divórcio ou casamento eterno?...

2006-08-25

CV(15) Anti-Tântalo

Nesta semana de tratamento que passei no hospital, o principal sintoma foi uma sensação generalizada de enjoo.
Esta situação não é propriamente dolorosa mas muito desagradável: não apetece fazer nada de nada. Não é só a questão da comida, mas de tudo o resto: sair da cama, falar com o vizinho do lado, ler o jornal. Tudo é complicado. E tudo tem de ser decidido com grande esforço.
Mas o problema da alimentação é paradigmático. “No estudo que fiz”, como dizia um pedreiro que trouxe lá em casa, fiquei com a sensação de que o processo de alimentação fica fragmentado e dissociado nas suas várias etapas. Senti cada uma das várias etapas, que normalmente fazemos sem dar por nada, perderem a sequência causal. Primeiro a sensação de fome, que não aparece. Mais, mal sentia vir o carrinho da comida ao fundo do corredor logo me vinha a vontade de vomitar, sensação potenciada pelo crescente cheiro da comida e, imagine-se, pelo próprio tilintar dos talheres. Depois levar a comida à boca: aqui senti um verdadeiro bloqueio (e noutro capítulo irei falar de bloqueios) e desejava que estivesse alguém comigo na hora de comer para me forçar a levar a comida à boca. Introduzida a comida na boca, seguia-se mais uma decisão: a de mastigar; lá se ia mastigando, mas a comida enrolava-se na boca, como se “não soubesse” que devia ser normalmente engolida depois de ensalivada. Daqui que a decisão seguinte fosse a de engolir: às vezes passava, outras vezes voltava para trás. A taça com um plástico é uma oportuna companhia nestes momentos.
Além disso, vivia sonhos ou pesadelos, em que sempre apareciam pratos de comida que me eram trazidos em tabuleiros e que alguém me aproximava da boca. E eu tentava virar a cara e fechar os olhos, mas a comida ali estava com cheiros intensos e o estômago em crescentes golfadas de revolta. E isto, uma vez, duas vezes, n vezes, durante todo o sono, mesmo depois de ter sido interrompido várias vezes para utilização do urinol. Foi um verdadeiro suplício anti-Tântalo.
Com este paleio todo parece que passei um verdadeiro tormento. Algumas dificuldades senti, mas houve colegas que sofreram bem mais: um ficou profundamente perturbado e afastado deste mundo; outro além disso até tentou arrancar o catéter.
No entanto, naqueles momentos a serpente sussurrava-me ao ouvido aquele mal dito (mal dito: duas palavras) ditado popular: “Com o mal dos outros posso eu bem” e o sussurro era tão melífluo que só depois de algum tempo reparei que se tratava de mais uma machadada, e bem profunda, na solidariedade com os meus colegas de camarata e de caminhada.

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