divórcio ou casamento eterno?...

2011-09-26

O dom das mulheres

Não vou falar da beleza exterior das mulheres, que é tão bonita como passageira. Mas vou falar de mulheres que me “surpreenderam” nestes dias.

Depois de longos tempos à espera, finalmente as mulheres sauditas vão poder votar. Nada sei das suas lutas em favor desta causa e deste direito fundamental. Também não interessa muito para o caso. O importante é que as mulheres possam começar a ser cidadãs na sua terra. O resto virá chegando por acréscimo. As conquistas na História são difíceis, lentas e geralmente dolorosas. Por isso, é indispensável que haja “sempre alguém que resista”. É certo que ainda não podem conduzir um carro ou viajar sem autorização do marido ou do pai. Mas o futuro constrói-se pedra a pedra e às vezes, grão de areia a grão de areia. Mas uma vez feito o arranque, nada o fará parar. Por isso, gosto do verso de Torga: “O importante é partir”. Sem partir não há viagem.
Também na Igreja católica, há muito que fazer. Já aqui recordei a recusa de Bento XVI em comungar da opinião dos seus irmãos bispos, tão responsáveis como ele pelo governo da Igreja, em atribuir à mulher o ministério do Leitorado. Isto só irá obrigar um Papa futuro a escrever como João Paulo II fez na Carta às Mulheres do Mundo Inteiro (29.6.1995): “Não posso deixar de manifestar a minha admiração pelas mulheres de boa vontade que se dedicaram a defender a dignidade da condição feminina, através da conquista de direitos fundamentais sociais, económicos e políticos, e assumiram corajosamente tal iniciativa em épocas em que este seu empenho era considerado um acto de transgressão, um sinal de falta de feminilidade, uma manifestação de exibicionismo e, talvez, um pecado” (6).

Maria Elizabeth Macías, redactora-chefe do jornal mexicano "Primera Hora de Nuevo", foi decapitada por se atrever a denunciar n a Internet as acções de um grupo de criminosos. A sua cabeça foi encontrada num pote, juntamente com um teclado de computador, um rato, um cabo e uns auscultadores.
A mensagem não pode ser mais clara. Mas a coragem desta mulher não pode ser desperdiçada. Espero que sirva de estímulo para que muitas mulheres e homens aprendam a viver numa sociedade sem o medo paralisante de quem nada denuncia nem nada põe em questão pois pode perder o estatuto social, o emprego, um bom negócio ou mesmo a vida. Se em vez de uma única mulher fossem todas as mulheres e homens a fazer denúncias não haveria suficientes criminosos para eliminar uma sociedade inteira. A cidadania não pode ser uma moeda completamente desvalorizada.

Não sei o seu nome. Apareceu num programa da RTP1. Tem 15 anos. É uma aluna inteligente. E também criativa. Decidiu que a sua aposta seria contribuir para que todos os colegas da sua turma passassem. Contribuir é pouco; assumiu isso como objectivo. E foi assim que se disponibilizou a acompanhar quem precisava: este e aquele, aqui e ali, hoje e amanhã.
A sua genica mobilizou os próprios colegas que se sentiram, não mais inteligentes, mas mais motivados e trabalhadores. E acabou por, em conjunto, conseguir o seu objectivo: todos passaram.
O que queria destacar eram dois ou três aspectos:
- a importância de ter um objectivo ao serviço do bem comum e lutar por ele;
- a capacidade de partilhar e ser solidária, sabendo que ao ajudar os colegas a passar estava a criar potenciais concorrentes futuros;
- o efeito multiplicador que as coisas boas têm: tal como o mau tão noticiado se pega, também o bem, se fosse publicitado, se multiplicaria;
- não é necessário fazer grandes gestos ou tomar grandes iniciativas: a vida constrói-se muito mais com os gestos pequenos do dia a dia, que não exigem grandes logísticas e que podem ser executados com a mobilização dos vizinhos próximos.  

