Bento XVI e Marx
A recente encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, é um contributo fundamental não só para a superação desta crise mas também para construir uma “humanidade nova”, que dê a centralidade à pessoa (“o maior recurso a valorizar nos países que são assistidos é o recurso humano que é o autêntico capital que se há-de fazer crescer para assegurar aos países mais pobres um verdadeiro futuro autónomo”: 58), que substitua a lógica da transacção contratual, pela lógica do dom sem contrapartidas (37), que assente na fraternidade e na solidariedade respeitando a solidariedade pois formamos uma única família humana, chamada toda ela a um desenvolvimento solidário e integral de que falava Paulo VI na Populorum Progressio.
Trata-se de um texto longo, denso e com muitos desafios e propostas. Bom seria que cristãos e não cristãos, sobretudo os homens e mulheres mais responsáveis pela organização local, nacional e internacional as reflectissem e se esforçassem por pô-las em prática.
Não é numa simples página que se pode falar desta encíclica. Certamente a ela voltarei mais detalhadamente.
Mas o que não posso para já deixar passar é aquele comentário, muito infeliz, de H. Raposo no último Expresso, que ficou (muito) “irritado” com o Papa porque “ele se põe a trazer Marx para o Evangelho” Nem mais!!!
Parece evidente que o colunista nada sabe de doutrina social da Igreja nem possivelmente do Evangelho. Caso contrário, veria que desde os primeiros documentos sociais, os Papas têm sido extremamente críticos neste capítulo. E porque os mais recentes (especialmente PP, OA, RH, LE, SRS, CA) serão mais conhecidos (!?) vou fazer só duas citações já muito velhinhas:
“Deparamos com a realidade de que a contratação do trabalho e a comercialização de quase todos os produtos se encontram nas mãos de um pequeno número de ricos e opulentos que, desta forma, impõem a essa grande multidão de proletários um jugo que em nada difere do jugo dos escravos” (Leão XIII (1891), RN 1);
“Este acumular de poderio e recursos… é consequência lógica da concorrência desenfreada, à qual só podem sobreviver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (Pio XI (1931), QA 107): “toda a economia se tornou horrendamente dura, cruel, atroz” (QA 109).
Para lá disso, ou o autor não leu a encíclica ou leu-a de modo muito distraído ou, pior ainda, tendencioso.
E para não me alongar mais faço apenas duas citações para comparação.
A primeira é do Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848), famoso pela sua frase final “Proletários de todo o mundo, uni-vos”:
“A história de todas as sociedades que existiram até aos nossos dias é a história da luta de classes. Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres e oficiais, numa palavra, opressores e oprimidos, em oposição constante, travaram uma guerra ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma guerra que acaba sempre pela transformação revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das duas classes beligerantes”. Isto é, o motor da história é a violência; é, no fundo, a lei do mais forte.
Bento XVI está continuamente a falar de caridade/amor, justiça, fraternidade, solidariedade, subsidiariedade. Por exemplo, “sem a guia da caridade na verdade, este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até agora desconhecidos e de novas divisões na família humana. Por isso, a caridade e a verdade colocam diante de nós um compromisso inédito e criativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentes dinâmicas, animando-as na perspectiva daquela «civilização do amor», cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura” (33). Isto é, o motor da história é o amor mútuo, a fraternidade universal, a solidariedade global, a caminho de uma “civilização do amor”; é, no fundo, a lei do mais fraco, baseada na gratuidade e no dom.
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