divórcio ou casamento eterno?...

2013-01-18

Qohélet e Deus

Para quem lê o Qohélet, o que se destaca, numa primeira leitura, é o seu apelo hedonista a aproveitar a vida (como vimos, não se trata propriamente de um carpe diem), as injustiças da sociedade, os azares da vida e também algumas alegrias. Pode também parecer que ele, apesar de falar em Deus, seja um céptico ou ateu
No entanto, ele fala muito Deus, a segunda palavra mas repetida (32 vezes) logo a seguir a “ilusão”. Portanto, basta este pormenor para mostrar que o Qohélet tem Deus em alta estima. É certo que Deus se apresenta como incompreensível (3,11) “está no céu” e nós na terra: por isso, Qohélet não consegue investigar Deus. No entanto, vai acrescentando considerações várias ao longo do texto: é “o teu Criador” (12,1), é criador de todas as coisas (3,11; 7,13; 12,1), incluindo a felicidade e a desgraça (7,14); “criou os homens rectos, mas eles procuraram maquinações sem fim” (7,29); pôs a eternidade (ou o desejo de eternidade) no nosso coração (3,11), embora não haja unanimidade quanto ao significado desta palavra; deu-nos a capacidade de investigar o mundo, “uma tarefa bem ingrata” (1,13); dá-nos a comida, a bebida, o trabalho (2,24; 3,13; …); põe-nos à prova para mostrar que os homens “só por si são semelhantes aos animais” (3,18); julgará todos, os justos e os ímpios (3,17). No meio de tudo isto, “a felicidade é para os que temem a Deus” (8,12). Daí o seu repetido apelo “teme a Deus” (5,6; 7,8; 12,13), porque “aquele que teme a Deus ultrapassa tudo” (7,18).

Mas há um outro argumento, estilístico, que mostra bem essa sua “consideração por Deus”. Já referi que é bastante difícil identificar um plano ou uma estrutura lógica do livro. Alguns até negam que exista qualquer tipo de organização, considerando o livro um amontoado desorganizado de materiais diversos.
Também referi que há uma frase que faz uma inclusão semita repetindo no princípio (1,2) e no final (12,8) a mesma frase: “ilusão das ilusões, tudo é ilusão”. Pois a inclusão geralmente apresenta uma “estrutura concêntrica” ou especular (de espelho!), apresentando paralelamente ideias semelhantes como num espelho e destacando a ideia central. Assim talvez se possa fazer esta distribuição:

Título (1,1)
v. 1,2                 (a) Ilusão das ilusões, tudo é ilusão
vv. 1,4-11                        (b) Cosmologia
vv. 1,12-3,15                                  (c) Antropologia
vv. 3,16-4,16                                                  (d) Sociologia
vv. 4,17-5,6                                                                    (e) Religião: “teme a Deus”
vv. 5,7-6,10                                                    (d´) Sociologia
vv. 6,11-9,6                                    (c´)  Ideologia
vv. 9,7-12,7                     (b´) Moral
v.12,8                 (a´) Ilusão das ilusões, tudo é ilusão      
Epílogo (12,9-14) (certamente acrescentado por um discípulo de Qohélet).

Sem entrar no paralelismo das várias secções (nem sempre fáceis de detectar), queria analisar a parte central (4,17-5,6):
4,17Vigia os teus passos quando vais à casa de Deus;
aproxima-te para escutar: isto vale mais que o sacrifício dos insensatos,
pois eles não sabem sequer fazer o mal.
5,1Não te precipites com a tua boca
nem se apresse o teu coração
a proferir palavras diante de Deus,
porque Deus está no céu e tu na terra.
Sejam, portanto, poucas as tuas palavras.
2Porque o sonho vem das muitas preocupações
E nas muitas palavras se escutam do insensato.
3Quando fizeres um voto a Deus, não demores a cumpri-lo;
porque não lhe agradam os insensatos; o que prometeres cumpre-o.
4É melhor não prometeres do que prometeres e não cumprires.
5Não permitas que a tua boca te faça cair em pecado;
Nem digas depois ao mensageiro (de Deus) que foi por inadvertências.
Não aconteça que Deus se irrite com o que dizes e destrua as tuas obras.
6Muitos preocupações trazem pesadelos e muitas palavras trazem ilusões.
Tu, pelo contrário, teme a Deus.