A iraniana Ameneh Bahramí recusara, há sete anos, uma proposta de casamento de um conterrâneo, cujo nome sei mas não merece publicidade. O enjeitado não esteve com meias medidas: atirou-lhe ácido à cara, desfigurando-a e cegando-a.
Entretanto, o tribunal decidiu aplicar-lhe a lei do talião, ainda em vigor: “olho por olho, dente por dente”. Perante o espectáculo que seria a execução da pena pela própria vítima, além dos mirones, apareceu também a televisão.
Na sala de um hospital, o criminoso esperava, certamente angustiado, a execução da pena: umas gotas de ácido que Ameneh lhe colocaria nos olhos, cegando-o como ele a cegara.
Mas Ameneh Bahramí não pôs gotas nenhumas nos olhos do seu carrasco. Fez um gesto muito simples mas imensamente lindo e incompreensível para muitos dos presentes: PERDOOU.
Perdão. Como é difícil perdoar e ser perdoado. Há quem diga que essa capacidade já não é bem humana: é supra-humana. Isto é, exige de nós, humanos, uma violência, uma violentação interior para a qual não estamos muito preparados. Nem para ela fomos educados.
No entanto, Jesus foi muito claro: o amor que ele propõe tem de incluir também o amor aos inimigos. E não há amor sem perdão. Perdão gratuito.
Só a vítima pode verdadeiramente perdoar. Ao fazê-lo eleva o património moral da humanidade e torna este mundo mais habitável. O homem deixa de ser o lobo do homem.

2011-09-12

És como o Morais: uma moral para ti; outra para os (de)mais

Este velho ditado ocorreu-me ontem quando ouvia o Evangelho deste domingo. Uma passagem muita rica, pois podia levar-nos por muitos caminhos.
O do perdão, por exemplo. Esta exigência de Jesus de que devemos perdoar sempre - “setenta vezes sete” - é tramada. Nem sempre é fácil perdoar. A mágoa, que não conseguimos esquecer, não ajuda muito. Ou mesmo nada. Mas perdoar não é esquecer. Esquecer é sempre um risco, se não soubermos esquecer. Uma ofensa exige sempre um período de luto. Se não for feito com amor, o mais certo é irromper num momento (in)oportuno, saltar e fazer estragos. É um pouco como com a morte das pessoas queridas: ou fazemos o luto com sabedoria ou vivemos anos e anos angustiados com uma perda que sempre será uma perda.
Por outro lado, não sei se é mais fácil perdoar do que pedir perdão. Perdoar pode dar-nos uma satisfação interior mas também um ar de superioridade. Eu perdoo. Eu decido perdoar. Este perdão tem muito pouco de perdão, e muito muito de orgulho. Eu sou bom, até perdoo! Mas pedir perdão exige algo de humilhante, de abaixamento, de reconhecer a superioridade do outro a quem ofendi. Precisamente porque o ofendi, estou em dívida com ele. Pedir perdão com autenticidade é assumir as minhas limitações.

