divórcio ou casamento eterno?...

2010-09-22

UTAL

Esta sigla, que agora tem andado nas bocas do mundo coimbrão (e não só) é o acrónimo de Unidade de Tumores do Aparelho Locomotor. Gostaria de falar um pouquinho dela, o que significa prestar homenagem a um homem que foi capaz de olhar o futuro com visão, criatividade e sobretudo amor à pessoa do doente.
Há 30 anos, havia apenas um Serviço de Ortopedia Geral nos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra). Qualquer ortopedista tratava de qualquer problema de ossos. Foi então que o Professor Norberto Canha percebeu que isto não estava bem, que com tantos ossos era necessário subdividir o Serviço em várias sub-especialidades. E é assim que se foram preparando especialistas de Ortopedia: para o pé, o joelho, a anca, o ombro, a microcirurgia dos membros, e também para os tumores ósseos e de tecidos moles. Criou ainda uma unidade para os infectados do foro ortopédico (pavilhão C de Celas).
A UTAL, a que trata dos tumores ósseos e de tecidos moles, estava instalada no pavilhão B de Celas. É uma Unidade de referência nacional e internacional, na qual são tratados doentes de todo o país, enviados de 44 Instituições de Saúde, incluindo o IPO. É a que conheço bem, pois sou seu “utente” há quase cinco anos. Quando para lá fui havia três cirurgiões e dois oncologistas. Agora há apenas dois cirurgiões, o Dr. Casanova (o coordenador da Unidade) e o Dr. Laranjo, mas quem me tem tratado é o médico oncologista, o Dr. Paulo Tavares. A sua dedicação e amor aos doentes são qualquer coisa de enternecedor. A acompanhá-los há uma equipa de enfermeiros, que, também eles, na sua esmagadora maioria, cultiva a mesma dedicação e carinho. É uma enfermaria, onde as instalações físicas não eram as melhores, mas em que o ambiente era absolutamente excepcional. Ali estávamos numa espécie de vivenda de campo, onde até os passarinhos nos davam os bons-dias; onde os doentes formavam uma família nos longos dias de convivência, que a doença vai criando: íamos passando aos mais novos alguns ensinamentos e regras para melhor suportar a violência do tratamento; onde os familiares podiam passar o dia connosco e até trazer comida de fora, porque a maioria não podia sequer ouvir o tilintar do carrinho da comida e, pior ainda, levantar a tampa da taça onde a comida era servida. Era um ambiente que muito nos ajudava a suportar o sofrimento, a má disposição crónica, as pressões psicológicas daqueles que iam ser amputados, o desânimo daqueles que tinham de ficar o fim-de-semana.

O plano de reestruturação do Conselho de Administração (CA) dos HUC previa que esta Unidade fosse mudada. Pessoalmente, apesar da mudança já se ter efectuado, não aceitava bem essa ideia.
Mas vejamos as razões evocadas pelo CA enviadas a um doente, via presidente da Coordenação Nacional das Doenças Oncológicas (CNDO), Dr. Manuel António L. Silva, também presidente do CA do IPO de Coimbra, um dos Institutos que manda regularmente doentes para a UTAL:

1) enquadra-se na optimização dos espaços no Bloco Central e desactivação das enfermarias do bloco de Celas que não reúnam as condições consideradas adequadas para internamento: parece-me bem e até necessário se isso for feito em nome do doente; mas o que discordo e todos discordamos é que os doentes desta Unidade sejam misturados com as doentes da Ginecologia; a Unidade vai perder a sua “autonomia”, pelo menos, espacial; vai para casa de outro; vai depender do novo inquilino; e todos sabem que juntar duas famílias, mesmo amigas, na mesma casa acaba por trazer atritos. Portanto, temo sinceramente que mudar assim possa acabar com todo aquele ambiente, com aquela “mística” da UTAL. Esta Unidade vai andar por ali perdida no meio do Hospital sujeita às flutuações e aos humores de outros. Como doente e como cidadão o que quero é uma Unidade a sério, que não só elimine os aspectos negativos que tinha no pavilhão de Celas mas valorize e potencie todas as suas capacidades que a tornam única no país e como Unidade de referência nacional e internacional.

