divórcio ou casamento eterno?...

2010-08-09

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A primeira observação é sobre a expressão “a natureza (e o Homem claro) estão impregnados de Deus”. Embora pense entender o que quer dizer, parece-me uma frase ambígua pois deixa algum sabor panteísta, apesar da sua imagem da esponja, que me parece “simplificadora”. Mas não são todas as nossas imagens de Deus simplificadoras? É evidente para mim que Deus é o Senhor da história, como procurei explicitar no último post. Mas este senhorio não é “possessivo”; deixa-nos espaço para exercer a nossa liberdade. Assim, penso que, “apesar” de Deus ser o Senhor da História, a História vai-se construindo num diálogo dialéctico entre duas vontades: a vontade de Deus e a vontade do Homem. E infelizmente esta parece ganhar demasiadas vezes. A História que nós vivemos hoje não é a História querida por Deus, mas a desejada pelos Homens e são os Homens (alguns) que, movidos certamente pela vontade de Deus, que nunca se impõe mas está sempre presente, vão, muitos sem darem conta desse impulso interior, introduzindo factores libertadores na História. Cito uma passagem da Gaudium et Spes que me ajuda a fundamentar este meu raciocínio: “A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do Reino de Cristo, todavia, na medida em que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa muito ao Reino de Deus. Todos estes valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: «reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz». Sobre a terra, o Reino já está misteriosamente presente; quando o Senhor vier, atingirá a perfeição” (Gaudium et Spes 39). Lembro que a expressão “e do nosso trabalho” não fazia parte das várias versões do documento, acabando por se impor só na parte final do debate e fazer parte da versão oficial.

A segunda observação é sobre “Ele (Deus) e as leis da natureza continuam indissociáveis”. Posso dizer o mesmo que disse atrás: o que significa indissociáveis? Primeiro voltemos ao Concílio. A Gaudium et Spes aborda de modo rápido a questão, já que o seu objectivo nesta passagem é outro: “As tarefas e actividades seculares competem como próprias, embora não exclusivamente, aos leigos. Por esta razão, sempre que, sós ou associados, actuam como cidadãos do mundo, não só devem respeitar as leis próprias de cada domínio, mas procurarão alcançar neles uma real competência” (43). Mas no decreto sobre o apostolado dos leigos é muito mais explícito: “A vontade de Deus com respeito ao mundo é que os homens, em boa harmonia, edifiquem a ordem temporal e a aperfeiçoem constantemente. Todas as realidades que constituem a ordem temporal – os bens da vida e da família, a cultura, os bens económicos, as artes e profissões, as instituições políticas, as relações internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso – não só são meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus, quer consideradas em si mesmas, quer como partes da ordem temporal total: «e viu Deus todas as coisas que fizera, e eram todas muito boas». Esta bondade natural das coisas adquire uma dignidade especial pela sua relação com a pessoa humana, para cujo serviço foram criadas. Finalmente, aprouve a Deus reunir todas as coisas em Cristo, quer as naturais quer as sobrenaturais, «de modo que em todas Ele tenha o primado». Mas este destino, não só não priva a ordem temporal da sua autonomia, dos seus fins próprios, das suas leis, dos seus recursos, do seu valor para bem dos homens, mas antes a aperfeiçoa na sua consistência e dignidade próprias, ao mesmo tempo que a ajusta à vocação integral do homem na terra” (Apostolicam Actuositatem 7). Depois continua que “o uso das coisas temporais foi, no decurso da história, manchado com graves abusos”, porque nós somos marcados pelo pecado.
Por outro lado, a Igreja coloca-se numa situação difícil ao identificar Deus e as leis naturais ou “o que é natural”. Primeiro: “o que é natural?” O “natural” é um dado eterno, imutável ou é “cultural” isto é, muda com o espaço (as várias culturas) e com o tempo (as várias épocas)? Por exemplo, durante muitos séculos a escravatura foi considerada “natural” tanto por não cristãos como cristãos. Eu sei e conheço os esforços que foram feitos ao longo da história pela Igreja no sentido de a condenar e eliminar. Mas era considerada “natural”. Tal como era “natural” a desigualdade entre os cidadãos e mesmo e sobretudo entre os cristãos. Deixe-me citar a Vehementer nos de Pio X (1906): “A Igreja é, por essência, uma sociedade desigual, ou seja, compreende duas categorias de pessoa: os pastores e o rebanho; os que ocupam um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E estas categorias são de tal modo distintas uma da outra que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários à promoção e direcção de todos os membros para o fim da sociedade. Quanto à multidão, não tem outro direito senão o de deixar-se conduzir e de, como dócil rebanho, seguir os seus pastores”. Certamente que não preciso de citar nenhuma das tantas passagens conciliares que recusam tal leitura "natural" ( "A Igreja é, por essência; uma sociedade desigual"): LG 12; 31; 32; GS 43; AA2-3; …
Ora a (hierarquia da) Igreja confunde o “natural” como lei “imutável” de Deus e, pior ainda têm a convicção de que é a única intérprete autêntica da lei natural. Ao agir assim, parece ignorar dois aspectos.
Primeira: toda a História (e não há uma história sagrada e uma profana, mas somente a História (cf Convenientes ex Universo 6)) é dinâmica e na base desse dinamismo está o Espírito Santo e a vontade tantas vezes “rebelde” do Homem, mas também as inúmeras estruturas que, sendo criadas pelo Homem, rapidamente se autonomizam e acabam por controlar e por se impor ao próprio Homem (cf. Sollicitudo Rei Ssocialis 36).
Segunda: Ficar amarrada a uma interpretação fixista de “lei natural” dificulta não só diálogo com o mundo plural e multicultural, mas pode até incapacitar uma verdadeira evangelização, que tem de partir de tudo “o que há de bom no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e culturas próprias dos povos” (Ad Gentes 9). É que “na verdade, o Espírito do Senhor, que anima o homem renovado em Cristo, altera sem cessar os horizontes onde a sua inteligência gostaria de encontrar segurança e onde de bom grado a sua acção se confinaria: uma força habita no próprio homem que o convida a superar todos os sistemas e todas as ideologias. No coração do mundo permanece o mistério do próprio homem, o qual se descobre filho de Deus, no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito” (Octogesima Adveniens 37).
Não poderia acabar estas primeiras observações sem voltar ao Concílio: “No entanto, muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima ligação entre a actividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte” (Gaudium et Spes, 36).
Naturalmente quando fala de autonomia nunca quis dizer que Deus não tem nada a ver com este mundo, esta natureza ou qualquer criatura. Pois, e continuando a citação que acabei de fazer, “se, porém, com as palavras «autonomia das realidades temporais» se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais afirmações. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste” (ibidem).

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