Morte um momento forte da vida
Hoje andei uns longos quilómetros para prestar homenagem a uma pessoa amiga que morrera ontem.
Pelo caminho fui pensando na falta de importância e consideração que temos pela morte. E lembrei-me de reproduzir aqui um artigo que publiquei há quase ano e meio sobre o tema.
Praece-me que essa reflexão continua tão actual como a morte.
SEM MORTE NÃO HÁ VIDA
Vivemos numa sociedade cheia de contradições. Por exemplo, e aproveitando o espírito da época, a nossa atitude perante a morte. Talvez nenhuma sociedade tenha tentado esconder tanto a morte como a nossa: será que a morte nos provoca de modo irreversível, manifestando a nossa finitude e pondo em causa a nossa sensação de omnipotência? Talvez nenhuma sociedade tenha tanto medo da morte como a nossa: será porque a fé num além está esmorecida? Ou será que a morte, como zénite do sofrimento e do envelhecimento, questiona o nosso hedonismo e o nosso desejo de eterna juventude?
Por outro lado, temos e mantemos um estilo de vida e uma mentalidade que multiplicam as situações de morte: a condução que praticamos nas estradas, o descuido de muitos operários com a sua segurança, a inconsciência com que degradamos a natureza, a insensibilidade com que se puxa de uma arma para dirimir questões menores, a imoralidade do comércio de armas ou de drogas, a aceitação de condições de vida desumanas, a superficialidade com que olhamos a eutanásia e até o aborto; tudo isto indicia uma cultura onde a morte está presente, apesar de fazermos de conta que não a vemos.
A morte é, para lá disso, um dos maiores factores de socialização. Em torno de alguém que morre junta-se todo o tipo de pessoas, encontram-se amigos que não se viam há anos, cruzam-se crentes e ateus, ricos e pobres. Em seu redor vivem-se momentos de convívio, às vezes demasiado ruidosos para as circunstâncias. A morte proporciona um local de encontro numa sociedade cheia de desencontros, de solidões e de “não lugares”, aqueles espaços nos quais passamos por desconhecidos que nada nos dizem e por conhecidos a quem disparamos um rápido “olá, oh tempo que não te vejo” mal nos virando para trás, seja um supermercado ou uma estação de caminho de ferro. É como se a morte nos quisesse obrigar a considerá-la como um momento da vida: a morte é ocasião de vida, de encontro, de partilha, de solidariedade. E até de bondade: com ela, quase todos, independentemente da vida que levaram, de repente se tornam boas pessoas.
De qualquer modo, nem sempre os que vivem os seus momentos terminais sentem o apoio humanitário nem estão devidamente preparados para passar esta “passagem para a outra margem” de modo humano. A morte é uma ruptura sempre violenta. Por isso, é preciso aprender a viver com ela: os que cá ficam, a fazer o luto de modo sereno e gradual; quem parte, a preparar a saída com dignidade. As convicções profundas de cada um desempenham um papel fundamental. Mas, independentemente dessas convicções, parece muito difícil de aceitar que tudo acabe aqui e que a pessoa não passe de uma mistura de átomos que vieram da terra e à terra hão-de tornar numa comunhão cósmica que nos torna irmãos das estrelas que já explodiram, dos cometas que connosco chocaram, dos minerais que pisamos, das plantas que nos dão oxigénio, dos animais que nos fornecem energia e até de todos os homens e mulheres com quem trocamos moléculas quanto mais não seja pela respiração. Há uma ânsia de eternidade e de imortalidade que não cabe no decurso de uma vida humana. É um desejo que se manifesta na necessidade que sentimos de deixar algo de nós: um filho, um livro, uma fundação, uma igreja, uma qualquer recordação da nossa bondade.
Neste sentido, a morte é talvez o maior desafio para a vida. A maior parte das vezes ignoramo-lo. Mas a morte, a necessidade de morrer em paz com a nossa consciência, é um acicate para cumprir humanamente a vida, para apostar num dado estilo de vida. Nem todos aceitarão o desafio. Nem todos terão consciência dele. Mas a morte coloca-nos perante o desafio de viver bem a vida. Somos a única espécie nesta nossa Terra que tem consciência de si, que para se realizar não pode viver só “pelo instinto”. Talvez o maior drama da sociedade de hoje seja termos perdido a consciência desta realidade. Por isso, vivemos para o dia a dia, vivemos para o presente e apenas o presente, deixando-nos arrastar pelas circunstâncias. Por isso, vivemos tão depressa, sem tempo para saborear a vida. Por isso, desperdiçamos a vida em inutilidades alienantes. E ao chegar a morte, revoltamo-nos quando percebemos que vegetámos numa vida estúpida e inútil e que ainda não começámos a viver seriamente a vida.
Assim, a morte, independentemente de crermos num além ou apenas num aqui, é a grande mola para a vida. A morte diz-nos que só temos uma vida e que, portanto, ou a vivemos bem ou nunca a viveremos. Sem a morte, não teríamos este estímulo. A garantia de por cá andarmos “para sempre” tirar-nos-ia a “urgência” de viver bem, porque teríamos muito tempo para isso; desincentivaria o compromisso libertador com a vida, porque sempre haveria tempo, num tempo futuro, para viver uma vida ao serviço dos outros, a única verdadeira vida, a única verdadeira vocação humana.
A morte obriga-me a assumir-me, aqui e agora, em cada momento, como pessoa, isto é, sujeito consciente e livre da história. Obriga-me a fazer da vida um permanente exercício de cidadania, porque não sei nem o dia nem a hora a que ela virá buscar-me. E para não me apanhar desprevenido, só tenho de, a cada momento, viver a vida a sério logo desde que nasci.
Quando assim acontecer, a morte nunca vem cedo nem inesperadamente. E sempre será vivida como a irmã morte que me dá sentido à vida. Sem morte, nunca viveria amorosamente a vida.
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