divórcio ou casamento eterno?...

2011-10-25

O DIREITO À INDIGNAÇÃO

                Algo de novo está a acontecer por essas cidades fora, por milhares de praças. Ninguém sabe bem o que é nem onde pode ir dar. Mas algo está a mexer. Sem grande esforço vem-nos à memória o Maio de 68, os tempos da “imaginação ao poder”. Diz-se que a história não se repete. Mas repetem-se os tempos de mudanças, ou melhor, os instantes subtis, suficientemente curtos, para “mudar de agulha” do comboio e desviá-lo para novas paisagens.
             Esta movimentação original e espontânea poderá ter mergulhado as suas raízes nas revoltas inesperadas de povos onde não nos pareciam possíveis. Mas esta é a riqueza dos povos “novos”. Não são como a velha e caquética Europa, onde até os indignados precisaram de ser estimulados. A Europa perdeu a iniciativa. Foram jovens árabes, que arriscaram a vida, por uma vida a sério. Foram pessoas árabes que disseram NÃO a ditaduras intermináveis. Foram recebidos à bala, mas continuaram com a força do seu sonho. Talvez não saibam o que querem, mas sabem que não querem o que tinham. Depois a indignação foi-se alastrando. Chegou aos países ditos democráticos, com uma democracia formal, um tigre de papel, que dá cobertura a todos os desmandos dos poderosos. Uma democracia que funciona muito na base do que dizia Obama a propósito da crise: “Muitas coisas que estiveram na base da actual crise não eram necessariamente ilegais, mas sim imorais, inoportunas e imprudentes”. É isto. Não eram ilegais, mas eram imorais. É contra esta farsa de democracia que muito se indignam. Não sabem o que querem, mas sabem que têm de protestar, de se indignar contra tantos desmandos e falcatruas, que têm de acordar da letargia que os adormeceu, que têm de lutar pelo bem comum e pela transparência contra meia dúzia de senhores do mundo.
           O que vai acontecer? O sistema sabe que lhe basta ter paciência e esperar que aos indignados lhes passe a onda. Já assistiu a várias arremetidas e tem sobrevivido. Como o camaleão sabe bem como adaptar-se. E se não estivermos atentos ele adapta-se mesmo!
          É neste ponto que é preciso parar para pensar um pouco. Saber o que não se quer é importante e será sempre um primeiro passo. Mas o que vem a seguir? Não queremos esta democracia? Então qual queremos? A indignação não pode esgotar-se em manifestações e passeatas, por maiores e mais oportunas que sejam, sobretudo, na nossa sociedade contemporânea. As manifestações são indispensáveis para ajudar a dar força à indignação e a perceber que não estamos sozinhos. São um meio para estimular a coragem dos medrosos, o compromisso dos hesitantes e a esperança dos desiludidos. Essa força é sempre necessária para quem quer afrontar o sistema, para quem quer lutar pela justiça e pela paz, para quem quer viver a solidariedade. Estas lutas são sempre de “sangue, suor e lágrimas”. Todas as conquistas em prol da dignidade do homem e da mulher custaram muitas vítimas.
Mas para prosseguir o caminho é preciso saber minimamente para onde queremos ir. O “só sei que não quero ir por aí” é muito pouco. Porque as opções e os caminhos são infinitos, pois ainda não estão determinados. Somos nós que os construímos, mas com que pedras?
A sensação que se tem é que agora os indignados continuam indignados mas têm um sonho de que ignoram o conteúdo, agarram-se a uma utopia de que não vêm o fundo, olham um futuro que se perde nas nuvens e nem sequer têm a certeza de que este esforço vale a pena, até porque os resultados, mesmo quando surgem, nunca são imediatos: os frutos são sempre lentos a amadurecer. Perante tantas violações impunes da dignidade das pessoas e dos povos, perante uma organização social sempre feita à medida de meia dúzia, é difícil revitalizar a sensibilidade social e reforçar a vontade moral de lutar e de reagir. Há um caminho que precisa de ser percorrido construindo-o, pedra a pedra, grão a grão. E só o percorre de forma comprometida quem procura conhecer as necessidades dos outros e se dispõe a acolher os outros como um dom. Só se pode construir, fomentando a cultura da responsabilidade de todas as pessoas, a todos os níveis, envolvendo todos os cidadãos e instituições sociais. É preciso criar novos paradigmas e estruturas políticas, económicas, financeiras, mas também culturais e éticas. A injustiça, hoje, tem dimensões planetárias. Precisamos, portanto, de assinar um compromisso com a solidariedade, a fraternidade, a gratuidade, que permita soluções novas, criativas, libertadoras que alterem radicalmente estilos de vida, leis e de regras sociais.
Por isso, este era o tempo oportuno para que movimentos culturais e religiões nos fornecessem um ponto de apoio, nos “alavacassem” (palavra hoje tão usada hoje) com suficiente força interior para um longo caminho que nos espera. Que nos apontassem caminhos credíveis e inteligíveis. Estamos carenciados de místicos, poetas e profetas, de gente que seja capaz de ler para lá das aparências do imediato e olhe o longo-prazo com a sabedoria dos tempos.
Mas, concretamente, onde estão as religiões? Para onde estão a olhar? Para o futuro ou para o passado? Para a resolução dos seus problemas internos ou para a libertação da humanidade? Para a sua preciosa doutrina desincarnada e a-histórica ou para os desafios sempre novos que a história nos coloca? Para o sábado ou para o homem? Estimulem com confiança e ousadia sem receios, procurando não extinguir o que de bom daqui poderá nascer.
As manifestações dos indignados são certamente um sinal dos tempos; mas são apenas um sinal. São um grito de revolta; mas apenas um grito. Se não for assumido por toda uma sociedade e por toda uma humanidade, ficaremos condenados a que tudo fique na mesma.

