“Comer como pão”
Nos meus tempos de seminarista um dos autores que estudei foi o Padre António Vieira, um tratador exímio da arte de escrever. Desse tempo lembro especialmente o Sermão da Sexagésima e o Sermão aos Peixes. E também a obrigatoriedade de decorar um texto – o Estatuário – onde descreve o modo como o artista cria uma estátua, utilizando um conjunto de verbos cirurgicamente aplicados a cada gesto do artista: “ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama e fica um homem perfeito e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
Ainda se estuda o Padre António Vieira, mas mesmo assim parece ter caído em desuso e nem as recentes comemorações despertaram grande interesse no público. Do Sermão aos peixes recorda-se de vez em quando aquela passagem: “Não vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fosse ao contrário era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastaria um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande”.
Vem isto a propósito da crónica do Anselmo Borges (DN 31.Maio), onde faz um conjunto de citações deste Sermão, mostrando o que diria hoje o Padre António Vieira a propósito das desigualdades sociais, da aplicação da Justiça, da subida dos preços alimentares ou do comportamento da ASAE. Vale a pena ler esta pequena antologia. Mas a citação que mais me parece adequada aos tempos de hoje é a que passo a citar: “E de que modo (os grandes) devoram e comem? Não como os outros comeres, mas como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre continuamente se come: e isto é o que padecem os pobres. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos”.
1 Comentários:
Ó Zé, isto é actualíssimo. O P. Ant. Vieira hoje não teria de acrescentar nada. Já disse tudo há uns 450 anos. Nada mudou debaixo do sol. Isto é, mudou para pior, com requinte, com subtileza...
FF.
31/5/08 23:03
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