão é entregarem-se assiduamente à oração e estar ao serviço da Palavra, que não é sua, mas de Deus.

O outro caso, que gostaria de referir, é o complexo problema de saber quem podia ser cristão: só os que passavam pelo judaísmo e por todo o seu ritualismo ou os pagãos poderiam passar directamente ao cristianismo. Aí havia várias facções que se envolveram em árduas disputas. S. Tiago defendia intransigentemente a primeira posição. S. Paulo advogava intransigentemente a segunda. S. Pedro hesitava, embora o seu coração se inclinasse mais para a primeira. Mais uma vez, um problema tão difícil, certamente bem mais difícil do que as discussões teológicas entre os actuais cristãos desavindos, foi assumido frontalmente, foi discutido no chamado “Concílio de Jerusalém”, o primeiro de muitos para dirimir as questões de fundo. Com o passar dos séculos foram-se espaçando os concílios, porque o diálogo, mesmo dentro da Igreja, é sempre considerado perigoso, porque faz perguntas, porque interpela, porque quer saber porquê, porque pode pôr em causa hábitos impróprios, porque pode obrigar a abandonar rotinas estabelecidas.
Mas voltando a Jerusalém discutiram e chegaram a um consenso com cedências mútuas.

A Igreja de Jerusalém nos Actos dos Apóstolos é, pois, o modelo da unidade que buscamos hoje. Ela recorda-nos que a diferença e a diversidade não são o mesmo que divisão e desunião, e que, mesmo quando os problemas se complicam, temos de ter a humildade de nos colocarmos todos ao serviço da Palavra de Deus. É que, apesar das divisões, a Palavra de Deus congrega e une: “Pai que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim como Eu sou em Ti”. Jesus faz este pedido ao Pai “para que assim o mundo creia que Tu me enviaste” e “para que eles cheguem à perfeição da unidade e assim o mundo reconheça que Tu me enviaste e os amaste a eles como a mim” (Jo 17,21.23).
Duas vezes Jesus diz, no momento solene da partida, que devemos todos ser um, porque se não o formos o mundo não reconhece que o Pai o enviou nem acredita que o Pai ama a todos, e ama de tal modo que “mandou a este mundo o seu Filho Unigénito a fim de que o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna. De facto Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3,16-17).

Não é um escândalo esta nossa divisão? Não é uma blasfémia ignorar as palavras de Jesus? Como pode o mundo acreditar em Jesus se parece a quem está de fora que não nos entendemos? Onde pode levar uma evangelização da divisão?
Disto muitos darão contas a Deus.

Esta Semana da Unidade dos Cristãos foi precedida por um gesto muito bonito e rico de simbolismo. Bento XVI nomeou o Prémio Nobel da Medicina (1978), Werner Arber, para presidente da Pontifícia Academia das Ciências. Era um dos actuais 80 “académicos pontifícios” e fazia parte dela desde 1981.
Esta Academia já tem mais de quatro séculos, pois foi fundada em Roma, em 1603, com o nome de Academia dos Linces, da qual um dos primeiros membros foi Galileu.
Mas a grande novidade e o bonito gesto ecuménico estão no facto de Arber, apesar de ser protestante, se ter tornado no primeiro não católico a ser nomeado pelo Papa (católico) para este cargo.

2011-01-11

Perseguições Religiosas

A denúncia doPapa, na Mensagem para o Dia Mundial para a Paz, de que as comunidades cristãs são as mais perseguidas neste momento, no que foi acompanhado até por por não-cristãos, serviu de tema de fundo para a minha habitual crónica "jornalística", que quero aqui partilhar com os meus leitores.