A perícope central está totalmente dedicada ao problema religioso. A preocupação específica religiosa é rara na sabedoria tradicional israelita e normalmente de carácter profano. A repetição da palavra “insensato” mostra que o problema se aborda de uma perspectiva mais sapiencial do que ético-religiosos, destacando algumas as suas manifestações. Daí a sua divisão em três partes como se vê pela repetição da palavra “insensatos” (três vezes: 4,17; 5,2.3) e pelas temáticas: sacrifícios, oração e promessas.

Sacrifícios (4.17)
Quando no templo se celebram sacrifícios (ou o culto em geral), renovam-se, explícita ou implicitamente, os compromissos com Deus, torna-se presente a Aliança com Deus e com as suas implicações na vida social: há uma incompatibilidade entre um verdadeiro culto divino e a prática das justiças.
Este é um dos temas fundamentais dos profetas: não há culto verdadeiro sem justiça social. Veja-se, por exemplo, Is 1,11-70. Enquanto o povo viver na injustiça, todo o culto está viciado e até pode ser entendido por Deus, como uma espécie de suborno, como um tentativa de o corromper: “Não procures corrompê-lo (a Deus) com presentes, porque não os aceitará; nem te apoies num sacrifício injusto” (Sir 35,11).
Deus não tem necessidade dos nossos sacrifícios até porque tudo o que se lhe oferece nos sacrifícios foram dons seus que Ele nos deu. O que Ele quer é um coração limpo e aberto, uma vida segundo a justiça: “Quero misericórdia e não sacrifícios, conhecimento de Deus e não holocaustos” (Os 6,6). Conhecimento de Deus que se exprime na comunhão com Ele e a sua vontade. Ou, na versão do NT: “Nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu pai que está nos céus” (Mt 7,21). Fazer a vontade de Deus é viver segundo a justiça.
Portanto, se queremos ser justo, temos de cumprir a vontade de Deus; se queremos cumprir a vontade de Deus, temos de a conhecer. Mas para a conhecer, temos de seguir a proposta de Qohélet, ESCUTAR: “escutar vale mais que o sacrifício”. Mas primeiro que tudo, há que criar espaços de silêncio e “solidão” que permitam abafar o ruído de fundo quotidiano e mergulhar no fundo da consciência onde nos encontramos “frente a frente” com Deus. Como Maria que ouviu Deus no silêncio da sua casa. Ou como Paulo, no silêncio da estrada de Damasco. Ou como Samuel, no silêncio da noite: “Fala, Senhor, o teu servo escuta” (1Sam 3,10). Mas Qohélet acrescenta um elemento novo: fala dos sacrifícios oferecidos pelos insensatos, como se a insensatez dos insensatos afectasse a qualidade da oferta. Realmente, Deus “não julga pelas aparências nem pelo que ouve dizer” (Is. 11,3).
Não é que Deus recuse todos os sacrifícios e holocaustos. Há, no entanto, uma hierarquia de verdades: “Deus prefere a prática do direito e da justiça aos sacrifícios” (Prov 21,3). Também a parábola do samaritano clarifica a mesma hierarquia.

Oração (5,1-2)
Qohélet recomenda a moderação nas nossas palavras com Deus: “não te precipites; não te apresses”. Não é por muito falar que Deus nos atende melhor, como se Deus não nos conhecesse bem, bem melhor do que nós, e precisássemos de recordá-lo. Usar muitas palavras é próprio do insensato.
Que as “tuas palavras sejam contadas”. Isto é, nem de mais nem de menos. Alguns Profetas vão mais longe: “silêncio na presença de Deus” (Hab 2,20; Sof 1,7).
Também Jesus faz essa mesma recomendação, mesmo antes de ensinar os discípulos a orar: “Nas vossas orações não sejais como os pagãos, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falar, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes” (Mt 6,7-8).

(Continua)