Medo de sermos nós próprios
Tinha pensado partilhar o meu artigo que vai sair hoje no Correio de Coimbra. Mas como ele está muito relacionado com o anterior que não trouxe aqui, pareceu-me melhor recordar este último. É um tema que me preocupa muito. Vivemos num tempo e numa sociedade onde parece imperar o medo e não me refiro tanto às inseguranças de várias ordens, mas aos medos interiores: o medo de tomar posição, o medo de lutar pelo que é justo, sempre com o medo de perder alguma coisa. No fundo, é a minha conclusão, temos medo de sermos nós próprios, de procurar cumprir a vocação e a missão que cada pessoa, como “sujeito livre e consciente" da história, traz adossadas a si. Desde miúdo me interrogava se a vida era a vida a que eu assistia na minha aldeia: as pessoas passavam o ano a trabalhar para terem milho, batatas, hortaliça, para poderem comer, crescer e reproduzir-se e… pelo menos aparentemente não havia mais nada. Tenho a sensação que ainda hoje a maior parte dos cidadãos, apesar de tantas mudanças, continuam ainda na prática a reproduzir este esquema. Certamente estou a ser injusto… mas que sinto qualquer coisa assim é verdade!
Para os mais pacientes aí vai o pastelão do artigo publicado:
DEMOCRACIA QUOTIDIANA
A organização não governamental Demos publicou um estudo em que avaliou a qualidade da democracia nos países da União Europeia. A novidade desta avaliação está em que são considerados não apenas os aspectos formais da democracia (por exemplo, votar), mas introduz mais cinco parâmetros abordando muitos outros aspectos, nomeadamente a democracia laboral (por exemplo, os trabalhadores são consultados quanto às mudanças a introduzir na empresa) e até a democracia familiar (por exemplo, os filhos são ouvidos quanto se decide o local onde passar as férias).
Num universo de 25 países, Portugal ocupa um vigésimo primeiro lugar. É realmente muito pouco e diz bastante mal do nosso espírito democrático, da nossa capacidade de participar na construção do país, da nossa cidadania e da nossa concepção de bem comum. O estudo mostra também que os primeiros lugares são ocupados pelos países nórdicos e que “o índice de cidadania quotidiana” vai diminuindo conforme se desce no mapa e se aproxima dos países latinos. Há também quem acrescente um argumento religioso já antigo. Os protestantes tem um sentido social muito mais empenhado do que os católicos, muitas vezes apenas preocupados com a sua salvação pessoal. Rahner falava até do “egoísmo da salvação”.
Deixando para os historiadores e sociólogos a análise da validade objectiva destes argumentos já clássicos, há outros aspectos que podemos considerar. Ao olharmos para o modo como vivemos, uma realidade demasiado presente parece ser o medo, que se apresenta ou se esconde sob as mais variadas formas.
Há medos, digamos, exteriores. É certo que vivemos numa sociedade complicada, onde se cruzam linhas complexas difíceis de destrinçar e logo aqui sentimos medo do que aí virá, do que nos reserva um futuro, cuja construção parece escapar-nos e do qual só esperamos más notícias. Além de complexa, é também uma sociedade de risco(s): ao lado de tanta coisa boa e de melhorias da qualidade de vida, há doenças novas, perigos tecnológicos inesperados, inseguranças que nos oprimem. Há ainda o medos dos outros, dos de dentro que só pensam nos seus privilégios e regalias; mas também dos de fora, que vêm ocupar os nossos postos de trabalho e trazer as suas ideias diferentes, as suas inseguranças disfarçadas em hábitos que mal conhecemos, o seu desejo de ter uma vida melhor mas à nossa custa, pensamos nós. Este medo tira a lucidez e a falta de lucidez acarreta a valorização do que há de negativo nos outros e a incapacidade de descobrir o muito que têm de bom. Assim mina-se a colaboração entre as pessoas e a participação efectiva na construção de uma sociedade melhor: mais justa, mais solidária, mais humana.
Mas há também medos interiores, talvez mais corrosivos e difíceis de detectar.
Muita gente tem ou parece ter medo de assumir compromissos e de tomar posição de modo consciente. Deixar andar as coisas na esperança que elas mudem ou outros as mudem é a negação do ser pessoa, pois só se pode ser pessoa sendo “sujeito consciente e livre” (ChL 37). Claro que isso acarreta incómodos. Quantos preferem não lutar pelos seus direitos para evitar essas dificuldades. Por exemplo, todos sabemos que há trabalhadores que não exigem os seus direitos porque receiam, e com razão, a perseguição, pois, apesar de terem a lei pelo seu lado, não têm, geralmente, o apoio dos colegas, que poderiam ser suas testemunhas abonatórias, mas que também eles têm medo de serem penalizados por essa sua atitude. Não basta ter a lei do nosso lado; é preciso lutar pelo seu cumprimento. Não basta exigir aos governos que façam cumprir a lei se os cidadãos não se mobilizam para a obrigarem a cumprir.
Há também quem viva angustiado com o que os outros poderão pensar de si. Numa sociedade, onde aparentemente não há regras, onde as pessoas fazem o que querem, não deixa de ser estranho este medo do que os outros poderão dizer de mim. Será a vingança de uma consciência cada vez mais amordaçada?
No fundo, trata-se de um medo mais radical, o medo de “ser eu próprio”. Faz-me lembrar uma história que ouvi, já não sei onde. Um judeu, com o avançar da idade, começou a pensar nas perguntas que Deus lhe iria dirigir quando morresse. Gostaria de se preparar bem para esse momento solene. Ia pensando, mas, apesar da sua crescente preocupação, não conseguia imaginar nada. No dia da sua morte, ao apresentar-se diante de Deus, esperou ansioso pela pergunta que tanto tentara descobrir. Deus virou-se para ele e perguntou-lhe: “Como te chamas?”. Ele respondeu muito admirado (Deus não sabia o seu nome?): “Isaac”. Então Deus, abrindo o livro dos registos, comentou: “Vamos ver se foste realmente Isaac”. Só então ele percebeu o comentário de Deus. Isaac não é apenas uma palavra. É um nome e por detrás de cada nome há uma pessoa e por detrás de cada pessoa há um projecto próprio. Deus queria ver se Isaac tinha sido mesmo Isaac, isto é, tinha sido fiel ao projecto que como pessoa lhe competia.
Parece, pois, que temos medo de sermos nós. Ser Zé Dias é diferente de ser um outro qualquer Zé. Cada um de nós, por detrás de cada nome, está sempre um ser único e irrepetível, na sua dignidade, na sua trajectória, no seu destino, no seu projecto. Sou/somos um projecto único e irrepetível.
Ter medo deste projecto, ter medo de “ser eu próprio” eis o grande drama da nossa (falta de) cidadania.
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