divórcio ou casamento eterno?...

2011-12-07

JUSTIÇA NO MUNDO

No penúltimo post comecei a falar do documento do Sínodo dos Bispos de 1971. Talvez parecesse estranho a  algum leitor que eu tenha despendido tanto tempo com a doutrina da colegialidade. Mas queria deixar claro como a Cúria romana sabe dar volta aos assuntos que põem em causa o seu poder   milenar.
Este texto tem a particularidade de ser possivelmente o único em que a colegialidade foi vivida na sua pureza original. Não foi a Cúria que fiscalizou o documento. Não foi o Papa que lhe deu os retoques finais nem o escreveu na sua totalidade, depois de um ano de reflexão, como passou a acontecer com todos os Sínodos seguintes. Foram realmente os Bispos reunidos em Sínodo que o debateram, escreveram e aprovaram. E foi assim que foi publicado. 
Uma segunda nota que queria referir tem a ver com o total esquecimento a que foi votado. Não sei se tem alguma coisa a ver com a violência profética do seu conteúdo. Mas é uma hipótese a não descartar. De qualquer modo, parece-me que crónica que se segue é uma boa introdução a este problema e também ao começo da reflexão sobre o documento, que irei fazer fazendo com alguma regularidade durante algum tempo.

ESQUECIMENTO SIGNIFICATIVO 
Fez no passado dia 30 de Novembro, quarenta anos que os bispos, reunidos em Sínodo, publicaram o documento “A Justiça no Mundo”. Aborda não só da justiça no mundo, mas também na Igreja e dá grande relevo às relações da justiça com a evangelização.
Trata-se de um documento em tom profético, muito atento à realidade eclesial e social. E, estranhamente ou não, é um texto que foi ignorado, até me apetecia dizer ostracizado, já que, tanto quanto sei (mas não li tudo!?), nunca o vi citado nem referido nos principais documentos do Magistério nem ouvi falar dele em encontros de formação, homilias e afins. É como se tivesse havido uma conspiração de silêncio e silenciamento contra ele. Será pelo seu conteúdo?
A ideia central é esta: “A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações opressivas” (6). É uma frase extremamente violenta para o nosso comodismo pastoral e a nossa inércia missionária, mas muito clarinha: não há autêntica evangelização sem a luta pela justiça. Até os próprios bispos da altura se assustaram com a palavra “luta” e a substituíram por “acção”. Uma ou outra reflectem uma força profética que chamaria de subversiva relativamente às nossas formas de evangelização: para muitos, evangelização reduz-se à catequese. Há até secretariados diocesanos que se chamam de “evangelização e catequese”.
Luta pela justiça e evangelização não encaixam bem na mentalidade de muitos cristãos. Ligar a fé à justiça é aceitável, pois podemos ficar pela esfera dos conceitos e sabemos que a justiça plena não é atingível neste mundo. Mas ligar fé e luta pela justiça já é mais complicado. Luta implica compromisso doloroso, potencial perda de regalias legítimas, perseguições: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,10). Nem com uma recompensa absoluta estamos muito disponíveis para esta luta, quanto mais para perder a cabeça como João Baptista e tantos profetas antigos e actuais.
Parece-me, pois, muito interessante esta mudança do centro de gravidade: da justiça para a luta pela justiça. De algum modo, o texto confirma esta alteração: “Perante esta situação do mundo hodierno, marcado pelo grande pecado da injustiça, sentimos a nossa responsabilidade nela, ao mesmo tempo que experimentamos a nossa impotência” (30). Há aqui implícita a ideia de que a justiça plena nos escapa, mas lembra a nossa responsabilidade em muitas injustiças. E essas devemos combatê-las e eliminá-las dentro do possível. Amartya Sem, no seu livro “A Ideia de Justiça”, escreve algo semelhante: “O que nos toca, e é razoável que o faça, não é o darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de um estado de completa justiça (…) mas o facto de que, à nossa volta, existam injustiças manifestamente remediáveis e que temos vontade de eliminar”. Sem esta percepção, Gandi ou Luther King nunca teriam desafiado impérios. Não se trata, pois, de conseguir um mundo perfeitamente justo, mas de querer remover as injustiças evidentes na medida do possível. Precisamos de identificar e combater a “injustiça superável”. Contudo é mais cómoda a primeira posição, mesmo para teóricos da justiça: “Muitas teorias concentram-se em como chegar a fundar “instituições justas” deixando um papel secundário para os aspectos comportamentais”. Isto é, esquecem-se e nós também esquecemos do mais importante: as pessoas e as suas circunstâncias. Ora centrarmo-nos na vida real das pessoas traz muitas implicações até no que toca à natureza e alcance da própria ideia de justiça.
O “nosso” texto assume a segunda perspectiva: “Apercebemo-nos de que existe no mundo uma série de injustiças que constituem o núcleo dos problemas do nosso tempo e cuja solução exige canseiras e responsabilidades a todos os níveis da sociedade”. Por isso, “a nossa acção deve ter como objectivo, em primeiro lugar, aqueles homens e nações que, devido a formas diversas de opressão e por força da índole própria da sociedade actual, são vítimas silenciosas da injustiça e, mais ainda, vítimas da injustiça sem voz” (20). Muito significativa esta referência às duas situações: vítimas “silenciadas”, porque não as deixamos falar, não lhe damos voz, não cabem nos nossos noticiários, e “silenciosas”, porque não sabem ou não podem falar ou até já desistiram de o fazer perante tanta porta fechada que se lhes deparou. Mas os bispos não ignoram que vivemos numa "injustiça estrutural", na qual têm também grande responsabilidade os "sistemas e mecanismos injustos" (5; 13), verdadeiras "barreiras e círculos viciosos que se opõem à promoção colectiva (e são) obstáculos objectivos à conversão dos corações" (16,34,52), sem a qual não pode haver uma autêntica luta pela justiça.
A luta pela justiça não é inata. Portanto, exige uma educação permanente por parte da família e da sociedade. Mas também da Igreja, através da “Liturgia da Palavra, a catequese e a celebração dos Sacramentos”, especialmente a Eucaristia que “constitui a comunidade e a põe ao serviço dos homens” (59). Mas também pela prática da justiça no seu interior a todos os níveis: “o nosso exame de consciência estende-se ao estilo de vida de todos: bispos, presbíteros, religiosos e religiosas e leigos. Impõe-se perguntar se, entre as populações pobres, o pertencer à Igreja não será um meio de acesso a uma ilha de bem-estar, num contexto de pobreza” (49).
Um documento destes estava obrigatoriamente condenado a ser esquecido tanto pelos responsáveis como pelos irresponsáveis. Não é evidente!?

