CV (20) Casa ambígua
As minhas relações com o Hospital são assim uma espécie de amor-ódio.
A primeira reacção, quando vejo aquele pavilhão, é-me trazida pela memória, que, como referi na crónica anterior, me anda a ser um pouco infiel: não esperava isso dela. Não é bem a casa das dores, mas é a casa onde me sinto enjoado, onde nem sempre sei como passar o tempo, saltitando entre o passeio pelo corredor, onde além dos cheiros gastronómicos se juntam os do éter e outros que não sei identificar, o recostar-me na cama, o deitar-me entre os lençóis, o ritual horário de ir à casa de banho, tanto é o líquido que continuamente estou a meter no corpo via endovenosa (graças o amigo Cireneu que me acompanha sempre).
Depois penso que afinal aquela é a casa da salvação: é ali que vou receber as doses consideradas necessárias para poder eliminar estas células malignas que me procuram devorar por dentro.
Esta dimensão libertadora deveria objectivamente sobrepor-se à primeira, mas devo dizer que isso nem sempre tem acontecido.
E dei comigo a pensar que esta contradição intrínseca acontece também na maneira como a(s) comunidade(s) cristã(s) encara(m) o mundo. Para uns, o mundo continua a ser o inimigo da alma (da clássica trilogia: "mundo, demónio e carne") e, por extensão, da Igreja; para outros, é (também) o local onde acontece a salvação de Jesus Cristo, o local onde acontece a revelação de Deus que nos fala através dos acontecimentos do dia dia. Claro que o mundo tem estas duas dimensões e nada mais bonito que estas palavras de Paulo VI: "No coração do mundo permanece o mistério do próprio homem, o qual se descobre filho de Deus, no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito" (OA 37).
De qualquer modo, cada uma destas atitudes obriga a estratégias pastorais diferentes:
- se o mundo é inimigo da Igreja, então temos de nos defender dos ataques sistemáticos à Igreja desencadeados conscientemente por alguém que quer destruir a Igreja: a crise moral resulta de um ataque propositado à moral da Igreja; para sobreviver temos de utilizar uma pastoral apologética, de nos unir e cerrar fileiras na defesa da nossa "honra e dignidade";
- se o mundo é o local onde Deus nos fala através dos sinais dos tempos, então talvez a crise moral seja multicausal, não seja comandad por forças ocultas mas bem identificadas nem dirigidas expressamente contra a Igreja, mas o resultado de uma evolução da qual ninguém é especialmente culpado; assim sendo deveríamos ter uma pastoral profética para discernir os sinaisa dos temos (cf. GS 4; 11; ...) e uma pastoral da solidariedade para darmos as mãos e nos opormos em conjunto a estas forças destrutivas que não atacam apenas aIgreja mas o conjunto da humanidade, gerando injustiças, desigualdades, exclusões, pobrezas, fomes,...
Uma posição leva-nos a fecharmo-nos ao mundo e aos outros, a recolhermo-nos num ghetto, desconfiados, pessimistas, cheios de medo, às vezes até rancorosos; a tal posição apologética;
A outra leva-nos a abrir-nos aos outros a estar optimistas e confiantes porque sabemos que Deus fala através de todos os nossos irmãos: a tal pastoral da solidariedade.
Ambas as leituras serão legítimas; ambas as respostas serão legítimas; simplesmente conduzem, a relacionamentos diferentes e até antagónicos. Teremos de ver qual dessas respostas é mais consistente com a missão da Igreja: testemunhar com alegria e com amor aos outros Jesus Cristo e sua mensagem libertadora.
Disso depende a credibilidade do nosso testemunho.
4 Comentários:
Caro Zé dias : mais uma vez acho esta sua intervenção brilhante em sobretudo toralmente adequada à en(cruz)ilhada que atravessa a igreja, em termos pastorias, muito concretamente de pastoral familiar. Vou colocar parte do seu post no me blogue, se não levar a mal.
21/9/06 13:29
Zé Dias, querido amigo,
disse-nos a Adriana que você andava em tratamentos. E foi ela também que nos deu a pista do seu blog - que vamos lendo com muito interesse, alternando sentimentos segundo o tema que você aborda e o estado de espírito que você transmite. Obrigada por nos deixar estar tão perto de você, por nos deixar participar, dessa maneira, de um percurso seu que tem muito de sofrimentos e de heroísmos.
Já comentámos inúmeras vezes com amigos nossos – talvez nunca com você, – o que pensávamos e sentíamos desde quando o conhecemos. Que, por nós e para nós, você bem que poderia ser Bispo, e seria o melhor Bispo de Coimbra e arredores… Mas, cadê eleições na nossa igreja?... (No Brasil a gente diria: “morra de vontade!”.)
Continuaremos a acompanhar você com carinho e em prece.
Zé, fique com o maior abraço da paróquia!
Nós
24/9/06 11:38
Caros amigos
Para já obrigado a todos pelo carinho, solidariedade e amizade que vão demonstrando, pois como já viram sou um pouco piegas e nem sempre consigo suportar de cara alegre e "com maor" os incómodos que me vão atingindo.
Bluesmile
Ponha e disponha do que achar oportuno.
Joana
Um abraço grande para ti
Às Anonymus
Que bom ler as vossas palavras. Não quero ser bispo de Coimbra, mas gostaria que o povo de Deus tivesse oportunidade para poder pronunciar-se sobre este e outros temas. Que bom seria para o Reino de Deus que o povo de Deus fosse capaz de viver como vocês vivem e trabalham.
Para mim foi também muito bom conhecê-las. São um aguilhão que me mostra quanto pouco faço pelo Reino de Deus: falo, falo; escrevo, escrevo; mas as palavras são tão pouco!
Um muito grande abraço.
24/9/06 20:30
Como venho ganhando o habito, hoje vim aqui ler o q tao bem traduz a vivencia,à luz da fé, dos acontecimentos mais simples que lhe acontecem; mas, ao contrario do que é vulgar, ha uma expressão que me "pica" e me leva a quebrar a inercia e a mostrar a minha discordância com a sua modéstia : acha que o que escreve ou diz é de pouca importância?Pode estar seguro que é esteio para muitas, muitas pessoas, suas conhecidas e não só!
Força e coragem
Julia
25/9/06 00:05
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