Alguns posts atrás,
referia-me a dois aspectos que gostaria de retomar: o problema dos crentes e
dos não crentes perante as contradições da vida e algumas palavras Bento XVI em
Auschwitz. Ao primeiro, dediquei algumas ideias retiradas do Qohélet. Quanto ao
segundo começo por recordar as palavras de Bento XVI (Auschwitz; 28.Maio.2006):
“Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de
crimes contra Deus e contra o homem sem igual na história, é quase impossível e
é particularmente difícil e oprimente para um cristão, para um Papa que provém
da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer
apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus:
Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de
silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa
multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio
torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao
Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.”
As palavras “toleraste” e “jamais permita
uma coisa semelhante” deixam-me perplexo sobre a vontade de Deus, o seu papel
na História e sobre a minha atitude na História e na minha relação para com
Deus. Pois, para tolerar ou não, torna-se indispensável uma acção directa na
história da humanidade. Para “jamais permitir” implica igualmente uma
intervenção directa. Como? E, porque iria Deus mudar a “sua” vontade, só porque
alguém lhe pede para mudar?
Atitudes
“impróprias”
E aqui colocam-se, pelo menos, dois problemas:
o da oração, especialmente do tipo petição, que deixarei para outro post, e a eterna questão do sofrimento e
do mal em geral.
O sofrimento é realmente um (o) grande
problema com que nos deparamos. É algo que não só nos mostra a nossa finitude
como nos deixa sem grandes capacidades de resposta: a dor magoa, deixa-nos
indispostos e dobrados sobre ela própria, no fundo, dói. A dor deixa-nos
desconcertados: aos que sofrem e aos que vêem sofrer. Daí algumas reacções
frequentes, mas que não podem aceitar-se sem mais. Eu pelo menos tenho
dificuldade em aceitar. “Tem que ter paciência”, “deve resignar-se” são
conselhos muito sugeridos. Como se fosse um crime, o sofredor revoltar-se,
dizer “palavras feias”, que a prática ensina (e agora também, segundo parece, a
própria ciência) que parecem tornar as dores mais suportáveis. Um bom modelo é
Job, que não é tão paciente como se diz: “Desapareça a dia em que nasci e a
noite em que foi dito ‘Foi concebido um varão!’. Converta-se esse dia em
trevas! Deus lá do alto não se preocupe com ele…´” (Job 3,3ss). Quando o sofrimento
cai sobre alguém de pouco valem as teorias. Porque o que fica, muitas vezes, é
o protesto e a revolta e, às vezes, até a blasfémia. Isto não significa que não
seja útil e oportuna a palavra amiga que ajude a passar a provação. Uma palavra
que por vezes passa pelo silêncio respeitador. Os amigos de Job “ficaram sete
dias e sete noites sem lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era
demasiado grande” (Job 2,13).
Outra atitude que tenho muita dificuldade em
aceitar é a do velho chavão, tirado da vida de alguns santos e multiplicado
pela devoção popular: Se Deus te faz sofrer tanto é porque te ama muito”. O
amor de Deus aparece medido pela quantidade do sofrimento que cada um sofre!
Que Deus é este!? Voltamos às velhas imagens de Deus, embora por outra via.
Problema
do mal uma questão universal
A pergunta sobre o mal ou do sofrimento é
universal, porque atinge todos os homens e todas as mulheres de todos os tempos
e lugares. É, aliás, uma pergunta que se colocou antes dos outros grandes
problemas da filosofia. Nas literaturas mais antigas já encontramos esta
pergunta.
Da cultura egípcia chegam dois textos sobre
o sofrimento datados do século XX aC:
Diálogo
de um desesperado com a sua alma: descreve
o aborrecimento da vida causado pela desordem e pela falsidade da sociedade.
Critica a falta de solidariedade dos amigos: “A quem posso falar hoje? Os
companheiros são maus; os amigos de hoje não amam. A quem posso falar hoje? (comparar com Job 19,13-19). Os corações
são rapaces, pois cada um se apodera dos bens do companheiro. Os homens
honrados desapareceram, enquanto o violento tem acesso a qualquer lugar”. Apesar
de a sua alma lhe apresentar argumentos para viver – coragem, gozo do momento
presente e moderação dos desejos como fonte de serenidade – este Job egípcio
faz um hino ao suicídio como meio de alcançar a felicidade: “A morte está hoje
diante de mim como a cura para um doente, como a libertação para um prisioneiro.
A morte está hoje diante de mim como um perfume de mirra, como um prazer vivido
sob um guarda-sol num dia de calor tórrido. A morte está hoje diante de mim como
o aroma da flor de lótus, como se sente o que está nos limiares da embriaguez.
A morte está hoje diante de mim como a aproximação da chuva, como o regresso de
uma expedição dos homens a suas casas. A morte está hoje diante de mim como o
clarear do céu, como o homem que caça aves por lugares desconhecidos. A morte está
hoje diante de mim como o desejo de um homem por ver a sua casa depois de ter
passado muitos anos no cativeiro”.
