divórcio ou casamento eterno?...

2006-10-06

CV (21) Rotina corrosiva

Depois de alguns dias a restabelecer-me em casa, volto ao blog cumprimentar os meus amigos e pôr a escrita em dia.
A semana passada no Hospital foi mais uma com os sintomas habituais, sobretudo o enjoo permanente. Houve uma alteração: quando lá cheguei foi-me dada uma unidade de sangue, dado que tinha a hemoglobina ligeiramente abaixo de 9, quando o índice normal ronda os 13. Por outro tenho verifiquei que, indo já no sexto tratamento, há ainda meia dúzia de cabelos resistentes no alto da cabeça: quando me olho ao espelho vejo qualquer coisa como uma floresta depois do incêndio: aqueles troncos sem folhas nem ramos ali espetados na terra sem nada à volta.
Mas há um outro fenómeno, este interior e espiritual, que queria partilhar. Nos primeiros tempos estes enjoos vão-se suportando com alguma facilidade, mas com o rotinar do tratamento a disposição interior, com todas aquelas associações que há descrevi, vai mudando. Não sei bem o que se passa com os meus companheiros cuja maior parte me parece resistir melhor que eu (mera suposição?). Mas aquela minha rejeição absoluta da comida tem-me dado que pensar. Curiosamente esta semana, com excepção de um colega todos os outros recusaram a comida: só uma canjinha; tudo o resto nem vê-lo. Isto aumentou um pouco mais a minha auto-estima. Mas mesmo assim gostaria de utilizar um telómetro (as voltas que dei para justificar este neologismo, que descrevo a seguir), isto é, um medidor de força de vontade a ver como me situava numa escala de 0 a 20.
Mas voltando ao meu interior, neste contexo de rotina corrosiva.
No princípio, repetia com toda a convicção a oração de Jesus. "Pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não se faça a minha vontade, mas a tua" (Mt 26,39). Depois, sobretudo na semana passada, notei algumas variantes. Primeira: "Pai, afasta de mim este cálice: mas não se faça minha vontade, mas a tua". E na parte final, já farto de quatro dias de enjoo, de más dispoisções, de vontade de não fazer nada e de me deixarem em paz, surgiu, pela primeira vez, a versão final: Pai, afasta de mim este cálice", sem mais.
Procurei analisar-me e lá fui argumentando e contra-argumentando até que surgiu aquele argumento tão consolador mas também tão ambíguo como sibilino: "Não passas de um orgulhoso. Julgas-te Deus para rezares como Jesus, que sendo homem, também é Deus?". E lá andei eu a ruminar... Mas o que passa comigo: já não quero que se cumpra a vontade de Deus? Esta versão reduzida da oração ocorre-me quando as forças para suportar o sofrimento são cada vezes menores. Então sou não só um fraco mas sobretudo um incoerente. Ou será que as realidades de cada dia nos levam a fundamentos diferentes. Mas então quem sou eu: o que quando está bem, louva a Deus e abre os braços para aceitar a sua vontade; ou o que quando está fraco continua a louvar a Deus mas pedindo-lhe que me tire este cálice independentemente da sua vontade? De pouco valerá dizer que neste momento, já mais refortalecido, me sinto capaz de voltar à primeira versão. Mas por quanto tempo? Ou melhor, por quantas dores e enjoos?
Resta-me a consolação de que afinal cada um de nós é um mistério. Mas preocupa-me e magoa-me interiormente esta esperteza intelectual (mas não é a inteligência também uma criação e um dom de Deus para utilizarmos para superar as nossas dificuldades!?) para armar os argumentos mais convincentes para cada siuação. Vou ter que ser suficientemente humilde para aceitar esta minha fraqueza e que Deus me ajude.
Claro que sempre posso dizer que (outro argumeno "interessante") me sinto bem acompanhado: não se assustaram os discípulos no meio da tormenta a ponto de terem ouvido uma merecida reprimenda de Jesus: "Por que temeis, homens de pouca fé?" (MT 8, 26)?
Mas mais preocupante é aquela pergunta de Jesus, a que normalmente ninguém dá muita importância, pois parece mesmo uma brincadeira. Mas Deus não brina e a pergunta lá está no Ebangelho bem clara: "Mas, quando o FIlho do Homem voltar, será que ainda encontrará fé nsobre a terra?" (Lc 18,8).

