Discurso escatológico
Voltando aos textos bíblicos que mais me influenciaram, escolhi para
hoje o discurso escatológico, isto é, discurso sobre as “últimas coisas” de S.
Mateus (Mt 25,31-45). No fim dos tempos (“Quando o filho do homem vier na sua
glória”), todos os povos (panta ta ethne)
vão ser julgados, indo uns para a sua direita, as ovelhas, e outros para a
esquerda, os cabritos, para serem premiados ou condenados segundo o seu
comportamento para com os outros, especialmente os mais pobres.
Mais uma vez ficamos baralhados com as palavras de Jesus. Quando se
esperaria que os premiados fossem os que mais orações ou actos litúrgicos
tivessem realizado, não há qualquer referência directa a essa dimensão. Aliás
Jesus já avisara que “Nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do
Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu” (Mt 7,21).
Mas não se trata apenas da dimensão vertical, da relação para com Deus. Há
também uma razão horizontal: “Se fores apresentar uma oferta sobre o altar e
ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua
oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão depois
volta para apresentar a tua oferta” (Mt 5,23-24).
E sobre que acontecimentos iremos ser julgados? Sobre o modo como
acolhermos os outros, sobre o modo como cuidarmos o nosso próximo: dando pão a
quem tem fome, água a quem tem sede, acolhendo quem peregrina, vestindo a quem
estava nu, visitando quem está doente ou recluso. Coisas tão simples, não é?
Parece, pelo menos! Esta lista de direitos humanos abrange os fundamentais
direitos de sobrevivência. Mas isso só parece simples se for levado à letra. Daí
que um primeiro cuidado a ter é fazer uma leitura actual. Foi o que fez o
Concílio: “Simultaneamente, aumenta a consciência da
eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os
seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto,
tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida
verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher
livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao
trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir
segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à
justa liberdade mesmo em matéria religiosa” (GS 26). Estes são os direitos
básicos. Esta é a tradução para os dias de hoje da afirmação de Jesus.
Este é o critério para entrar no Reino de
Deus. Se este é o critério, então os pobres são os porteiros do Reino de Deus.
Quem diria? Os mais esquecidos e abandonados pela sociedade, pelos governantes,
os que ninguém conhece, são esses que irão abrir-nos a porta do Céu. No Reino
de Deus é assim: como os que mais precisam são os que menos têm, são estes que
têm a prioridade.
“É preciso, enfim, recordar de modo
particular a grande parábola do Juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o
critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida
humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos,
forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. «Sempre que fizestes isto a um destes
meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao
próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e,
em Jesus, encontramos Deus” (DCE 15). Afinal o critério último para a entrada
no Reno de Deus é a consideração que se tem ou não pela pessoa humana. Como
olho eu para os outros? A sua dignidade de pessoa está presente nas decisões
que tomamos? Tudo se resume a colocar a pessoa no centro da organização e
regulamentação sociais.
Mas Jesus disse mais. Esses pobres, famintos, sedentos, nus, doentes
são o próprio Jesus: o que fizerdes aos pequeninos é a mim que o fazeis. Tudo
lhes deve ser feito como se fosse ao próprio Jesus. Isto leva a uma ligação muito
íntima entre o amor a Deus e o amor ao próximo: “Nela
(na passagem da 1Jo 4,20) se destaca
o nexo indivisível entre o amor a Deus e o amor ao próximo: um exige tão
estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o
homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar. O citado versículo joanino
deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao próximo é uma estrada
para encontrar também a Deus, e que o fechar os olhos diante do próximo nos torna
cegos também diante de Deus.” (DCE 16).
Por isso, é que não basta dizer “Senhor,
Senhor”. Por isso, é que S. João insistia: “Filhinhos, não amemos com palavras
nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo 3,18).
A fé aparece assim como consequência das
obras. “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver
obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem
nus e precisarem do alimento quotidiano e um de vós lhe disser: «Ide em paz,
tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhe dais o que é necessário
ao corpo, de que lhes aproveitaria? Assim também a fé: se ela não tem obras está
completamente morta” (Tg 2,14-17).
Todas estas obras que ficaram conhecidas por
“obras de misericórdia” são não só o critério para a entrada no Reino de Deus,
mas também os sinais desse mesmo Reino. Onde esses sinais existirem está a acontecer
o Reino de Deus, está a construir-se o Reino de Deus. Há duas afirmações
evangélicas explícitas que o confirmam. Quando João Baptista manda os
discípulos a Jesus para saber “se és tu o que hás-de vir ou devemos esperar
outro”, a resposta é clara: “Ide e dizei a João o que vedes e ouvis: os cegos
vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres” (Mt 11,3-4). A mesma citação
de Isaías é feita na apresentação pública de Jesus em Nazaré (Lc, 4,18-21).
Poder-se-á retorquir que não há paralelismo
ente as duas situações: numa fala-se em fome e sede e na outra com cegos e
coxos. Formalmente não há paralelismo, mas substantivamente em ambas temos
situações de pobreza, situações vividas pelos pobres. Porque Jesus deu o exemplo
– “para que assim como eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15) – todos os seus
discípulos devem “lavar os pés” aos outros, devem matar a fome e a sede aos
necessitados, devem fazer com que os cegos vejam e os coxos andem. Ao actuar
assim estamos a manifestar e a construir o Reino.
Também eu me senti empurrado por estas palavras
a ajudar os outros, de acordo com os meus talentos e as minhas limitações. Na
fase em que me aprestava para iniciar a minha vida profissional, estas
reflexões foram muito importantes para orientar o meu futuro.