Mas eu gostaria de reflectir um pouco sobre o comportamento dos dois devedores. Ambos devem. Ambos pedem o perdão de uma dívida. Um é atendido; o outro não. Ora o que não perdoa e é exactamente aquele que foi perdoado. Alguém achará estranha esta lógica. E é vista do ponto de vista teórico; mas na prática não é assim que funcionamos muitas vezes? O próprio Jesus nos recorda esta discrepância, quando fala da nossa acuidade visual de conseguir ver, através da trave do nosso olho, o argueiro no olho do outro. Ou recorrendo à mitologia grega, podemos rever a mesma ideia naquela decisão de Zeus de colocar nas nossas costas um alforge carregando os nossos defeitos e outro alforge à nossa frente cheio com os defeitos dos outros. Assim é muito fácil ver os defeitos dos outros: no meu alforge da frente e nos alforges que os outros carregam nas suas costas. E facilmente podemos ignorar os nossos defeitos.
Esta maneira de funcionar é muito humana e muito nossa. E tem uma extensão que podemos aprofundar um pouco. Deixemos o problema concreto da disparidade nos comportamentos perante uma situação semelhante. Pensando um pouco, facilmente arranjamos uma boa desculpa: afinal vemos o mesmo acontecimento de pontos de vista diferentes. Não só de perspectivas diferentes, mas também de "locais" diferentes. É esta a razão por que geralmente não levamos os pobres realmente a sério, não os compreendemos. Como posso eu, que não sou pobre, perceber o pobre? Como posso ver a história a partir da sua perspectiva? E indo por aí fora. Como pode o legislador legislar a favor do pobre se ele não é pobre nem sabe o que isso é? Como pode o governante dar prioridade ao pobre se ele nunca foi pobre? É por isso que geralmente as legislações e a organização social não fazem opção pelos pobres mas sim muito pelos ricos e alguma coisa pelos remediados. 
Mesmo na comunidade crsitã, como é possível não fazer a opção pelos pobres e assumir essa opção como uma característica estruturante da Igreja, quando o nosso Deus faz opção pelos pobres, quando o próprio Jesus nos mostrou com a sua vida essa sua opção prioritária, ao falar em público com as mulheres, ao sentar-se à mesa com os pecadores, ao tocar nos leprosos? Nada disso nós fazemos. E não fazemos porque não somos pobres nem sabemos o que isso é. Mais: interiorizamos que os pobres são pobres por culpa sua, porque são preguiçosos, porque em vez de trabalhar passam a vida a sobreviver com truques inaceitáveis. Cómodo, este raciocínio, não? O que seria dos pobres se eles não nos trapaceassem de vez em quando? Morriam à fome. Além disso, todos sabemos que a pobreza se auto-reproduz: são gerações e gerações que foram resvalando para o fundo do buraco e é preciso um enorme esforço para subir as suas paredes viscosas e escorregadias. O problema, no fundo, é que nenhum de nós que vamos à missa dominical e cumprimos os outros preceitos, como o fariseu, é pobre. Nenhum sabe o que é passar dias e dias sem comer. E, portanto, o que não sabemos, não podemos compreender.

Mas há um outro aspecto que me ocorreu, talvez de modo não muito linear. É a disparidade entre o que pensamos e o que fazemos. Nós podemos saber a doutrina toda, mas depois não a pomos em prática. Há uma espécie de anacoluto entre o que penso e o que faço. E, o pior, é que nem dou por isso. Não é por mal. Certamente trata-se de um processo mais de natureza filosófica ou mesmo fisiológica. Eu ainda me recordo de que, nos meus tempos universitários, tive e dei umas aulas chamadas teórico-práticas. Nelas se fazia a ponte entre a teoria e a prática. Eram muito importantes. (Houve um tempo em que desapareceram do mapa, mas espero que tenham voltado). É que não bastava saber bem um teorema, ser capaz de o demonstrar. Uma coisa é saber o teorema matemático ou uma lei da física; outra é aplicá-los ao problema concreto que pode ser resolvido por essa teoria. Como é que eu aplico o teorema àquele problema concreto? Ensinar a fazer este trajecto era o objectivo das aulas teórico-práticas.
Também na vida e nas nossas convicções precisamos de aulas teórico-práticas. Quantas vezes repetimos palavras do Evangelho e, com uma aparente desfaçatez, pecamos contra elas no preciso momento que as proclamamos! Porquê? Porque o afirmar está a um nível diferente do fazer. E entre esses níveis não há, ou nem sempre há, comunicação. Eu penso que não se trata de uma maldade intrínseca, mas de uma deficiência, de uma limitação que precisamos de combater. O problema é que geralmente não damos por ela.
Desafio o leitor a descobrir pequenas ou grandes situações na sua vida em que isto possa estar a acontecer. Mas não parta do pressuposto de que isso só acontece aos outros. É que os nossos vícios estão no alforge detrás. Estamos tão habituados a este mecanismos que só com um esforço bem dirigido e uma especial atenção é que poderemos descobrir o que por ser tão óbvio se tornou obscuro. É que nós estamos tão mergulhados neste ambiente que estas coisas são tão naturais, que não damos por nada; estes gestos fazem já de tal maneira parte da “mobília da casa" que nem os vemos.

