Sociedade atabalhoada
As recentes declarações do bastonário da Ordem dos Advogados vieram chamar a atenção para aquilo que muitos pensamos mas não temos nomes nem dados concretos para ter a coragem de falar. Não sei se o modo que ele utilizou é o mais adequado numa sociedade onde particularmente os advogados conhecem bem os mecanismos legais para fazer avançar estes processos sempre difusos e difíceis de clarificar.
De qualquer modo, disse-o e como figura pública colocou a questão e a necessidade de clarificar muita coisa que é bom que seja clarificada em nome da transparência e da cidadania.
Vamos ver o que se segue.
De qualquer modo, este estado de coisas vai-se mantendo e degradando porque somos uma sociedade onde poucos assumem a sério o seu trabalho e o seu compromisso cívico. Há dias publiquei no Correio de Coimbra uma crónica onde classificava a nossa sociedade como sociedade atabalhoada, e nesta situação todos somos culpados: uns por acção, outros por demissão.
Aqui reproduzo esse meu comentário.
ATÉ CIMA… ATÉ CIMA!
Os balanços do fim de ano preocupam-se geralmente com as grandes questões e estão demasiado centrados em perspectivas partidárias ou ideológicas. No entanto, estes factos demasiado brilhantes no céu dos comentários podem ofuscar realidades aparentemente insignificantes mas talvez com uma maior influência capilar no evoluir da sociedade.
Olhando para a nossa actual maneira de ser, diria que nos falta uma cultura do “fazer bem”. O que fazemos, faz-se muitas vezes como calha, atabalhoadamente, sem preocupação por fazer bem feito. Um simples exemplo: já precisei de chamar um técnico para um pequeno trabalho que implicava furar uma parede ou colocar um cabo eléctrico. E verifiquei o seguinte: uns faziam o trabalho, recebiam e iam-se embora; outros, poucos e sobretudo se já caminhavam para a terceira idade, antes de receber, pediam uma vassoura e limpavam o chão. Não se trata de tempo, pois este último exercício demorava meio minuto, um minuto. Trata-se de uma cultura diferente e que se vai perdendo: fazer bem feito o que se faz. Age quod agis , “o que fizeres fá-lo bem feito”já diziam os Romanos.
Claro que esta cultura do “fazer bem feito” implica disciplina interior, capacidade de resistir à tentação de considerar um trabalho apenas no seu aspecto imediato (fazer o furo na parede e passar o fio), ignorando as suas consequências (limpar o lixo que o furo produziu).
Esta exigência interior é primeiro que tudo uma exigência comigo próprio. Sem ela não é possível construir uma sociedade mais humana, pois a sociedade é antes de mais o resultado do esforço pessoal e comprometido de todos os cidadãos.
E só tendo este estado de espírito poderei ser exigente com os outros. Ora o que verificamos é que muitas das nossas chefias não têm para consigo próprias esta exigência, pelo que não podem passá-la para os seus serviços e muito menos motivar nesse sentido os seus funcionários. Talvez por isso, deixou de haver brio em ter um serviço com qualidade, isto é, capaz de “fazer bem” aquilo que lhe compete. No entanto, um serviço competente é mais eficiente, mais acolhedor, mais capaz de responder às necessidades do bem comum. É mais produtivo e com menores custos porque reduz erros e repetições desnecessárias, onera menos cada um dos funcionários e cria um bom ambiente porque todos fazem bem o que lhes compete, serve melhor os cidadãos porque dá uma resposta mais rápida e eficaz. Por tudo isto é fácil concluir que esta atitude é uma condição indispensável para a aplicação da justiça social. É, pois, não só um exercício de cidadania mas de justiça e de respeito pelos direitos do outro.
Portanto, esta exigência aplica-se a todos os cidadãos, incluindo naturalmente deputados e ministros. Embora uma das funções dos governos seja criar as condições para que todos “façam bem”, quantas leis e quantas medidas parecem ou são atabalhoadas, retirando credibilidade a quem as fez, facilitando o seu incumprimento e pondo em causa a construção do bem comum. Veja-se a recente lei do tabaco e as movimentações oportunistas para fugir a ela. A própria aplicação da lei é por vezes atabalhoada e discriminatória: crianças são tiradas aos pais afectivos e entregues aos parentes biológicos sem ter em conta a sua fragilidade e saúde psicológicas; uma figura pública prevaricadora tem, por norma, um tratamento diferente da do cidadão comum. A primeira vítima é manifestamente o cidadão discriminado. Mas também a justiça social sai gravemente lesada.
Este exercício de “fazer bem feito” adquire para os cristãos uma importância teológica suplementar mas estruturante. M. Quoist gosta de contar a história de uma militante da JOC que fazia assim a leitura do episódio das bodas de Caná: “Penso nos criados: se eles não tivessem feito bem o seu trabalho, quer dizer, enchido as tulhas “até cima”, como explica o Evangelho, Jesus teria feito menos vinho. Assim, durante a minha semana, quando me vem a vontade de atabalhoar um trabalho, repito a mim mesma “até cima… até cima!” para que, deste trabalho e do meu esforço, Jesus possa fazer bom vinho”. Isto é, só quando cada um de nós fizer bem o seu trabalho é que Deus pode cumprir em plenitude o seu. Pode parecer estranho, mas Deus quer precisar de nós para construir a história e para O tornar visível entre as pessoas.
Infelizmente esta cultura não se cria por decreto. Infelizmente também não se ensina hoje, não se exige hoje e não se testemunha hoje. É urgente, portanto, que os pais, os professores, os catequistas, a comunicação social falem disto, insistam, lhe dêem a importância que ela tem. É preciso fazer campanhas como as dos tempos eleitorais ou da luta contra o tabaco ou na educação rodoviária. Deve começar em casa, mas continuar nas escolas, nos grupos culturais, nas Igrejas de modo a ser tão natural como o ar que respiramos. Ou se transforma num hábito ou não funciona.
Não sei quantificar a influência no PIB, no défice e nesses parâmetros tão acarinhados pelos políticos, mas uma sociedade de atabalhoados é uma sociedade atabalhoada, sem objectivos, onde cada um trabalha ao seu ritmo, deixando o trabalho inacabado, a sobrar para os outros.
O cidadão assim (e são tantos) atrasa a construção de uma sociedade justa. Um cristão assim (e são tantos) atrasa a chegada do Reino de Deus. Por isso, o anjo do Senhor é tão violento com ele: “porque és morno – nem frio nem quente – vou vomitar-te da minha boca” (Ap 3,16).
1 Comentários:
Pode não ter nada a ver com o assunto aqui tratado, mas porque a cultura é um “bem” importantíssimo a defender, convido-vos a participarem nos VI Jogos Florais de Avis, que já são uma referência no panorama cultural português. Sendo uma iniciativa da Amigos do Concelho de Aviz-Associação Cultural, o regulamento está disponível em www.aca.com.sapo.pt
Concorram e boa sorte.
Saudações culturais.
P’la ACA,
Fernando Máximo!
5/2/08 01:58
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