divórcio ou casamento eterno?...

2012-03-26

Há falta de muitos pães

Este ano, numericamente especial, decidi que devia comemorar os 70 anos com dois gestos significativos para mim: convidar o maior número de amigos possível e oferecer uma Bolsa para pagar as propinas de um estudante universitário.
Realmente juntei bastantes amigos, embora tivesse de deixei de fora muitos outros, de acordo com vários critérios que estabeleci. De qualquer modo houve dois casais que por lapso não convidei e que não mereci essa "desconsideração": agora já não adianta nada penitenciar-me aqui nem possivelmente junto deles. Mas não somos perfeitos e temos de aprender a viver com os nossos erros, mesmo graves. Só me resta esperar que eles compreendam!

Deixei claro a todos que não aceitaria nenhuma dessas prendas habituais: "tragam muita alegria, paz, amizade, amor e felicidade, mas É PROIBIDO TRAZER PRENDAS MATERIAIS. Porque tudo o que oferecessem ficaria sempre muito aquém da vossa amizade e, além disso, gostaria que vissem esta "recusa" como um gesto de gratuitidade numa sociedade onde tudo parece condenado a ser comprado ou vendido, até muitas vezes os sentimentos". 
Mas acrescentei: "os que se "sintam mal" por não darem uma prendinha, podem contribuir para a Bolsa" de que já falara num primeiro convite. 

Entretanto houve um querido amigo que de algum modo insinuou a sua discordância, a partir de dois argumentos: 1) há muita gente com fome e, portanto, faria mais sentido oferecer esse dinheiro para uma instituição de assistência e 2) há para aí muitos estudantes, até com bolsa, que passam as noites na bebedeira a derreter o dinheiro dos cidadãos.
É evidente que não tenho nada a opor ao primeiro argumento. Antes, pelo contrário: todos sabemos que são muitos e serão cada vez mais as pessoas que vão passar necessidades físicas básicas. E espero que esse conhecimento mobilize a sociedade civil para dar o máximo de apoio. Já muitas instituições, públicas e privadas, têm descoberto formas novas de ajudar e muitos cidadãos têm sabido, apesar de tudo, partilhar um pouco mais do que era habitual. 
A sua sugestão era, portanto, muito legítima e oportuna. Apesar disso, não a segui. E vou dizer as razões que me levaram a manter a posição inicial. Antes, porém, quero, esclarecer que se há muitos estudantes a gastar dinheiro em bebedeiras (e até sei de uma pseudo-cidadã, que não necessitando de bolsa e tendo sido contemplada à custa de aldrabices sobre os rendimentos dos papás ou por outros truques pouco recomendáveis, resolve ir gastando esse dinheiro em viagens de turismo ao estrangeiro), convém não generalizar. 
Contudo, isso não significa que não haja estudantes verdadeiramente necessitados de uma bolsa que lhe foi recusada só por razões economicistas. O neo-liberalismo ataca em todas as frentes até aqueles que são os primeiros responsáveis pela formação das futuras gerações. Que eles analisem cada situação e punam, sem dó nem piedade, os faltosos é urgente e necessário num país onde a vigarice tem lugar privilegiado. Mas que cortem a direito sem saber a real situação das pessoas (por exemplo, duas gémeas que compram comida para uma e a dividem ao meio e não vão visitar os pais porque não têm dinheiro) ou servindo-se de legislação imoral (como a de um aluno que ficou sem bolsa porque o pai por engano ou dificuldades ficou a dever 2 € à segurança social, segundo me contaram), com isso não posso estar de acordo.