2) foi dada particular importância à questão da redução do número de camas para 18 (recordo que eram 35) uma vez que ficou estabelecido a possibilidade de recorrer aos Hospitais de Dia existentes no Bloco Central e de serem disponibilizadas camas adicionais em caso de necessidade. Este é um argumento inaceitável, que só pode se usado por ignorância da realidade ou por falta de cidadania e até de ética, ao optar por equilibrar as contas dos HUC à custa destes e doutros doentes em vez de controlar gastos com a entrada na Instituição de “amigos” desnecessários e até por vezes incompetentes e com o favorecimento económico de outros. É que os doentes desta Unidade têm mesmo que estar internados: não há hospitais de dia, ambulatório, hospitais regionais que os possam tratar. Seria bom, seria que pudessem, sobretudo os doentes do Algarve, da Madeira e dos Açores. Eu bem sei o que é passar ali dias e dias seguidos, noites e noites longas. Isto chega a ser criminoso, porque se as anteriores 35 camas estavam quase sempre ocupadas, o que acontecerá agora com 18? É uma imoral violação da Solidariedade nacional e uma vergonhosa violação do direito de todos à saúde, sobretudo quando o CA se justifica dizendo que só devem ser tratados os doentes da Região. E os outros que vêm de todo o país, pois não têm outro local para ser tratado, o que lhes acontece: vão chegar cá e ser recusados, não pelos médicos da Unidade, mas pelo próprio CA como já sucedeu (ver abaixo)? Ou vão ser admitidos à custa de uma cunha dos administradores ou dos seus amigos, porque quem manda é o CA? Ou vão morrer em casa e de modo rápido? Eu pessoalmente teria sobrevivido meia dúzia de meses se não fosse parar à UTAL. Assim, já lá vão quase cinco anos. Moralmente não se pode prender quem “vende a alma”; mas legalmente o que se pode fazer a quem viola um direito fundamenta de qualquer cidadão? Aguentar? Mas ao menos gritando a nossa indignação.

3) este processo de relocalização foi fortemente participado por um grupo alargado de profissionais em que tomaram posição de destaque os médicos da Unidade. O que sabemos é que aos médicos da Unidade foi imposta esta mudança, apesar de haver alguns encontros, e ponto final. Mas as meias mentiras não serão o maior dos pecados de muita desta gente.

4) evitar as dificuldades e incómodos para os doentes nomeadamente melhorando o conforto de instalações, anulando a distância aos apoios de emergência,...: esta medida colhe unanimidade dos profissionais e até já era pedida por alguns.

Para terminar gostaria de deixar alguns dados sobre a UTAL:
- como já referi é a ÚNICA Unidade no país onde é possível tratar este tipo de cancros e tumores: só em 2009 realizaram-se 3 636 consultas, das quais 466 primeiras consultas, 996 internamentos e uma intervenção cirúrgica média por dia;
- não tem lista de espera para cirurgia de lesões malignas;
- não teve uma única morte por causa das infecções hospitalares;
- tem elevadas taxas de sobrevida, semelhantes às dos melhores centros mundiais;
- a equipa de Enfermagem foi premiada com o Prémio Melhor Perfomance Colectiva 2003 pela Direcção de Enfermagem dos HUC e homologada pelo CA.
- publicou um livro, 20 artigos científicos e 250 comunicações ou posters em congressos nacionais e internacionais, tendo-lhe sido atribuídos 6 prémios científicos;

Alguém consegue entender por que o CA não acarinha uma Unidade com este curriculum?
Alguém pode aceitar que haja outros Serviços e Unidades de excelência a serem maltratados?
Alguém pode compreender por que estão os HUC, um Hospital de referência nacional, a ser desvalorizados, quase desmantelado aos bocadinhos?
Alguém compreende por que não se denunciam as barbaridades que circulam por aí ou serão só boatos maliciosos? Porque são funcionários e temem pelos seus empregos? Estaremos então comandados pelo medo, o pai de todas as ditaduras, mesmo em democracias formais?
Alguém entende que as forças vivas da cidade e os próprios cidadãos nada façam?

É bem verdade que o que é de todos não é de ninguém!


Do Diário AS BEIRAS de 6.Set.2010, p. 3

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