divórcio ou casamento eterno?...

2012-07-22

E já esquecemos


Reproduzo aqui a minha crónica publicada hoje no Diário de Coimbra, sobre um episódio verdadeiramente desumano que aconteceu na Covilhã. Não sei quantos mais haverá por aí, mas curiosamente aquele exemplo de denúncia de situações degradantes não deu origem a mais nenhuma. Será que só existia aquela em Portugal?
Então aí vai.


A ESCRAVATURA AINDA EXISTE
As imagens entraram pela casa dentro com a violência inacreditável de uma realidade que parece ter saltado do passado negreiro para se instalar no nosso quotidiano. Na Covilhã, sessenta pessoas africanas estavam, há dois meses, a ser tratadas como animais: num edifício velho, para passar despercebido, sem água, nem luz, nem esgotos. Um garrafão de cinco litros de água tinha de dar para a comida e para tomar banho.
Estas imagens quase todos vimos, comentámos e depois silenciámos. Parece já fazer parte de uma história onde tudo cabe e onde tudo se esquece. A rotina de uma sociedade sem valores éticos assentes na dignidade da pessoa justifica as situações e o esquecimento. Mas não há consequências nem lições a retirar? É isto natural?
Gostaria de deixar apenas três notas.
As empresas envolvidas foram “lavando” as mãos, recusando responsabilidades. A PT contrata o consórcio Opway-Somague que subcontratou a uma outra empresa, que terá ainda subcontratado, assim diluindo a responsabilidade. Certamente, a última da lista decidiu alojar aqueles trabalhadores naquele barracão para não ficarem à chuva. Não sei se os trabalhadores pagam algum aluguer por tais instalações. Como é possível esta irresponsabilidade em dominó? A PT não tem nada a ver com esta obra? E o Opway-Somague? A maioria das empresas e cidadãos alemães também não tiveram nada a ver directamente com Auschwitz. Portanto, deve perguntar-se: Onde está a responsabilidade social das empresas? Ou basta ir descartando responsabilidades para cima de outros? Quem é o principal beneficiário da obra? Todas as empresas vão ganhando com a exploração destes homens, porque a escolha do subempreiteiro é sempre pelo menor preço. Como é possível haver empresário sem quaisquer escrúpulos morais que dormem descansados escravizando outras pessoas? O que irá suceder às empresas envolvidas, aos empreiteiros e aos subempreiteiros? Nada?
O ministro Pedro Mota Soares diz que actuará se existirem casos graves. O que são casos graves, para quem está no alto do poder? Será necessário nomear alguma comissão de inquérito para clarificar o assunto? E irá descobrir que alguns deles são “ilegais”, o que é muito grave, pelo que terá de se exigir o seu repatriamento. Veremos! Mas, apesar de infeliz esta observação, é evidente que não se pode acusar o ministro desta situação. O Ministério do Trabalho tem organismos e competências para fiscalizar e detectar estas situações. Estão estes organismos a actuar diligentemente? E possuem meios suficientes? E quem fiscaliza as condições dos trabalhadores que vivem fora dos estaleiros? Há uma especial atenção aos emigrantes, terreno fértil para o aparecimento de situações de exploração, redução de direitos e até também de escravatura?  
Mas há um terceiro actor fundamental. Dada a falta de escrúpulos de tantos empresários e a impossibilidade de fazer uma adequada fiscalização em todas as obras, torna-se insubstituível o papel da comunidade, sobretudo da comunidade de vizinhança. Nada nem ninguém pode substituí-la. São os vizinhos quem melhor pode detectar estas situações e depois denunciá-las às instâncias apropriadas. Mas falta-nos muito essa preocupação cívica. Um funcionário de um supermercado reconheceu que suspeitara de qualquer coisa quando via aquelas pessoas sujas vir quase todos os dias fazer compras, mas reconheceu que falhou na sua responsabilidade cívica, certamente mais por inércia do que convicção.
Quantas situações destas estarão a acontecer só porque nós, cada um de nós, como vizinhos, não estamos atentos? Aliás, veja-se a rapidez com que os trabalhadores foram “bem” instalados (mas por quanto tempo?), logo que a situação se tornou pública.
Quando perceberemos que “todos somos verdadeiramente responsáveis por todos” (João Paulo II) e que ninguém nos pode libertar dessa obrigação se queremos construir uma sociedade cada vez mais humana? 