2 Comentários:

Blogger JC disse...

Excelente texto! Como sempre, inquietante, pertinente e lúcido. Permita-me, apenas partilhar desse seu sentimento de que nunca, como nesse texto, a colegialidade dos Bispos do Mundo foi tão vivida/vívida. Talvez, a um nível mais regional, em Medellín e Puebla tenha sido conseguido esse grau de colegialidade, mas numa dimensão universal não conheço outro. Da atualidade dessas 15 páginas de documento (refrescantes 40 anos de publicação!) comungo os pontos que o amigo assinalou. Na verdade, perante os "sinais dos tempos" os cristão não podemos deixar de emprestar a nossa voz aos injustiçados, sob pena de incorrer num gravíssimo pecado de omissão. Porém, dada a minha atividade quotidiana, destaco o número 50 (e seguintes) pelo convite profético dos Bispos para que se avance em práticas de Educação para Justiça. Como Paulo Freire demonstrou, só pela Educação se conquistará a Libertação integral. Sublinho-o, pois estou convicto disso: a Justiça também se educa, aliás, tal como a Paz que também se cultiva. Abraço fraterno

11/12/11 17:02

 
Blogger fec disse...

"No nosso mundo, onde o valor da pessoa, da sua dignidade e dos seus direitos, não obstante as proclamações de intentos, está seriamente ameaçado pela tendência generalizada de recorrer exclusivamente aos critérios da utilidade, do lucro e do ter, é importante não separar das suas raízes transcendentes o conceito de justiça. De facto, a justiça não é uma simples convenção humana, pois o que é justo determina-se originariamente não pela lei positiva, mas pela identidade profunda do ser humano. É a visão integral do homem que impede de cair numa concepção contratualista da justiça e permite abrir também para ela o horizonte da solidariedade e do amor.

Não podemos ignorar que certas correntes da cultura moderna, apoiadas em princípios económicos racionalistas e individualistas, alienaram das suas raízes transcendentes o conceito de justiça, separando-o da caridade e da solidariedade. Ora « a “cidade do homem” não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo ».

"A paz é fruto da justiça e efeito da caridade. É, antes de mais nada, dom de Deus. Nós, os cristãos, acreditamos que a nossa verdadeira paz é Cristo: n’Ele, na sua Cruz, Deus reconciliou consigo o mundo e destruiu as barreiras que nos separavam uns dos outros (cf. Ef 2, 14-18); n’Ele, há uma única família reconciliada no amor.

A paz, porém, não é apenas dom a ser recebido, mas obra a ser construída. Para sermos verdadeiramente artífices de paz, devemos educar-nos para a compaixão, a solidariedade, a colaboração, a fraternidade, ser activos dentro da comunidade e solícitos em despertar as consciências para as questões nacionais e internacionais e para a importância de procurar adequadas modalidades de redistribuição da riqueza, de promoção do crescimento, de cooperação para o desenvolvimento e de resolução dos conflitos."

Papa Bento XVI para 1 de janeiro de 2012

18/12/11 12:40

 

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