divórcio ou casamento eterno?...

2006-07-17

CV(6) A primeira noite

Tinha todas as condições para ser uma noite agradável. As primeiras análises estavam mais ou menos normais com excepção dos leucócitos que não aguentaram bem o primeiro embate e o internamento ao fim da tarde de domingo (16.Jul.06) era apenas para hidratar. Só no dia seguinte começaria o novo tratamento.
Contudo… ao fim de hora e meia de dormida, comecei a sentir atrás de mim uma barulheira martelante – tac… tac…tac… - a alta velocidade, que a perspectiva da noite ampliava, ampliava, ampliava. Aguardei, tentando perceber o que se passava: só o meu vizinho do lado estava acordado; todos os outros dormiam aparentemente num sono dos justos.
Como a barulheira parecia continuar a aumentar, toquei a campainha e o enfermeiro veio explicar-me que se tratava do aparelho de ar condicionado do bloco operatório, pelo que não havia nada a fazer. Com uma justificação tão convincente procurei acalmar, fingir que o barulho não existia, mas o silêncio da noite é terrível para multiplicar todas as sensações.
Levantei-me e comecei a passear no corredor. A enfermeira interpelou-me solícita para saber qual o meu problema. Mas o veredicto confirmava-se: não havia nada a fazer. Além disso, o meu passeio pelo corredor não era aconselhável pois poderia incomodar os outros doentes devido ao ligeiro ciciar das rodas do meu suporte do soro. Uma lição importante: os pequenos pormenores podem ser mais importantes que os grandes gestos.
Fui, então, até ao refeitório, longe do foco sonoro, onde procurei dormir um bocadinho numa cadeira. Como a dureza da cama não estimulava o sono, procurei racionalizar a situação. E a chave mais adequada pareceu-me ser a solidariedade. Devia ser solidário com os meus irmãos doentes que na manhã seguinte iriam ser operados. Recordei que a solidariedade não é um qualquer exercício lúdico, que só nos traz alegria e a reconfortante sensação do dever cumprido, mas que se tratava de uma exigência que também pode implicar esforço, sacrifício, sofrimento, desinstalação. Enfim, um discurso muito lógico e muito oportuno não fosse a noite ainda escura e uma carrada de sono a desmontar qualquer argumentação. Mas lá fui insistindo até que cheio de bons propósitos me dirigi resoluto para a minha cama.
Ao cruzar a porta ouvi o meu colega do lado:
- Mas mandam-nos para aqui para nos curar ou para nos matar?
E de repente percebi como uma pergunta tão simples pode ter o efeito de uma enxurrada inutilizando o mais coerente e consistente discurso intelectual sobre a solidariedade.

4 Comentários:

Blogger Ze&Jose disse...

obrigado por nos ires contando o que tens atravessado por nos ofereceres esta proximidade/intimidade e desculpa a ausência.
Estou certo que pensarás numa resposta solidária e cheia de esperança para a próxima vez que te interpelarem com o medo.
Um grande abraço,
ze pedro

20/7/06 14:02

 
Anonymous Anónimo disse...

É que um homem não é de ferro!!!:)
Vai dando notícias (boas!!!). Nós gostamos da saber.
Um abraço de amizade

21/7/06 12:35

 
Anonymous Anónimo disse...

Às vezes é difícil encontrar palavras... Depois de várias semanas de ausência, ocupada com mil pequenas coisas, regresso ao blog e encontro-te igual a ti próprio, a crescer em cada novo desafio que a vida lança e a a ajudar os outros a caminhar também. Um abraço muito amigo
Olinda

25/7/06 11:34

 
Anonymous Anónimo disse...

Very cool design! Useful information. Go on! » »

7/3/07 00:48

 

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