divórcio ou casamento eterno?...

2009-12-29

CinV (76) Mercado e Justiça (nº 35)

Na frase inicial ontem citada, não analisei uma outra ideia, a do “o contrato como regra das suas relações”, ou seja, a da justiça.
Mas que justiça? A resposta vem logo a seguir: “O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais”. Como se tudo se resumisse a uma troca ou intercâmbio de bens sem nenhuma outra regra que não fosse o estipulado no contrato juridicamente validado. Ora envolvendo-se pessoas, e pessoas que vivem em desigualdade de circunstâncias e até de oportunidades, “esta” justiça é bem pouco para garantir o respeito pela dignidade humana. Até porque cada pessoa não vive isolada nem se resume à sua dimensão económica. Por isso “a doutrina social (da Igreja) nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza”.
Se as necessidades que todos precisamos de satisfazer se ficam meramente pelo “princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar”. Efectivamente o mercado precisa de estabilidade política e social. E a maior parte das lutas laborais resulta da maneira diferente como os vários actores interpretam esta estabilidade, que todos julgam indispensável, mas que apenas conseguem ver pelo prisma dos seus interesses, naturalmente divergentes. O Papa vem dar um contributo inestimável para este “diálogo” social: “ Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica.”. Cá temos de novo a confiança, mas agora acompanhada da solidariedade. Ao “e, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave”, o Papa poderia ter acrescentado, como o faz ao longo de toda a encíclica, que igual falta grave é a recusa da solidariedade.
Mas se não o escreveu explicitamente, afirmou-o de outra maneira ao falar, neste contexto, dos pobres: “Paulo VI sublinhava oportunamente o facto de que seria o próprio sistema económico a tirar vantagem da prática generalizada da justiça, uma vez que os primeiros a beneficiar do desenvolvimento dos países pobres teriam sido os países ricos (PP 49). Não se tratava apenas de corrigir disfunções, através da assistência. Os pobres não devem ser considerados um «fardo» (CA 28) mas um recurso, mesmo do ponto de vista estritamente económico”.
Esta recomendação envolve dois aspectos:
- os pobres não devem ser vistos apenas como um fardo, mas como um recurso até mesmo económico. Assim não se compreende que se perca a maior força produtiva e criativa, que são as pessoas, como denunciara já João Paulo II: “A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43);
- não se trata apenas de assistência: para muitos agentes económicos há uma distinção muito clara entre justiça e caridade; daí que Bento XVI recordasse, antes, que não basta a justiça comutativa, mas tem de estar associada à justiça distributiva e à justiça social. É altura de superar esta forma subtil de maniqueísmo, que fragmenta o ser humano entre o pobre, que deve ser tratado por instituições de assistência social, e a pessoa, que tem de ser considerada em todas as dimensões e deve ser tratada não por organizações estanques, mas por todos os agentes sócio-políticos. Por isso, mais à frente o Papa falará, por exemplo, da responsabilidade social da empresa (40). Isto é, o pobre não deve ser apenas objecto da caridade, mas também da justiça, pois trata-se de um membro da humanidade, para a a qual “Deus criou a terra e tudo o que ela contém para uso de todas as pessoas e de todos os povos” (GS 69).
Pode dizer-se, na linguagem popular, que o Papa vem denunciar o “amigos, amigos, negócios à parte”.

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