divórcio ou casamento eterno?...

2013-06-13

Discurso escatológico


Voltando aos textos bíblicos que mais me influenciaram, escolhi para hoje o discurso escatológico, isto é, discurso sobre as “últimas coisas” de S. Mateus (Mt 25,31-45). No fim dos tempos (“Quando o filho do homem vier na sua glória”), todos os povos (panta ta ethne) vão ser julgados, indo uns para a sua direita, as ovelhas, e outros para a esquerda, os cabritos, para serem premiados ou condenados segundo o seu comportamento para com os outros, especialmente os mais pobres.
Mais uma vez ficamos baralhados com as palavras de Jesus. Quando se esperaria que os premiados fossem os que mais orações ou actos litúrgicos tivessem realizado, não há qualquer referência directa a essa dimensão. Aliás Jesus já avisara que “Nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu” (Mt 7,21). Mas não se trata apenas da dimensão vertical, da relação para com Deus. Há também uma razão horizontal: “Se fores apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão depois volta para apresentar a tua oferta” (Mt 5,23-24).
E sobre que acontecimentos iremos ser julgados? Sobre o modo como acolhermos os outros, sobre o modo como cuidarmos o nosso próximo: dando pão a quem tem fome, água a quem tem sede, acolhendo quem peregrina, vestindo a quem estava nu, visitando quem está doente ou recluso. Coisas tão simples, não é? Parece, pelo menos! Esta lista de direitos humanos abrange os fundamentais direitos de sobrevivência. Mas isso só parece simples se for levado à letra. Daí que um primeiro cuidado a ter é fazer uma leitura actual. Foi o que fez o Concílio: “Simultaneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa” (GS 26). Estes são os direitos básicos. Esta é a tradução para os dias de hoje da afirmação de Jesus.
Este é o critério para entrar no Reino de Deus. Se este é o critério, então os pobres são os porteiros do Reino de Deus. Quem diria? Os mais esquecidos e abandonados pela sociedade, pelos governantes, os que ninguém conhece, são esses que irão abrir-nos a porta do Céu. No Reino de Deus é assim: como os que mais precisam são os que menos têm, são estes que têm a prioridade.
“É preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parábola do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus” (DCE 15). Afinal o critério último para a entrada no Reno de Deus é a consideração que se tem ou não pela pessoa humana. Como olho eu para os outros? A sua dignidade de pessoa está presente nas decisões que tomamos? Tudo se resume a colocar a pessoa no centro da organização e regulamentação sociais.
Mas Jesus disse mais. Esses pobres, famintos, sedentos, nus, doentes são o próprio Jesus: o que fizerdes aos pequeninos é a mim que o fazeis. Tudo lhes deve ser feito como se fosse ao próprio Jesus. Isto leva a uma ligação muito íntima entre o amor a Deus e o amor ao próximo: “Nela (na passagem da 1Jo 4,20) se destaca o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao próximo: um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. O citado versículo joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao próximo é uma estrada para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo nos torna cegos também diante de Deus.” (DCE 16).
Por isso, é que não basta dizer “Senhor, Senhor”. Por isso, é que S. João insistia: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18).
A fé aparece assim como consequência das obras. “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do alimento quotidiano e um de vós lhe disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhe dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitaria? Assim também a fé: se ela não tem obras está completamente morta” (Tg 2,14-17).

Todas estas obras que ficaram conhecidas por “obras de misericórdia” são não só o critério para a entrada no Reino de Deus, mas também os sinais desse mesmo Reino. Onde esses sinais existirem está a acontecer o Reino de Deus, está a construir-se o Reino de Deus. Há duas afirmações evangélicas explícitas que o confirmam. Quando João Baptista manda os discípulos a Jesus para saber “se és tu o que hás-de vir ou devemos esperar outro”, a resposta é clara: “Ide e dizei a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres” (Mt 11,3-4). A mesma citação de Isaías é feita na apresentação pública de Jesus em Nazaré (Lc, 4,18-21).
Poder-se-á retorquir que não há paralelismo ente as duas situações: numa fala-se em fome e sede e na outra com cegos e coxos. Formalmente não há paralelismo, mas substantivamente em ambas temos situações de pobreza, situações vividas pelos pobres. Porque Jesus deu o exemplo – “para que assim como eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15) – todos os seus discípulos devem “lavar os pés” aos outros, devem matar a fome e a sede aos necessitados, devem fazer com que os cegos vejam e os coxos andem. Ao actuar assim estamos a manifestar e a construir o Reino.
Também eu me senti empurrado por estas palavras a ajudar os outros, de acordo com os meus talentos e as minhas limitações. Na fase em que me aprestava para iniciar a minha vida profissional, estas reflexões foram muito importantes para orientar o meu futuro.