Feita esta observação vamos às minhas razões. Sem seguir nenhuma ordem lógica, vou enumerá-las.
Acho que há necessidade de tomar consciência que os pobres não são apenas os iliteratos e que muita gente que anda a estudar também passa fome. E esta é uma realidade de que não tomámos ainda verdadeira consciência. A imagem clássica é a do universitário boémio que não estuda, passa a vida na farra e, portanto, entre eles não há ninguém necessitado de tanto apoio como os pobres que acorrem às instituições de caridade. Ora não devemos esquecer que há pobreza de pão também entre alguns e são bastantes estudantes universitários. 
Por outro lado, há muito bons rapazes e raparigas, cheios de talentos, que não podem tirar o seu curso universitário porque os pais ou eles próprios não têm dinheiro sequer para pagar as propinas. E assim se perdem possivelmente potenciais futuros bons governantes, deputados, gestores, directores gerais e sem ser gerais, chefes de repartição, etc. Ora bastará olhar para o panorama actual para ver o que de vergonhoso acontecesse a nível destes âmbitos que acabei de referir - a incompetência, a irresponsabilidade, a incapacidade de estar ao serviço do bem comum e até várias atitudes imorais, muitas delas com cobertura legal - para vermos o que isto significa de prejuízo para o nossos futuro a médio e longo prazo. 
Se a pessoa não pode viver sem o pão nosso de cada dia, também nunca poderá ter uma qualidade mínima de vida sem o pão da cultura que não pode comer, porque neste país a formação é uma coisa secundária, mesmo quando o ministro que é um professor catedrático, que devia saber alguma coisa da importância da cultura e da cidadania, vem a tomar atitudes perfeitamente demolidoras. Se fosse um gestor que só vê números ainda se poderia compreender. Mas assim... o melhor é calar-me para não faltar à caridade.
Porque ele, especialmente ele, que até era um opinion maker, devia saber que nenhum país avança se não tiver gente qualificada e bem qualificada. O tempo dos trabalhadores indiferenciados vai acabando. Os desafios que hoje se colocam aos países exigem gente qualificada. Mas parece que nós não precisamos dos nossos qualificados para nada: exportamo-los para a Alemanha e outros países e vamos assim ficando cada vez mais pobres (e agora não me refiro ao dinheiro).
Que Passos Coelho e Vitor Gaspar não entendam isto, já que só parecem saber de números, défices, austeridade (mas só para alguns, como bem sabemos, e cada vez há gente ou grupos profissionais cada vez mais (des)iguais que outros), é lamentável porque são os nossos governantes. Quantas bolsas dariam essas reformas escandalosas, essas mordomias para os amigos, a não taxação dos capitais? Mas que o Ministro da (des)Educação não saiba nada disto é realmente o cúmulo dos azares que nos bateu à porta. Há que interiorizar, especialmente os governantes e seus assessores, de que as pessoas são a principal riqueza de uma nação e que as pessoas qualificadas são uma riqueza maior. Vou fazer uma citação um pouco longa de João Paulo II:
"Mas existe, em particular no nosso tempo, uma outra forma de propriedade, que reveste uma importância nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. A riqueza das Nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais… Acenou-se pouco antes ao facto de que o homem trabalha com os outros homens, participando num «trabalho social» que engloba progressivamente círculos cada vez mais amplos. Quem produz um objecto, para além do uso pessoal, fá-lo em geral para que outros o possam usar também, depois de ter pago o preço justo, estabelecido de comum acordo, mediante uma livre negociação. Ora, precisamente a capacidade de conhecer a tempo as carências dos outros homens e as combinações dos factores produtivos mais idóneos para as satisfazer, é outra importante fonte de riqueza na sociedade moderna. Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade actual… Efectivamente, a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas. É o seu trabalho disciplinado, em colaboração solidária, que permite a criação de comunidades de trabalho cada vez mais amplas e eficientes para operar a transformação do ambiente natural e do próprio ambiente humano. Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida… Se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro” (Centesimus annus, 32).

Finalmente termino com uma nota pessoal: eu próprio só consegui tirar um curso universitário e estar melhor preparado para ajudar a construir uma sociedade e um futuro mais humanos porque tive a sorte de ter tido uma Bolsa.Certamente que nada disto nos dispensa de ajudar os que passam fome, os que não têm o pão material. Mas é bom não esquecer que também há muita falta de pão intelectual, geralmente associado à falta do outro pão. 
Por isso, pagar umas propinas a alguém é também ajudá-lo a alimentar-se melhor e a poder continuar a estudar.