2011-09-03

Uma vida, mas uma vida em abundância


Conhecia o Fernando há muitos anos. Cruzávamo-nos por aí: eu, por acidente, nalguma intervenção teórica; ele, num dos intervalos, das suas andanças em favor dos outros, aqui, ali, além, onde houvesse pessoas carenciadas de ajuda.
O Fernando tinha um coração enorme, um coração onde cabiam todas as vítimas da história e dos homens, um coração Pró Mundo. Um coração quase infinito que estava sempre cheio porque as vítimas dos nossos atropelos dos direitos humanos são imensas. Com um coração assim ele não tinha mãos a medir. Não tinha mãos nem pés nem cabeça nem cabeça. As urgências eram tantas, que a primeira reacção de qualquer pessoa sensata era desistir. Mas o Fernando, felizmente, não era sensato. Os sensatos acomodam-se, dão uma ajudinha, isto é, uma esmola e deixam cada um amordaçado pelos seus problemas, com a consoladora desculpa de que “não posso mudar o mundo”. Mas o Fernando não procedia assim. Apesar da imensidão da tarefa nunca virou a cara. Lutava. Mobilizava. Chateava os conhecidos, amigos, alunos, colegas. Fazia. Com paixão, com dedicação, com amor pelos que sofriam.
Num mundo tão marcado pela miséria e pelas imorais desigualdades só temos dois caminhos:  
- ou vivemos indiferentes ao sofrimento, passando de lado sem olhar, pondo assim em prática a nossa saborosa capacidade para “causar uma enorme infinidade de dor” porque “a dor é a única força que se cria do nada, sem custo nem trabalho: basta não olhar, não escutar, não fazer nada” (Primo Levi);
- ou despertamos os corações, nos comovemos, como o samaritano, e então somos arrastados por um qualquer daimon interior, que nos obriga a pôr mãos à obra para cuidar e acolher os necessitados.
O Fernando fez a segunda opção. Transformou-a na razão de ser da sua vida. Para mim que sou crente, ele era a imagem límpida da compaixão do Deus em que acredito, que ama gratuitamente, ama sempre sem olhar aos méritos das pessoas, ama de um modo mais carinhoso aqueles que sofrem. Não se preocupa com os seus pecados (se não o que seria dos justos que pecam sete vezes ao dia?) mas com as dores e os sofrimentos. Os pecados esquece-os, ou melhor, “apaga-os da memória”; os sofrimentos comovem-no, como Jesus, Deus-homem, tão bem nos mostrou com as suas palavras e com a sua vida. O nosso pecado mais grave, o verdadeiro pecado mortal, é causar sofrimento ou tolerá-lo com indiferença. João Paulo II explica isto muito bem através de uma dúzia de verbos que nos deveriam fazer pensar: “Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem suscita ou favorece a iniquidade ou a desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas. Uma situação - e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade - não é, de per si, sujeito de actos morais; por isso, não pode ser, em si mesma, boa ou má” (RP 16, citada em SRS 36, a propósito do pecado social e das “estruturas de pecado” que marcam o nosso mundo e, hoje, com esta crise de maneira mais profunda, visível e dolorosa). Fiz esta citação porque certamente não há nenhum leitor deste post a começar pelo seu autor que não tenha cometido o crime de lesa próximo através de alguma daquelas acções descritas por tantos verbos e atitudes.