2011-10-13

49 ANOS DEPOIS

Façam de conta que ainda é o dia 13, embora já passem largos minutos da meia-noite. 
É  que gostaria de deixar aqui uma notinha para recordar que fez 49 anos que começou o Concílio Vaticano II. E como explico na minha crónica, que reproduzo a seguir, se 11 de Outubro é a data oficial de abertura, onde se destaca aquela lufada de ar fresco que foi o discurso do bom papa João XXIII, acho que verdadeiramente o Concílio só começou no dia 13, quando o cardeal Liénart com uma pequenina observação baralhou por completo os trabalhos e deu cabo de toda a organização tão cuidadosamente preparada pela Cúria Romana. 
Aí fica a minha crónica


ATRIBULAÇÕES ECLESIAIS DO CONCÍLIO VATICANO II
         Celebra-se mais um aniversário do Concílio, discretamente, apesar de ter sido o maior acontecimento eclesial dos últimos séculos.
                A sua abertura foi a 11 de Outubro de 1962. Mas, eu diria, que só começou a 13. Quando se distribuíam as listas das Comissões, que o Santo Ofício preparara cuidadosamente, o cardeal Liénart pediu a palavra. Ao ser-lhe recusada, insistiu: "Peço desculpa, mas vou falar": que a votação seja adiada por alguns dias para nos conhecermos melhor e preparar as nossas listas. Esta coragem de dizer “não” no momento oportuno, estas cinco palavras forçaram o adiamento e, assim, o Espírito Santo, e não a Cúria, passou a presidir aos trabalhos do Concílio, garantindo a liberdade de expressão e a certeza de que não haveria tabus nem coacções e de que a Igreja se iria repensar seriamente. Todos, na Igreja e na sociedade, devíamos aprender esta lição de “fortaleza”: não ter medo de falar e de fazer, nem ficar apenas à espera de directrizes do “alto”.
                Depois de quatro anos de debates acalorados, veio o pós-Concílio desvelando muitos problemas que andavam escondidos. E logo surgiu a acusação: “depois do Concílio; logo, por culpa do Concílio”. Entretanto, o fervor inicial se foi esbatendo. Também não se fez a recepção do Concílio: quantos católicos conhecem, sequer, os documentos? E o Papa e a Cúria parecem cada vez mais marcados pelo receio de qualquer mudança e de perder estruturas passadas.
                Bento XVI conta-nos a sua experiência pessoal. “Também eu vivi os tempos do Concílio com grande entusiasmo e vendo como se abriam novas portas e parecia realmente o novo Pentecostes. Esperámos tanto, mas as coisas na realidade revelaram-se mais difíceis”, pois, “inseri-lo na vida da Igreja, recebê-lo, de modo que se torne vida da Igreja, assimilá-lo nas diversas realidades da Igreja, é um sofrimento, e só no sofrimento se realiza também o crescimento. Crescer é sempre também sofrer, porque é sair de um estado e passar para outro”. Depois vieram dois grandes acontecimentos: o Maio de 68, “o início ou a explosão da grande crise cultural do Ocidente”, e a queda do comunismo (1989), mas à qual “a resposta não foi o regresso à fé, não foi a redescoberta de que a Igreja com o Concílio autêntico tinha dado a resposta”. Nestas palavras pressente-se o medo do mundo, tão longe do optimismo de João XIII (“uma atitude que nos aproxima da forma de actuar do Senhor Jesus”, dizia) ou do realismo de Paulo VI (“o mistério do homem (desenvolve-se) num processo histórico e psicológico onde lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (OA 37)).