2012-03-20

A ENXURRADA

Tenho andado ausente porque fazer setenta anos é um peso pesado muito grande para me poder dedicar a outros trabalhos.
No entanto fui inundado no facebook, onde vou poucas vezes (eufemismo!), por palavras muitas bonitas, simpáticas, exageradas, amorosas, como aqueles livros de que falou a querida Joana: alinhados, amontoados, empilhados, sublinhados, escritos. Mas a minha imodéstia não me permite escrever o último adjectivo. Ainda tenho de lá (facebook) ir ao menos para dizer "olá, gostei que não te tivesses esquecido de mim". 
Fui cumprimentado por alguns via e-mail. Tive comigo muitos outros, alguns que vieram de longe, a maior parte de muito perto, mas todo animado por uma amizade que eu sei que é sincera. E a amizade, o amor, a gratuitidade são as coisas mais lindas que se pode partilhar com os amigos e são as únicas forças que fazem avançar a humanidade na direcção mais correcta.
Fiquei muito contente por sentir que era amado e querido. Não é o que todos precisamos, como do pão para a boca? Estas são emoções que nos mantêm vivo e nos tornam mais pessoa. E quanto mais anos passam, mais gosto destas manifestações. Até porque vivemos numa sociedade que atira os velhotes para o caixote do lixo.
No sábado tive uma grande festa. Eu gostei muito, embora tivesse algum receio do que iria sair daquelas "idiotices" que me passaram pela cabeça e que os amigos têm a bondade de aceitar.
Tinha receio porque nesses cerca de 80 amigos havia-os de todas as gerações e de vários "credos". E eu gostaria de lhes contar um pouco da minha vida e queria também dar uma prova visível da minha condição de católico, mas de modo que nenhum deles se sentisse excluído ou violentado a suportar um frete. Mas pelo que vi e senti parece-me que não tinha razão para tantos receios. Os mais novos já me conhecem para saber que sou assim. Continuo a ser um sonhador de uma vida outra e às vezes esqueço a vida em que estamos. Mas é o sonho que comanda a vida, mesmo, e sobretudo, para aqueles para quem a vida tem sido madrasta. Os mais velhos esses conhecem-me de ginjeira e esperam tudo de mim. São todos uns queridos.

Fazer setenta anos para mim foi muito bonito. Foi muito bonito porque significa que estou vivo, que ainda sinto e vibro com a vida, que tenho muitos amigos, incluindo a minha mãe com os seus 92 anos.
Foi um tempo de olhar para trás. Partilhei com os amigos algumas das grandes fases desta trajectória já longa que começou num espaço tão perdido no tempo e num tempo tão fechado no espaço que nada faria prever que tomasse o rumo que tomou. Mas foi uma caminhada bonita. Fui um tipo cheio de sorte. Vivi dificuldades, como todos, mas o somatório é uma vida feliz. Por isso, resolvi partilhar também aqui, com os que não puderam estar presentes, alguns dos tempos fortes da minha vida: os meus sonhos, as minhas dúvidas, as minhas perguntas, as minhas decepções, as minhas convicções.   
Não sei se adiantará alguma coisa a alguém. Mas eu nunca escrevi para converter ninguém. Só tenho escrito para desafiar as pessoas a pensar e a pensar-se para todos podermos ser verdadeiros agentes da história.
Não sei se adiantará alguma coisa a alguém, mas um testemunho não é para ninguém. É para mim, para me rever, me revisitar, fazer um balanço (espero que não seja final), que me permita ir mudando o muito que há para rectificar. Mas sobretudo serve para eu me maravilhar mais uma vez com este milagre que é a vida, que é estar vivo, que é pasmar perante o céu estrelado que insinua a longa história do Universo desde o Big Bang até este momento, que é encher os olhos de lágrimas por um lindo pôr do sol, que é rasgar um sorriso pelos amigos que tenho, que é reviver todos os dias os milagres que apenas duas dúzias de letras realizam ao irmanarem-se num poema ou num romance ou os que sete simples notas musicais transformam em acordes tão sublimes que mergulham até ao profundo da nossa alma e põem todo o nosso sistema psico-somático a vibrar em harmonia.

Vivemos no meio de milagres. Mas não os vemos, porque são tantos que já saturaram a nossa capacidade de enamoramento, de espanto, de admiração, de paixão. Será pecado falar da beleza num mundo tão marcado pela maldade? Acho que não. O mundo está tão marcado pela maldade porque nós não nos admiramos com a bondade, não a publicitamos, não nos comovemos com ela, não a pegamos aos outros.

Por isso eu continuo a admirar o milagre da vida nas suas multifacetadas formas.