divórcio ou casamento eterno?...

2010-09-08

A trajectória de cada pessoa

Ontem fiquei a conhecer melhor duas amigas de longa data. Já as conhecia de longa data, já as admirava pela sua dedicação à causa dos excluídos. Aliás tenho alguns e algumas amigas que vivem essa radicalidade evangélica de uma maneira que me causa uma santa inveja. Uma inveja por que não sou capaz, não fui capaz de fazer essa opção radical pelos pobres e preferi a segurança de uma vida de bem instalado, de que nunca passou fome, de que só sabe pelos livros e pelas estatísticas que os pobres existem.
Foi uma longa noite absolutamente fascinante. E logo para mim que, interiormente, ainda olho a noite um pouco a partir de uma expressão cuja paternidade perdi na escuridão do passado latino (nox natura malignans ou qualquer coisa do género: “a noite é por natureza maléfica”, a não ser para dormir) acabei por comprovar o que também já sabia: a noite é também o tempo da confidência, do enraizamento dos sentimentos, da fortificação das amizades, quando é vivida neste clima de tanta comunhão espiritual e material (um brinde à cozinheira, como diz o meu amigo Manel!)
Foi uma longa noite tão curta. Porque contaram a pré-história dessa sua vocação, dessa “pedrada de damasco”, desse “amor à primeira vista” por essa causa, tipo “vi e decidi” sem pensar, pois se lhes tornou evidente que era aquilo mesmo que queriam ser na vida. As palavras do Evangelho surgiram-me claríssimas: “Quem deita a mão ao arado e olha para trás não é digno do Reino de Deus” (Lc 9,62). Deixaram tudo e partiram para uma terra que não conheciam, como Abraão que cegamente obedece à palavra interior de um Deus que mal conhece: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teus pais e vai para a terra que Eu te indicar” (Gn 12,2). E ele foi. E Elas forma, sem nada a não ser a sua vontade decidida e o seu coração aberto e disponível para “a terra que Eu te indicar”.
Esta vocação-relâmpago, que certamente acontece a muitos, mas que poucos aceitam incondicionalmente, veio ao encontro de uma questão que me colocou um livro que estou a ler. É um livro maravilhoso, que é um hino ao amor e à vida com tudo o que ela tem de bom e de mau: “Somos o Esquecimento que Seremos” de H.Abad Facioline (Quetzal). É um livro corajoso, um coração aberto que fala da (sua) vida como a sentiu e viveu. E espero que viva muitos anos ainda. Revi-me em muitas das suas opiniões, mas não numa delas que passo a citar:

Em última análise, em assuntos de religião, acreditar ou não acreditar é apenas uma decisão racional. A fé ou a falta dela não dependem da nossa vontade, nem de nenhuma misteriosa graça das alturas, mas de uma aprendizagem precoce num ou noutro sentido, que é quase impossível de desaprender. Se na infância e na primeira juventude nos inculcarem crenças metafísicas, ou se, pelo contrário, nos ensinarem um ponto de vista agnóstico ou ateu, quando chegarmos à idade adulta será praticamente impossível mudar de postura. As crianças nascem com um programa inato que as leva a acreditar, acriticamente, no que afirmam com convicção os mais velhos. E é conveniente que assim seja, pois o que seria de nós se nascêssemos cépticos e experimentássemos atravessar as ruas sem olhar para os lados, ou passar o fio da navalha pela cara para ver se corta mesmo, ou aventurarmo-nos na selva sem companhia? Acreditar cegamente no que dizem os pais é uma questão de sobrevivência para qualquer criança, e isso aplica-se também aos assuntos da vida prática e às crenças religiosas. Quem acredita em fantasmas ou em pessoas possuídas pelo Demónio não são criaturas que os viram, mas aquelas que foram instruídas para senti-los e para vê-los (mesmo que não os vissem) desde crianças.
Às vezes, algumas pessoas, ébrias de racionalidade, quando crescem pensam melhor e, durante alguns anos, adoptam o ponto de vista da descrença, mesmo que tenham recebido uma educação confessional. Porém, basta uma qualquer fragilidade da vida, a velhice ou a doença para os tornar tremendamente susceptíveis a procurar o apoio da fé, encarnada numa potência espiritual. Apenas os que forem expostos, desde muito cedo na vida, à semente da dúvida poderão questionar uma ou outra das suas crenças. Contudo, para aqueles que desconhecem a vida espiritual (no sentido de seres e lugares que sobrevivem à morte ou que são preexistentes à nossa própria vida) haverá sempre uma dificuldade adicional, que consiste em que, provavelmente, devido a uma certa agonia existencial do homem e à nossa torturante e tremenda consciência da morte, o consolo proporcionado pela crença noutra vida e numa alma imortal capaz de chegar ao Céu ou de transmigrar será sempre mais atraente e dará mais coesão social e sentimento de irmandade entre pessoas afastadas que a fria e desencantada visão na qual se exclui a existência do sobrenatural. Nós, os homens, sentimos uma profunda paixão natural que nos atrai para o mistério, e é uma tarefa dura e quotidiana evitar a armadilha e a tentação permanente de acreditar numa indemonstrável dimensão metafísica, no sentido de seres sem princípio nem fim que são origem de tudo, e em impalpáveis substâncias espirituais ou almas que sobrevivem à morte física. Porque, se a alma equivale à mente, ou à inteligência, é fácil de demonstrar (basta um acidente cerebral ou os obscuros abismos da doença de Alzheimer) que a alma, como disse um filósofos, não só não é imortal, como é muito mais mortal que o corpo” (pp. 109-111).

Eu não concordo com o determinismo biológico (que não aparece), mas concordo com “o programa inato” de 5 Gbytes do DNA que permitem a nossa sobrevivência também. Concordo com as influências variadas que recebemos nos primeiros anos da nossa vida, mas não concordo com o determinismo cultural. Cada um de nós é “único e irrepetível”, vai-se formando com o “programa inato”, com a educação dos pais, professores, amigos, etc., mas o projecto de vida não resulta só de todas essas influências. Resulta de muitos outros factores a começar pela nossa capacidade crítica, pelas nossas sensibilidades partilhadas, pelos traumas, vividos e até por um sentimento que, para muitos, pode ser difuso, mas que, no fundo, temos de que a pessoa não é apenas o somatório de músculos, tecidos, neurónios e sinapses que se entrelaçam e se multiplicam ou degeneram. Somos um mistério. E, cito mais uma vez uma afirmação de Paulo VI: “No coração do mundo permanece o mistério do próprio homem, o qual se descobre filho de Deus (ou da Natureza), no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (OA 37). O parêntesis é meu.

A não ser assim, como explicar estas vocações-relâmpagos, que viram, muitas vezes, totalmente do avesso o que foi recebido nos primeiros anos?

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