2012-07-12

O Estrago da Nação

Como se aproxima o tempo de escrever mais uma crónica, cá ando eu à procura de um tema, a habitual angústia do não escritor que escreve um artigo regularmente. Acho que não é por falta de assunto. Talvez até seja por haver assuntos a mais. De qualquer modo, o debate sobre o Estado da Nação, do qual consegui ouvir e ver largos minutos, abriu-me uma hipótese que pode ser actual. Vou aqui fazer um primeiro esboço do artigo. O debate do macro-Estado é o habitual. Várias propostas, conforme a sensibilidade e a ideologia (se ainda há!!!) de cada força (fraca) política, se foram desenrolando num diálogo de surdos. Cada uma aparece como salvadora da pátria, numa atitude em que os espaços de sobreposição são cada vez mais reduzidos: com sobreposição não quero dizer uniformismo mas percepção de que há assuntos que têm de ser tratados com a necessária abertura mútua para que se possam resolver no interesse nacional, ou melhor no interesse dos portugueses, isto é, no interesse das pessoas e do bem comum. Ali se falou de números a mais e de pessoas a menos. E não é assim que vamos muito longe: uns preocupados em ser bons alunos em defesa da nossa credibilidade externa; outros em zurzir uma austeridade tão violenta que parece esmagar as pessoas, sobretudo as mais desprotegidas. E outros, comentadores, interrogam-se sobre o que se há-de dizer às pessoas quando perguntam: para que serve ou o que vale tanta austeridade? E mais uma pergunta se podia acrescentar: por detrás de tudo isto há algum projecto de (para) Portugal? Qual?
Como não sei responder e como não me parece que o macro-Estado da nação inclua o micro-Estado ou o Estado-intermédio, há realmente muita coisa no nosso estilo de vida pessoal e comunitário que pode ser responsável por muito do estrago que estamos, nós, os portugueses, a fazer a Portugal. 
Como funciona a nossa Administração Pública, a nível dos vários escalões intermédios? 
Assisto, impotente e incrédulo, às guerras que, por exemplo, parecem estar a acontecer com a suposta fusão dos dois Hospitais em Coimbra. Quanto nos estão a custar estas guerras surdas e de interesses particulares em detrimento de mais e melhores medicamentos hospitalares (há cada vez medicamentos mas eficazes sobretudo nas doenças mais agressivas, mas que os Hospitais não compram porque não têm dinheiro), maior estímulo aos profissionais que os faça sentirem-se tratados como pessoas e não elos de uma cadeia que tem apenas preocupações estatísticas. No fundo, em detrimento do doente e dos profissionais que querem seriamente estar ao serviço das pessoas e de um cada vez mais humano Sistema Nacional de Saúde.
Como se fazem tantas nomeações de amigos pessoais ou amigos de amigos. Por exemplo, quanto entravam (do verbo entravar!) o nosso emergir da crise as cunhas que esmagam o mérito e defendem a incompetência? Estes amigos como se fazem? Por oportunismos mútuos e expectativa na paga de favores na altura própria? Pela pertença às convenientes seitas parapolíticas e sociais, que não passam pelo voto popular? Exemplos destes todos conhecemos, mas parece que nada nem ninguém consegue parar estes estragos cívicos e morais. E aquelas borboletas-sereias que sempre andam em torno da luz do poder, agradando a todos, serpenteando-se e contorcendo-se singrando impávidos e incompetentes. 
Há pouco, pudemos ouvir Paulo Morais falar doutra modalidade de corrupção bem montada. Legalmente montada, ou não estivessem envolvidos grandes escritórios de advogados. Estes fazem as leis (para que servem os senhores dos ministérios!?), cobram depois chorudas verbas para dar pareceres (um desses escritório recebeu 7,8 milhões de euros) e ainda garantem clientes famosos e fortunosos porque conhecem muito bem os alçapões que deixaram nas leis para ajudar amigos e ganhar fortunas com os ricos criminosos.
Claro que isto mete nojo moral. Mas ainda existe consciência moral (existe demasiada "consciência tranquila"), pelo menos entre os servidores do dinheiro, cuja escravidão é mais viciante que qualquer droga? E no fundo da pirâmide estão os que procuram sobreviver. Com uma austeridade imoral, que só eles têm de suportar, com desigualdades de tratamento porque não têm amigos no Governo ou na Oposição nem nos escritórios dos advogados. E sem o dinheiro mínimo e o acesso aos serviços básicos para viver com dignidade. 
Este é o Estrago (moral) da Nação.

