Proposta de Queiruga
Vamos voltar ao dilema de Epicuro.
A.T. Queiruga é um teólogo especialmente preocupado em “repensar” a fé
de modo a que, actualizando a sua compreensão, seja possível “recuperar” hoje a
experiência cristã originária. Basta recordar os títulos de alguns dos livros:
Recuperar a Salvação, Recuperar a Cristologia, Recuperar a Criação, Recuperar a
Ressurreição, Recuperar a Revelação. Um dos mais recentes é o Repensar o Mal.
Neste o autor analisa o problema do mal a partir de perspectivas
diferentes. Se na época da cristandade, era difícil falar do mal sem ter em
conta Deus, pois Deus estava presente e interveniente em tudo, com a
Modernidade assistimos a uma viragem estruturante: a secularização e a
autonomização das realidades terrestres vieram alterar o panorama. Esta nova
posição obriga-nos a repensar o modo como tratamos o mal, não partindo de Deus
mas da realidade. E o que a realidade nos diz é que o mal está presente em
todos, crentes e não crentes. Por outras palavras, a presença do mal é anterior
ao factor religioso. Então temos que começar por abordar o mal do ponto de
vista “comum”. Temos de utilizar a razão e não apenas a fé. Devemos reflectir
sobre o mal em si mesmo e por si mesmo. Para tal metodologia, Queiruga inventa
uma palavra panerologia, formada a partir
do grego panerós, “mal”. Vamos para
já deixar de lado a resposta do mistério e vamos olhar criticamente a
realidade. Nós vivemos num mundo finito, limitado. Pelo facto de ter sido
criado, como todas as criaturas, tem limitações que fazem parte da sua
essência. Isto é, um mundo criado não pode ser perfeito. Ora o mal surge destas
limitações do mundo: o nosso corpo tem doenças, porque não é perfeito, mas
limitado, vai-se desgastando, vai perdendo qualidades. Tal como é contraditório
haver um corpo sem limitações, também é contraditória a existência de um mundo
sem limitações. Avançando um pouco mais. Deus não pode entrar em contradições.
É possível Deus criar uma pedra tão pesada que ele não consiga levantá-la? É
possível Deus fazer a quadratura do círculo? A resposta tem que ser não. Então
Deus é impotente? Não. Nem Deus pode fazer com que o “ser” seja “não-ser”. Não
é Deus que é incapaz de fazer a quadratura do círculo. O problema não está em
Deus; está no facto de um mundo criado ser impossível sem o mal: seria
contraditório.
Portanto não é Deus que cria o mal ou o permite. O mal faz parte
intrínseca de um mundo ou das criaturas criadas. Tudo o que é criado é limitado
e a limitação faz parte da sua essência. Não pode existir um mundo sem mal
porque faz parte essencial do mundo a sua limitação, que inclui o mal. Deus não
pode criar um mundo perfeito
O dilema de Epicuro não tem em conta este pressuposto e aí reside a
sua falha. Realmente se não houvesse uma falha qualquer, o dilema de Epicuro
deixava Deus em maus lençóis. Por isso foi inventada a teodiceia, a ciência que
pretende justificar Deus. Mas afinal Deus não pode querer nem tem poder perante
as contradições. Um mundo perfeito não é possível porque seria contraditório. O
nosso mundo, porque é imperfeito, não pode funcionar sem que o mal se manifeste.
Mas esta solução leva a outra dificuldade de fundo. Se nós somos
finitos, como é possível obter uma salvação eterna?
Bom, perante esta questão é melhor calarmo-nos até porque ninguém sabe
o que se passa no Além. Mas podemos ter algum vislumbre com a ideia da tensão
para transcendência, contida na afirmação de Pascal: “O homem transcende
infinitamente o homem”. Este “infinitamente” não sabemos onde nos pode
conduzir. Segue-se uma longa citação de um velho amigo. É longa mas vale a
pena, espero eu. “Porque o corpo parece ter sido sempre o lugar da imanência. E
a transcendência parece ser, parece ter sido sempre, o lugar sem espaço (se é
que pode haver um lugar sem espaço) onde não cabe nem pode caber o corpo. Ora é
precisamente este nó que Anselmo Borges (no livro Corpo e Transcendência) nos
convida a dar com este livro e com este título: pensar o corpo (pensar o ser
humano no seu corpo) como uma tensão para a transcendência, ou seja, como
paixão e vertigem para se ultrapassar, num salto para o desconhecido, já que o
que nos transcende a nós e ao nosso corpo, ou em sentido mais rigoroso, o que
nos transcende a nós no nosso corpo, é-nos desconhecido e, por isso,
inscreve-se no mistério mais profundo do ser; mas esse é um convite para
pensar, ao mesmo tempo, a transcendência na sua co-implicação no corpo e com o
corpo… É pelo corpo que o homem se inscreve na história e no tempo. Como na
história e no tempo se inscrevem as crenças na sua relação com o sagrado e na
sua aspiração ao absoluto. Nessa inscrição se joga a dialéctica entre a
finitude e a infinitude que nos marca na nossa mais profunda essência e que
marca a relação com a transcendência nos rostos históricos das diversas
religiões… (Há) uma mediação do tempo, onde o mistério da morte continua a desempenhar
o papel de grande desencadeador de todas as perguntas e a abertura à
transcendência se inscreve mais uma vez como vislumbre do tempo para além do
tempo e como horizonte escatológico de um “último” que o homem não pode dominar
porque permanentemente lhe escapa e que apenas pode intuir como aquele para que
o mundo está aberto, tanto quanto “ele”, que as religiões nomeiam “Deus”, está
aberto ao mundo” (João M. André na apresentação do livro referido).
Também João Paulo II faz referência a esta tensão: “a família tem a missão de se tornar cada vez mais aquilo
que é, ou seja, comunidade de vida e de amor, numa tensão que, como para cada
realidade criada e redimida, encontrará a plenitude no Reino de Deus”
(Familiaris Consortio, 17).