divórcio ou casamento eterno?...

2010-06-05

Palavras infelizes

A propósito de algumas considerações de D. José Policarpo numa entrevista à Renascença, escrevi um dos meus artigos quinzenais que passo a reptoduzir.

A CAPACIDADE DE DIALOGAR
Quando me preparava para continuar a minha reflexão sobre os “inimigos na/da Igreja” fui interpelado pelas palavras de D. José Policarpo sobre o Presidente da República.
Começo por recordar o quanto marcou a minha formação a sua tese de doutoramento em Teologia Dogmática – Sinais dos tempos – e outros dos seus muitos escritos, homilias, discursos que fui lendo e meditanto. Admiro-o enquanto homem de diálogo, muito na linha da encíclica de Paulo VI, Ecclesiam suam: “diálogo sem condições” e respeitador do outro, mas sem nunca ceder ou trair as suas convicções. E até penso que terá sido por forte influência sua que foram publicadas algumas das Cartas Pastorais mais dialogantes com a sociedade portuguesa. Por isso, me causou grande surpresa a sua afirmação que transcrevo da Ecclesia: se “usasse o veto político” na lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, acredito que “ganhava as eleições presidenciais do próximo ano”. Estas palavras são mais de comentador político do que responsável qualificado da Igreja. As repercussões políticas são evidentes como se confirma pela rápida movimentação que logo se multiplicou em termos de presidenciais.
Dito isto, parecem-me mais interessantes outras palavras suas – “Pela sua identidade cultural, de católico, penso que precisava de marcar uma posição também pessoal” – porque me transportam para o difícil dilema dos católicos entre a consciência e a obediência.
Sempre defendi que todo o Povo de Deus, particularmente os seus primeiros responsáveis, tem o direito e a obrigação de proclamar “oportuna e inoportunamente” (2Tim 4,1) a mensagem evangélica sobre a pessoa e a sociedade. Tem o direito e o dever de a propor, mas não de a impor, aliás uma ideia muito cara a D. José Policarpo e agora reafirmada, entre nós, pelo Papa.
Que ele apele à consciência cristã dos católicos e coerência de vida é sua missão. Simplesmente cada um será julgado pela coerência com a sua consciência, não pelos bispos ou cardeais, mas por Deus: “A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16). Os católicos (já) não podem ser vistos como mera manus longa da hierarquia, mas “antes, esclarecidos pela sabedoria cristã, e atendendo à doutrina do magistério, tomem, por si mesmos, as próprias responsabilidades” (GS 43). Este viragem conciliar não é fácil de perceber sobretudo numa sociedade democrática onde a pluralidade das mediações da fé é um bem: “Nas diferentes situações concretas e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes” (OA 50). O Magistério tem abordado esta questão, complexa e difícil, sobretudo para os que têm a coragem de participar activamente na “vida política”. Por exemplo: “Viver e agir politicamente em conformidade com a própria consciência não significa acomodar-se passivamente em posições estranhas ao empenho político ou numa espécie de confessionalismo; é, pelo contrário, a expressão com que os cristãos dão o seu coerente contributo para que, através da política, se instaure um ordenamento social mais justo e coerente com a dignidade da pessoa humana”.
Mas aqui podem surgir conflitos de consciência. Certamente que “um católico não pode pensar em delegar noutros o empenho que, como cristão, lhe vem do evangelho de Jesus Cristo de anunciar e realizar a verdade sobre o homem e o mundo”. Mas o problema que se coloca é como saber “a verdade sobre o homem e o mundo”. Não basta falar da verdade. O que é a verdade sobre a dignidade da pessoa? Jesus falou muito da dignidade da pessoa, colocando-a acima do sábado (Mc 2,27), da lei (Jo 8,3-11), do culto (Mt 5,23-24) e até pôs a vivência da caridade acima da doutrina sobre a caridade (Lc 10,29-37). Além disso, há uma hierarquia de verdades (UR 11). Primeiro temos um núcleo absolutamente indiscutível de que o Credo é um bom resumo. Mas depois, saídos da esfera dogmática, entramos noutras esferas, nomeadamente da moral, que é hoje um campo fértil em desafios e conflitos para muitos católicos, especialmente os “políticos”. Claramente que a opinião do Magistério deve ser respeitada e tida na devida conta, mas isso não resolve o problema da consciência de cada um, que procurou “formar bem” a sua consciência à luz do Evangelho e tendo em conta os ensinamentos do Magistério. Por exemplo, como conciliar estas afirmações: “todo o acto sexual deve ser aberto à vida” (HV 11) e os casais “podem encontrar-se numa situação em que o número de filhos, pelo menos por um tempo, não pode aumentar e em que só dificilmente se mantêm a fidelidade do amor e a plena comunidade de vida. Quando a intimidade conjugal se interrompe, pode correr perigo a fidelidade e estar comprometido o bem dos filhos” (GS 51) e “são os esposos quem, em última instância, devem propor este juízo (sobre ter ou não filhos) perante Deus” (GS 50)?
Hoje ao deputado ou ao governante colocam-se também muitos problemas perante a dificuldade em perceber o que é realmente melhor para defender, respeitar e promover a dignidade humana, o bem comum e a coesão social, obrigação primeira da sua missão. Nestes momentos de decisão, a consciência de cada um é que deve contar, pois é por ela que seremos julgados no fim dos tempos. Quem o disse, entre outros, foi S. Tomás, há já muitos anos: “Recebida uma ordem encontramo-nos num dilema: se formos contra a nossa consciência, pecamos; se desobedecermos ao nosso superior, também pecamos. Dos dois, o primeiro é pior pois que o ditame da consciência vincula mais que o decreto da autoridade exterior”.
E quem de nós está em condições de avaliar a consciência dos outros, apenas podendo ver os seus gestos e atitudes?

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