Queixas
de um camponês eloquente: com uma
estrutura literária semelhante à do livro de Job descreve as lamentações de um
camponês, explorado por um rico proprietário, queixando-se das injustiças de
que é vítima. Tal como o infeliz Job, também o justo sofredor mesopotâmico
sofre apesar de estar consciente da sua inocência: “Acabei por ser como um
homem surdo… Em tempos vivia como um senhor mas agora converti-me num escravo (comparar com Job 29,2ss). O furor dos
meus companheiros aniquila-me. O dia é um suspiro; a noite um pranto. Mal cheguei
à vida e já ultrapassei o tempo fixado (comparar
com Job 14,1ss). Olhei em redor de mim: mal sobre mal! Aumenta a minha
opressão, não posso encontrar o que é recto. Gritei ao meu deus e não me
mostrou a face (comparar com Job 23,3.8ss).
Invoquei a minha deusa, mas ela não levantou a sua cabeça”. E também a mesma
incompreensão sobre os desígnios de Deus: “Quem poderá compreender o desígnio
dos deuses? Os desígnios divinos são águas profundas. Quem poderá
compreendê-los? Como vão os seres humanos conhecer a conduta de um deus” (comparar com Job 37,23).
Também a cultura mesopotâmica nos legou
vários textos:
Lamentação
de um homem ao seu deus, chamado o “Job
sumério”: um jovem crente, atingido pela doença, dirige-se ao seu deus Marduk,
queixando-se da sua sorte e pedindo a sua intervenção. Reconhece que nenhum
homem está isento de culpa: “Eles dizem – os sábios – uma palavra justa e
clara: Nunca uma mãe deu à luz uma criança sem pecado, jamais existiu um
trabalhador sem culpa.” (comparar com Job
15,14).
Diálogo
de um aflito com o seu amigo (ou Teodiceia
babilónica): num diálogo poético, alguém, deserdado da sorte, protesta a sua
fidelidade aos deuses. Apesar de concluir que a sua piedade parece ser inútil
(“De que me serviu ter-me curvado perante o meu deus?”) e de pôr em causa a
justiça divina (“Aqueles que não procuram a deus seguem os pelo caminho da
prosperidade, enquanto que os que seguem a deusa são humilhados e
empobrecidos.”), acaba por pedir ao seu deus que o ajude: “Que o deus que me
abandonou venha em meu auxílio, que a deusa que me esqueceu se mostre
misericordiosa.” Esta obra é a que mais se assemelha ao livro de Job.
Inclusivamente apresenta um diálogo com um amigo que começa também por defender
a tese da justa retribuição (“O homem humilde que teme a sua deusa, acumula
riqueza… Àquele que suporta o jugo do seu deus nunca falta alimento, mesmo que
seja escasso.”) e acusá-lo de blasfémia (“Meu caro amigo, os teus pensamentos
são perversos, esqueceste a justiça e blasfemas contra os planos do teu deus.”).
Mas acaba quase por dar razão ao amigo sofredor, ao reconhecer a insuficiência
da tese da justa retribuição e atribuindo a causa do mal directamente aos
homens mas, de certo modo, indirectamente aos deuses que o criaram: “Narru, rei
dos deuses, que criou o homem, o majestoso Zulummar, que juntou para eles a
argila, e a rainha Mami, a rainha que os modelou, deram uma linguagem falsa à
raça humana, de mentira, não de verdade, a proveram para sempre. Falam com
solenidade de um rico: ‘És um rei, mereces a riqueza´ mas a um pobre, tratam-no
como um ladrão, só têm mal para dizer dele e vão tecendo a sua morte.”
Estas citações retirei-as
das intervenções de Herculano Alves e José Ornelas na XIII Semana Bíblica
Nacional e do livro de M. García Cordero, Biblia
y Legado del Antiguo Oriente.
De qualquer modo, o livro
de Job, pela sua dimensão, articulação e profundidade, ultrapassa de longe
qualquer outra obra da Antiguidade. O problema do mal, na “forma de Job” deve
remontar ao início da escrita (3000 aC). O Job bíblico recolheu os motivos
literários e filosóficos das mais antigas tradições do Médio Oriente. Mas
enriqueceu-os, porque é muito mais recente: “A região de Hauran deve ter
oferecido a lenda primitiva do livro de Job; o Egipto forneceu-lhe as imagens e
dois géneros literários, a pergunta retórica e a confissão negativa; a Mesopotâmia
inspirou provavelmente o diálogo de Job com os seus amigos e é a tela de fundo
cultural do livro… Finalmente, a própria Bíblia, nas suas tradições profética,
sálmica e sapiencial não só colocou à disposição do autor um conjunto de
imagens tradicionais, mas criou uma atmosfera teológica que confere ao drama de
Job a sua verdadeira originalidade” (J. Lévêque). Portanto, o livro de Job representa
um ponto de chegada de uma longa reflexão sobre a nossa finitude, recebendo e
reflectindo, com espírito universal e honesto, o contributo da tradição e do
património da humanidade, e elevando-a como novo dramatismo, ao nível de obra-prima
da literatura universal e da reflexão de fé. Neste sentido, o drama de Job não
é um drama judeu, para judeus, mas uma reflexão sobre o homem, de qualquer
tempo e lugar, informada pela visão javista do mundo, do homem e de Deus. "Job talvez seja o mais
elevado texto que a revelação bíblica nos oferece sobre o mistério do mal e de
Deus, ‘escandalosamente’ interligados entre si ao longo da história. Mas o
sentido supremo do livro é precisamente o de se chegar até Deus,
atravessando-se a dramática estrada do sofrimento" (G. Ravasi)
Como já va longa a reflexão, continuarei, nos próximos posts, com a temática do sofrimento e do mal.