OS ATAQUES AO CRISTIANISMO
“Os cristãos são, actualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé” diz Bento XVI, na sua Mensagem para o Dia da Paz.
Para um não crente poderá parecer mais uma daquelas afirmações “queixinhas” de um líder religioso. Mas não é, pois BHL (Bernard-Henry Lévy), talvez o mais controverso e mediático dos "novos filósofos", um não-cristão, denuncia a "ola de fobia" (onda de fobia), que ocorre por todo o mundo, sob a forma de ataques violentos, perseguições e morte, concluindo com duas perguntas: “É admissível o assassinato quando as vítimas são os fiéis do "papa alemão"? É permitido oprimir, humilhar, torturar em nome de outra guerra de civilizações, não menos odiosa que a primeira? Não. Nestes tempos devemos defender os cristãos”.
Estamos, pois, a assistir a uma cruel perseguição aos cristãos. Isto não deve fazer-nos esquecer o que outras confissões religiosas e minorias étnicas estão a sofrer. Antes, deve sensibilizar-nos ainda mais para essas degradações da condição humana. Simplesmente, neste momento, há uma perseguição violenta e cruenta contra os cristãos e não parece ser objecto de grandes preocupações, como o mesmo BHL acusa noutro artigo: “Enquanto o anti-semitismo é considerado um crime e os preconceitos anti-árabes ou anti-ciganos são estigmatizados, a violenta fobia anticristã que percorre o mundo não parece ter qualquer resposta”.
Os cristãos não deviam estranhar esta situação, de que o próprio Jesus foi vítima e que nos apontou até como sinal da autenticidade cristã: “Felizes sereis quando vos insultarem, vos perseguirem e, mentido, disserem todo o género de calúnias, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande será nos Céus a vossa recompensa” (Mt 5, 11-12). Mas esta atitude interior não justifica que não lutemos por uma sociedade em que a liberdade religiosa seja reconhecida, defendida e promovida como um direito fundamental de todos. Não somos masoquistas, mas queremos lutar pela liberdade religiosa, mesmo que isso signifique sofrimento, perseguição ou morte. Ao fazê-lo estamos a tornar a sociedade mais humana e a pessoa mais pessoa. Só com a liberdade de consciência é que a pessoa se pode realizar em plenitude. E liberdade de consciência significa que há um espaço interior que ninguém pode violar como tão bem mostra o “Dai a César o que é de César…”: os Césares não têm legitimidade para violentar a minha consciência. Nem mesmo o Magistério da Igreja, pois foi Pedro, o primeiro “chefe” da Igreja, quem definiu este “dogma” fundamental: “É mais importante obedecer a Deus do que aos homens” (Act 5,29). Aqui, Deus pode traduzir-se simplesmente por consciência (GS 16) e a frase passa a ter um valor universal, até, porque Deus “não faz acepção de pessoas” (Act 10,34).

Há, no entanto, outras formas mais subtis de perseguição ou desconsideração religiosa, como são os esforços para a “privatizar” a fé. Ora é a minha fé que marca profundamente a minha maneira de ser e de actuar. Como diz o Papa, “na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa “ (1). Como cidadão, actuo segundo a minha mundividência, como a actuação do ateu ou do agnóstico também depende das suas munfividências. Portanto é tão legítima a dimensão pública da fé, como o é a do ateísmo ou a do agnosticismo. Além disso, poderemos ainda olhar por outra perspectiva: as religiões são também movimentos culturais, cujos contributos têm moldado as sociedades e a própria humanidade. Como recorda o Papa: “Inegável é a contribuição que as religiões prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou proibida, mas vista como válida ajuda para a promoção do bem comum.” (6)

Mas há uma outra “privatização da fé” mais preocupante, porque não se resolve por legislação ou por reflexões filosóficas, mas porque é interna à própria Igreja católica. Há muitos católicos que resumem a vivência da sua fé no ir à missa, mandar os filhos à catequese e dar migalhas das suas sobras para uma qualquer instituição. O seu comportamento, muitas vezes exemplar, resulta do facto de serem “boas” pessoas, cumpridores das responsabilidades familiares e profissionais e não (tanto) do seu encontro com Jesus Cristo: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Ora Jesus disse-nos que “Não é o que diz ‘Senhor, Senhor’ que entrará no Reino dos Céus” (Mt 7,22) e que os sinais do Reino (Mt 11,4-6) decorrem dos critérios indispensáveis para entrar nele: dar pão e água, visitar os doentes e os presos, acolher os estrangeiros, … (Mt 25,34ss).
Portanto, estamos a privatizar a nossa fé, isto é, a fechá-la dentro das paredes das igrejas, sempre que não lutamos, em nome de Jesus Cristo, que vamos conhecendo pela Catequese e nos alimenta na Eucaristia, por uma sociedade mais justa, mais solidária, mais fraterna, mais humana. É isto e não vistosas procissões ou públicas vias-sacras que desprivatizam a nossa fé.
“Repensar juntos a pastoral em Portugal” é uma boa altura para responder às questões: que mudanças na Catequese e nas homilias? Que alterações na celebração da beleza do nosso Deus? Como viver e praticar a espiritualidade do samaritano a que tanto apelou Paulo VI no final do Concílio? Como ver a presença real de Jesus nos outros, especialmente nos que sofrem, nos famintos, nas prostitutas, nos drogados e em todos esses “mal-comportados” que, de um modo geral, comunidades cristãs e sociedade civil tendem a “varrer para baixo do tapete”?