CV (16) Bloqueios
Já referi a dificuldade que tinha em levar a mão com comida à boca. Sentia um verdadeiro bloqueio: mandava a mão avançar, mas ela ficava bloqueada e não conseguia arrastá-la fisicamente.
Lembro-me de que há muito anos atrás senti um bloqueio doutro tipo, mas que na altura muito me deu que pensar.
Foi depois do 25 de Abril, quando apareceu o filme “O Império dos Sentidos”. O que ia lendo levou-me a interessar-me pelo filme e a achar que devia ir vê-lo, mas a sua temática contundia com uma consciência escrupulosa marcada por uma educação religiosa clássica. Ainda me recordo de um retiro que fiz no Seminário onde o pregador, num italiano aportuguesado, repetia quase de hora a hora “quem não é casto vai ao Inferno”. Mas voltando ao filme, tive que fazer várias tentativas para me forçar a ir para a bicha e comprar o bilhete. Foi uma verdadeira violência física. Mas finalmente lá consegui.
Perante tal situação, perguntei-me: “Como é possível que a educação cristã tenha sido capaz de criar bloqueios na defesa da “castidade”, mas não tenha criado qualquer bloqueio na defesa da “justiça” e da “caridade social”, e que os grandes pecados mortais estejam ligados à esfera do sexual e não às violações da justiça e da caridade?
Alguém, muitos alguéns, ao longo da história, foram transformando o cristianismo, uma fé estruturada no amor, numa religião do anti-sexo, manipulando o próprio Evangelho.
Ainda hoje há vários vestígios dessa mentalidade. A título de exemplo, posso referir o golpe de rins que o Catecismo da Igreja Católica faz nos nº 2517 a 2533. Partindo da sexta bem-aventurança “Felizes os puros de coração porque verão a Deus” (2518), rapidamente abandona essa linha de reflexão, para naquilo que os gramáticos chamam um anacluto, mudar bruscamente de rumo e passar os restantes números a falar do 9º mandamento: a virtude e dom da castidade, a pureza do olhar, o pudor, a purificação do ambiente social que implica o respeito pelo recato, a permissividade dos costumes. Só não chamo a isto manipulação da Palavra de Deus por pudor; ficar-me-ei por “uma leitura ideológica da Palavra de Deus”.
Isto tem a ver, parece-me, com a chave de fundo. E volto a perguntar: Como é possível que, à entrada do terceiro milénio, fazer um Catecismo estruturado (e refiro-me à III Parte) nos mandamentos, uma lógica do Antigo Testamento e dos povos semitas de há quatro ou cinco milénios, em detrimento da lógica das Bem-avanturanças que são o elemento estruturante da mensagem de Jesus? Diria mais, enquanto as Bem-aventuranças exigem um estilo de vida “à moda” de Jesus Cristo, pois partem da fé na Pessoa de Jesus Cristo, os dez Mandamentos apontam para uma religião casuística, de doutrinas, de princípios, de ritos, onde uma opção fundamental de vida não é exigida nem sequer há muito de especificamente cristão, tirando a primeira tábua.
3 Comentários:
Concordando, parcialmente, com o post, deixo a minha achega...
Os Dez Mandamentos mantêm a sua actualidade na síntese que Jesus faz deles: "amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma
e com toda a tua mente" e "ao teu próximo como a ti mesmo" (Mt 22, 37-39). São levados ao seu significado máximo, mas não deixam de ser pedagógicos num caminho de procura e de vivência cristã. Bem sabemos que nem todos os cristãos se dão ao trabalho de ter uma consciência crítica: ou porque não são capazes ou porque simplesmente nem tentam... pois dá muito trabalho. Daí, que as Bem-aventuranças se tornem completamente imperceptíveis, e seja mais "fácil" e "cómodo" cumprir algo que está mandado. Gostei muito da foto da Sé da alta, farta, forte, fria, fiel e formosíssima cidade.
26/8/06 13:46
Caro amigo Peregrino
Era para continuar o nosso tão interessante dilogo aqui entre nós, mas resolvi alargá-lo a todos e torná-lo mais visível.Daí que tenha feito o meu comentário na página principal.
Obrigado pelo teu contributo para a minha reflexão e para o meu amadurecimento como cristão
27/8/06 23:54
Acrescento, ainda...
Aprendi, em História, que as mentalidades se mudam no TEMPO LONGO da História e são a estrutura que mais lentamente muda (mesmo quando, abusivamente, dizemos que as mentalidades estão a mudar muito depressa). Quem mais tempo viveu melhor sabe quanto é verdade não mudar muito o coração da pessoa ao longo do tempo e dos lugares.
Serve isto para testar uma hipótese: pelo mundo fora, quantos bispos da Igreja são de cultura judaico-greco-latina? Então por que te admiras desta catequética visão pecaminosa da sexualidade e desta visão tolerante do lucro injusto e do egoismo social?
28/8/06 15:08
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