Mas o Fernando foi mais longe na visibilização desse rosto bondoso de Deus. Não só dedicou a sua vida em pleno a este “cuidar do outro”, como deu a vida por essa causa. “Não há maior prova de amor do que dar a vida” (Jo 15,13). O Fernando deu a vida por esta causa. Morreu no meio de mais um gesto de amor, na “longínqua” Guiné.
A nossa primeira reacção foi “que perda”, “estamos mais pobres” e as frases do costume, umas vezes verdadeiras ou hipócritas. Neste caso bem verdadeiras.
Mas, num segundo momento, pensando melhor, não concordo, de todo. Porque o Fernando teve uma vida cheia de amor, não cabia mais. E uma vida mede-se pela qualidade do amor e não pela quantidade dos anos. Mesmo que o Fernando vivesse mais tempo ele faria sempre falta. Porque são muito poucos os que têm a coragem de viver como ele, nos limites, por amor dos outros. O Fernando só faz cá falta, só será uma perda se especialmente os seus colegas de projecto(s) não continuarem a sua obra. Nem caso, sim, faz falta, será uma grande perda. Mas se a obra continuar a desempenhar a sua missão, se for fiel ao espírito do Fernando, a sua falta não é falta, é estímulo; não é perda, é ganho. Mas é preciso muita coragem e determinação para quem fica “órfão” resistir à tentação de cruzar os braços. Não já, nestes próximos dias ou meses, mas depois sob a demolidora erosão dos dias que passam. Até porque estes trabalhos exigem uma persistência e uma teimosia a que estamos muto pouco habituados. Eu acredito que tudo irá continuar, mas é bom estar atento às tentações que insidiosamente surgem disfarçadamente: as tais “escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo” e, ainda, as tentativas de nos “esquivarmos ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior”, atrás citadas.

Mas a morte do Fernando é também um dedo acusatório apontado aos ricos (países) do Norte, que gastam palavras a decidir ajudar, mas depois apenas ajudam de acordo com os seus interesses. O Fernando morreu porque, apesar de, desta vez, ter levado consigo a insulina de que precisava como diabético, esta se estragou porque num clima daqueles precisava de ser guardada em ambientes que só o Norte dispõe e porque não havia no hospital central de Bissau. O Fernando morreu porque na Guiné não havia insulina, por isso a qualificou de "longínqua". A insulina, pelos vistos, é um mais um medicamento de luxo. Como o são as vacinas, para nós são “ao preço da chuva”, mas inatingíveis para a maioria dos que vivem na “longínqua” Guiné ou noutras zonas tão “longínquas” porque pertencem a um outro planeta.
A morte do Fernando é a morte de tantas vítimas da miséria, da falta de cuidados mínimos de sobrevivência, resultado da nossa incapacidade de partilhar os dons e os bens que deviam ser para todos. Um simples café pagava uma granjeia de vitamina A que evitaria a cegueira e até, nalguns casos, a morte de milhares de crianças, que, por isso, nunca poderão ter a qualidade de vida a que têm direito. Serão sempre “pessoas a meio”, porque lhes falta qualquer coisa de essencial para viver com dignidade. E isto pelo preço de uma bica. Tanta vida que se poderia salvar com os nossos gastos supérfluos, as nossas compras para descomprimir das nossas tensões, os nossos cosméticos para que a pele não se engelhe demasiado, os nossos ansiolíticos que temos de tomar porque a nossa vida não tem sentido, quando o sentido e a razão de ser da nossa vida estão exactamente na atenção, na preocupação, no cuidado do outro.

Será que a morte do Fernando nos ajuda a ver tudo isto? É evidente que não. A maior parte das pessoas, mesmo os que o conheciam, talvez já tenham até começado a esquecê-lo. Porque a nossa memória é curta. Mas sobretudo porque ele é um “mau exemplo” neste mundo politicamente correcto, onde o que eu quero é que me deixem em paz com as minhas “coisinhas” e não que me desinquietem para mudar de vida.

Obrigado, Fernando, pelo que fizeste e pelo que testemunhaste. Fica-me o consolo e a certeza de que, neste momento, já estás a receber “o cem por um” com que o teu e o meu Deus recompensa o “servo bom e fiel” que tu foste.