                No primeiro discurso à Cúria, Bento XVI contrapôs a “uma hermenêutica (interpretação) de descontinuidade ou ruptura” a “hermenêutica da continuidade ou reforma”, rejeitando a primeira, porque “uma causou confusão, a outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos”. No Encontro referido, o reitor da Universidade defendeu a necessidade de “uma nova síntese interpretativa do Concílio, que possa superar a paralisia da hermenêutica parcial, seja de uma parte, desequilibrada totalmente sobre a descontinuidade, seja da outra, que insiste de maneira única e unilateral na continuidade”.
                Os membros menos doutos da Igreja sentem que estes “altos” debates estão a fazer esquecer os desafios actuais, que não são tratados com determinação criativa, com fé, esperança e amor. Sentem-se perdidos porque estão cansados, sem perspectivas inovadores. Vêem-se uma Igreja incapaz de avançar com a história e de fazer uma leitura profética dos sinais dos tempos.
                E, contudo, o Concílio continua a ser a Carta Magna da Igreja, o seu farol e guia. Ele proclamou que a hierarquia é um serviço ao Povo de Deus, não estrutura de poder; que todos, incluindo os leigos, somos corresponsáveis pela comunhão e missão, pois todos fomos ungidos pelo mesmo Espírito; que a Igreja católica não é a Igreja de Cristo (“subsiste nela”) mas “apenas” seu sacramento-sinal; que é na pobreza e na perseguição que deve testemunhar Jesus Cristo; que não tem a verdade toda, pois “fora dela há elementos de santificação e verdade” que são dons da Igreja de Cristo; que somos uma Igreja peregrina, “santa mas sempre necessitada de purificação”, como tantos outros na busca da Beleza Infinita, desde os que só “percebem aquela força oculta no curso das coisas” às religiões monoteístas passando pelo hinduísmo e budismo; que somos solidários com as alegrias e as angústias das pessoas, em especial dos pobres; que fora do mundo não há salvação: “o cristão que falta aos seus deveres temporais põe em perigo a sua salvação eterna”. E que o Centro não é o Papa mas a Eucaristia, “sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal”: é a Eucaristia que faz a Igreja.
                Estas só não são transformações radicais porque não as assimilámos nem as praticamos.
                Ruptura/Continuidade, Letra/Espírito? Essas serão questões de poder; mas não de Amor.

2011-10-01

PRECISAMOS DE UMA SOCIEDADE INJUSTA

Estamos a viver um tempo em que é urgente mudar de hábitos, de atitudes, enfim, de estilo de vida. Mas não temos força moral para o fazer. Isto é, só o faremos se formos obrigados. E como não quisemos fazê-lo a bem e a tempo vamos fazê-lo a mal e à pressão.
E agora não vale a pena chorar sobre o passado, acusar os outros (os outros, sim, porque eu nunca tenho culpa; sou apenas uma infeliz vítima, que tenho de aturar os disparates dos outros), lavar as mãos, cruzar os braços.
Temos um mundo novo a construir.
Já todos estamos fartos de ouvir estas "banalidades".
De qualquer modo, aqui deixo a minha crónica desta semana.