Mas já agora e para desanuviar: quando olhava para esta minha ginástica intelectual, lembrei-me de um livro, que li há tempos ("Zero. A biologia de uma ideia perigosa), onde o autor mostra como podemos fazer 0 (zero) igual a qualquer número. P0r exemplo 0=2.
Tomemos uma série infinita deste tipo
2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2-2+2- ...
Agora associemo-los dois a dois
(2-2) + (2-2) +(2-2)+(2-2)+...
É evidente que isto soma
0+0+0+0+0+0+0+0+0 + ... = 0
Mas, se os associarmos de uma maneira diferente:
2 + (-2+2)+ (-2+2)+(-2+2)
0 que vai dar é
2+0+0+0+0+ ... = 2.
Portanto 0=2!
Será que eu não estou a ser assim tão incoerente já que do que se trata é do mistério infinito de Deus e do mistério (in)finito do homem!?
Mas é contra esta racionalidade matemática e empírica que Bento XVI falou em Ratisbona, lembram-se? Não era esta a razão que é ele colocava como interlocutora da fé: (Para ultrapassar as ameaças) só o conseguiremos se a razão e a fé se unirem numa nova forma, se ultrapassarem o limite auto-imposto da razão àquilo que é empiricamente verificável e se descobrirmos mais uma vez os seus novos horizontres".

Portanto, cuidado com estes argumentos capciosos. Nós às vezes pensamos que Deus é burro e que podemos aldrabá-lo. A verdade é que Deus nos ama infinitamente e ri-se desses nossos pensamentos ocultos e dessas nossas criancices, pois só Ele, porque é Deus, é capaz de nos amar, como cada um de nós é, nas nossas infidelidades, nas nossas incoerências, nos nossos argumentos capciosos e, por isso, está sempre pronto para matar a melhor vitela da quinta do céu para festejar o nosso regresso.
Como é bom ter um Deus assim!

4 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Caro Zé,
As tuas crónicas são bençãos.
Vou contar-te,a propósito do Zero, uma hsitória de um professor que tive em Barcelona. Dizia ele: Comecei a minha actividade por paixão, e nessa altura eu tinha Zero. Hoje, passados 25 anos, sinto-me tremendamente compensado, porque consegui amealhar 25 vezes mais.
Um abraço
ASimões

6/10/06 19:50

 
Anonymous Anónimo disse...

Zé Dias, ainda bem que reapareceste. Os teus amigos gostam de te ver e de saborear as tuas reflexões.
Continuamos a acompanhar-te. Não estás sozinho.
Luís Carlos

7/10/06 16:45

 
Blogger Zé Dias disse...

Caro Luís,
certamente te terão proporcionado, a ti como especilista, momentos muito hilariantes as minhas aventuras por terrenos desconhecidos do latim e do grego.
Mas têm-me servido não só para me distrair mas por me proporcionar um especial prazer já que uma das minhas antigas paixões era a "Gramática histórica" e as evoluções semânticas. MAs isso foi já no milénio passado. Portanto...
Daqui te mando um grande barçoa, naturalmente extensivo a tantos bos amigos que me têm acompanhado.

8/10/06 21:41

 
Anonymous Anónimo disse...

Que grandeza meu Deus! Passo por aqui para saber como as coisas vão, é certo, mas também para me fortalecer! Eu que vacilo tanto, que me interrogo tanto mesmo sem o querer...
Por que é que Deus teria dado a fé em doses tão desiguais?
De que maneira um homem de Ciência -percebi isso através da leitura de um post anterior - conseguiu atingir uma tal maturidade?
Um forte abraço

9/10/06 16:06

 

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