CinV (80) “Economia Solidária” (nº 37)
Na encíclica não aparecem as expressóes “economia social”, “economia de comunhão” nem sequer “economia solidária”.
Possivelmente, o Papa não quis utilizar conceitos ainda em maturação e cujos âmbitos não estão bem definidos, pois trata-se de uma realidade multifacetada e que pode ser interpretada de modo redutor, isto é, atendendo apenas a algumas das suas reais facetas.
É certo que a falência de várias formas institucionais de “segurança”, as dificuldades letais do “Estado de bem-estar”, os sucessivos avatares do capitalismo, qual fénix renascendo da suas cinzas “obrigaram” ao aparecimento de outras formas de “solidariedade”, num fenómeno que poderia classificar-se de “hibridização”, conceito que o Papa também utiliza um pouco mais à frente (38), mas preparando-o desde já: “É preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas realizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar a produzir valor económico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente possível”.
O conceito de “economia solidária” tem sido objecto não só de experiências diversificadas, que, como refere o Papa não assentam no “puro lucro”, mas também de vários estudos sociológicos.
Socorro-me de um artigo de J. Portela (A economia ou é solidária ou é fratricida) como fonte de algumas das ideias seguintes.
Ele identifica três tipos de solidariedade – a familial, a associativa e a estatal – que se estendem “desde a esfera microssocial à mesocial e desta ao universo macrossocial”, sem com isto querer excluir outras formas “quiçá a montante ou a anteriori ou, talvez melhor, a par dessas relações unindo-as (e assim unido as pessoas) como um cimento de coesão social, para lá do espaço, do tempo e das circunstâncias sociais ou de grupo”. Seja como seja, uma coisa é certa: trata-se sempre de uma solidariedade “pessoal” ou “altruísta”, enquanto “noção radical de interdependência social e responsabilidade pessoal” face ao outro, uma espécie de traço de união ente duas ou mais pessoas em que cada uma assume a máxima de João Paulo II: “todos (isto é, cada um) somos verdadeiramente responsáveis por todos” (SRS 38).
Assim sendo, e volto a J. Portela, “o paradigma da solidariedade altruísta é «o bom samaritano». Neste vínculo forte manifesta-se atenção, solicitude, acção imediata, cuidado continuado, tudo isto centrado em «um outro», naquele que não é um membro do «nós» da «nossa terra», da «Samaria», mas que é simultaneamente «um igual», nele se depositando confiança… Não há lugar para acepção de pessoas ou mesmo de condutas, nem há margem para cálculos utilitários. Ela está para lá da economia da dádiva, que clama por reciprocidade, mesmo que seja desigual, temporariamente ou não. Como Caillé sugere, aproximamo-nos, então, duma noção imprecisa de dádiva, segundo a qual se estimula o rompimento definitivo com toda a ideia de interesse particular, de contrato, de devolução ou de reciprocidade. Ainda na esteira daquele autor, não estaremos longe da tradição teológica e filosófica que afirma que «a dádiva não pode existir como tal se não for absolutamente pura, isto é, desprovida de qualquer intencionalidade e de qualquer expectativa de retorno. Se dou, explica Derrida, então não dou, pois sabendo que dou, olho-me dando e aproveito ao menos o prazer da minha posição de doador”.
Estamos na pura lógica do dom de que tanto fala Bento XVI e aproximamo-nos muito do “amai- vos uns aos outros como Eu vos amei” de Jesus de Nazaré, que os cristãos deveriam ter como único modelo de via, pois, como diz Bento XVI, “no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1).
Mas infelizmente os católicos, onde me incluo, preferíamos um cristianismo-ética, por muito humanista que ela seja, em vez de assumirmos um cristiamo-encontro-com-a-Pesoa-de-Jesus-Cristo, o que é muito mais complicado e obriga objectivamente a uma permanente conversão (metanóia) do nosso ser e agir, pois é Ele quem “dá à (nossa) vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Que todo o outro, que é o próprio Cristo (Mt 25, 40.45), nos perdoe!
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