2012-07-01

Qualidade de vida

Depois de um longo mês de silêncio, volto ao convívio dos meus amigos bloguistas. Embora ainda não esteja fisicamente bem de todo, já dá para ir escrevendo algumas coisas.
Nos tempos que correm, um mês é muito tempo. Parece haver mudanças ligeiras mas consistentes lá para a UE, porque finalmente alguém resolveu bater o pé. O que pode ser uma boa notícia. Por cá é que as notícias não parecem melhorar. Mas também era mais ou menos esperado. A austeridade elevada a valor supremo e destronando a centralidade e o primado da pessoa só pode conduzir a maus caminhos.
Não vou falar destas coisas complexas. Vou relatar e comentar um caso recente. 

Uma pessoa conhecida a quem fora diagnosticado uma doença complicada e fora receitado um regime de vida muito controlado, decidiu continuar a fazer a sua vida normal: a comer e a beber bem e sempre que lhe apetecia, a fumar. E o resultado foi o esperado. Passado pouco tempo acabou por morrer.
É claro para todos que, em certas condições de saúde, as limitações podem ser duras e colocar a pessoa entre duas situações: ou cumprir minimamente as regras e poder andar por cá mais uns dias com menor qualidade de vida, ou apostar no que agrada (e que muitos chamam qualidade de vida) e encurtar a vida.
Fo a prmera vez que me confrontei com esta situação de uma forma real e concreta. Teoricamente já a tenho reflectido. Mas uma coisa é o campo teórico outra é a real existência de cada um. E também aqui cada um decide o que está disposto a fazer ou até onde pode ir para alongar um pouco mais a sua estadia neste mundo.
Do que acabei de dizer a questão certamente não se coloca entre querer viver ou não. Chegados aqui todos se lembrarão da velha anedota. Um médico diz ao doente: "O senhor a partir de agora não pode fumar, nem beber, nem andar em noitadas, etc.". E o doente vira-se para o médico e interpela-o: "E o senhor doutor acha que isto é vida!"

O que pode dar resposta nestes momentos é o conceito que temos de vida. Depois a consciência de que as fases últimas da vida vão ser, normalmente, marcadas pelo sofrimento, pela doença, mas sempre por limitações crescentes. E todos nós temos dificuldade em aceitar as limitações. Somos filhos de uma sociedade prometaica, do Prometeu que tudo tenta até ir ao Olimpo roubar o fogo a Zeus. 
Vivemos numa sociedade que não nos ensina a viver com as nossas limitações, nem cria condições para vivermos com qualidade esses tempos mais difíceis. E, por isso, talvez fosse bom valorizar estas dimensões humanizadoras nos nossos programas escolares e a sensibilidade humana dos nossos ministros da saúde. Uma das coisas que ouvi no Hospital agora nestes dias e, concretamente, a propósito do cancro, foi o avanço espectacular nas novas modalidade de tratamentos bastante eficazes, mas que necessitam de medicamentos caros, E, concluía o meu interlocutor: "Mas os medicamentos caros custam mesmo bastante e os hospitais não têm dinheiro para os comprar!",

Quando é que somos capazes de construir uma sociedade que ponha a pessoa em primeiro lugar e a pessoa mais fragilizada ainda mais no centro? Não, enquanto, os bancos andarem à solta; não enquanto os mercados forem senhores absolutos; não, enquanto as agências de rating castigarem os povos para se satisfazerem e aos seus amigos, E não vale a pena o discurso conivente dos que defendem as pobres agências que não têm culpa, porque culpados somos nós e pronto.

Também concordo que culpados somos nós que nos submetemos a tudo, queremos é ser bons alunos, na esperança do favor de umas migalhas. 
Mas somos pessoas ou escravos?