PRECISAMOS DE UMA SOCIEDADE INJUSTA 
                A vida é bela. Mesmo quando embrulhada em muitas dificuldades e problemas, vale a pena viver. Todas as épocas tiveram razões para dizer mal da vida que lhes era dado viver. Também agora muitos o poderão fazer. Todos o poderemos fazer. De qualquer modo, parece-me que hoje somos confrontados com duas “novidades” históricas. O tempo de vacas gordas, que cresceu exponencialmente a partir de meados do século passado, deixou-nos desarmados para as dificuldades que fazem parte da vida. A fartura amoleceu os espíritos e a nossa capacidade de resistência e de resiliência, como é chique dizer agora. Por outro lado, a informática revolucionou os modos de comunicação e sobretudo de relacionamento. Vivemos “uma viragem epistemológica, social e política, sem dúvida, mas também familiar e educativa” (Eduardo Sá), com o que tudo isto implica nomeadamente na educação dos nossos filhos.
                E sobre esta revolução de fundo borbulha a crise que todos vamos vendo e sentindo. Não é fácil viver nela, mantendo os mesmos (não) critérios e o mesmo estilo de vida e os mesmos mecanismos organizacionais. Também não é fácil ser governante, por muito que as contas feitas na oposição ou em artigos de palpites apresentem soluções fáceis, brilhantes e imediatas. A dificuldade aumenta porque estamos imersos na tal crise que nos ultrapassa e que parece fazer de nós minúsculas marionetas, agitados por interesses outros que nos tentam manietar e controlar sob a permanente ameaça de abaixamentos de rating ou de incumprimentos.
                Mas temos de sacudir a juba. Temos de continuar a sentir-nos portugueses num contexto mais alargado, a lutar, em conjunto, por uma identidade mínima que é a nossa, assente num conjunto de valores dos quais nos querem escorraçar e até forçar abandonar. Não estou a criticar ninguém. Quero apenas, como todos somos chamados a fazer, a colaborar na nossa “salvação”. E, para isso, mesmo contra-corrente, gostaria de recordar alguns valores que são fundamentais, mesmo que a actual mudança de paradigma obrigue a vivê-los de outro modo.
                Como cristão, embora não precise de fazer apelo a esta condição, o valor primeiro é o da centralidade da pessoa: “Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento” (CinV 47). Reparece-se: a centralidade da pessoa é associada ao desenvolvimento e não apenas ao assistencialismo mais ou menos disfarçado. Apesar de necessário, este é sempre uma esmola, um não-desenvolvimento, a exigir respostas a um nível “mais elevado”. O assistencialismo deixa o cliente sem opções, à mercê da decisão de outros, que, apesar da sua boa vontade, que só podemos louvar, não conseguem nem podem pôr-se no lugar do pobre. Por isso, nunca é suficiente, porque a pessoa só pode realizar-se através de um desenvolvimento integral e solidário. “São os povos (e as pessoas, acrescento eu) os autores e os primeiros responsáveis do próprio desenvolvimento” (PP 77). Não sou eu que escolho, muito menos posso impor a (minha) felicidade aos outros. São os próprios que a devem construir com a nossa colaboração, a nossa fraternidade, o nosso dom, a nossa gratuidade. Esta é a doutrina da Igreja; mas esta tem de ser a norma da sociedade: somos cidadãos a quem a Constituição confere iguais direitos e responsabilidades. Não estou a acusar ninguém. Estou a recordar que todo o cidadão, enquanto tal, tem o direito inalienável de viver dignamente na sociedade a que pertence. Mesmo que isso implique o contributo solidário ou forçado dos outros.
                Um segundo valor fundamental é o trabalho. Nesta viragem “epistemológica” temos todos que repensar o significado do trabalho, as suas novas modalidades, as regras mais adequadas a um funcionamento libertador, mas há características que não se podem perder. Deixo para a próxima uma reflexão sobre o trabalho como criação, vocação, libertação, realização pessoal e comunitária, aplicação do destino universal de bens e não de mero meio de “sacar de dinheiro”.
                Hoje gostaria de recordar a parábola dos trabalhadores da vinha, que ouvimos há quinze dias. Foi dita por Jesus. Mas não tem nada a ver com religião nem com ateísmo. Tem a ver com a organização social para a qual todos, crentes e não centes, somos convocados. Muitos de nós recusamos aquele proprietário, porque é injusto e desincentiva o trabalho sério. Mas, tendo em conta que um denário era o mínimo diário para se viver com dignidade, vejamos o que faz o vinhateiro. Em primeiro lugar, procura dar trabalho a todos. É manifesta esta sua preocupação: vai passando pela praça várias vezes ao dia para ver se há alguém precisado de trabalho. Em segundo lugar, garante a todos o mínimo para viverem como pessoas. Todos, inesperadamente, recebem um denário: uns, por justiça, como ficara acordado; outros, porque essa a era a quantia mínima de que precisavam para viver de “cabeça levantada” e sem vergonha. Uns, porque a justiça do contrato o impunha; outros, porque a justiça do amor e o respeito pela vida o exigem.
                Esta parábola aponta-nos uma solução para a crise à medida das pessoas e dos povos. “Basta” que todos, governantes e governados, ricos e pobres, mudemos de mentalidade e vejamos o mundo às avessas. Só assim seremos capazes de construir uma sociedade aparentemente injusta para torná-la efectivamente justa para todos. Até porque “uma sociedade onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores ter níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43).