divórcio ou casamento eterno?...

2011-10-01

PRECISAMOS DE UMA SOCIEDADE INJUSTA

Estamos a viver um tempo em que é urgente mudar de hábitos, de atitudes, enfim, de estilo de vida. Mas não temos força moral para o fazer. Isto é, só o faremos se formos obrigados. E como não quisemos fazê-lo a bem e a tempo vamos fazê-lo a mal e à pressão.
E agora não vale a pena chorar sobre o passado, acusar os outros (os outros, sim, porque eu nunca tenho culpa; sou apenas uma infeliz vítima, que tenho de aturar os disparates dos outros), lavar as mãos, cruzar os braços.
Temos um mundo novo a construir.
Já todos estamos fartos de ouvir estas "banalidades".
De qualquer modo, aqui deixo a minha crónica desta semana.

PRECISAMOS DE UMA SOCIEDADE INJUSTA 
                A vida é bela. Mesmo quando embrulhada em muitas dificuldades e problemas, vale a pena viver. Todas as épocas tiveram razões para dizer mal da vida que lhes era dado viver. Também agora muitos o poderão fazer. Todos o poderemos fazer. De qualquer modo, parece-me que hoje somos confrontados com duas “novidades” históricas. O tempo de vacas gordas, que cresceu exponencialmente a partir de meados do século passado, deixou-nos desarmados para as dificuldades que fazem parte da vida. A fartura amoleceu os espíritos e a nossa capacidade de resistência e de resiliência, como é chique dizer agora. Por outro lado, a informática revolucionou os modos de comunicação e sobretudo de relacionamento. Vivemos “uma viragem epistemológica, social e política, sem dúvida, mas também familiar e educativa” (Eduardo Sá), com o que tudo isto implica nomeadamente na educação dos nossos filhos.
                E sobre esta revolução de fundo borbulha a crise que todos vamos vendo e sentindo. Não é fácil viver nela, mantendo os mesmos (não) critérios e o mesmo estilo de vida e os mesmos mecanismos organizacionais. Também não é fácil ser governante, por muito que as contas feitas na oposição ou em artigos de palpites apresentem soluções fáceis, brilhantes e imediatas. A dificuldade aumenta porque estamos imersos na tal crise que nos ultrapassa e que parece fazer de nós minúsculas marionetas, agitados por interesses outros que nos tentam manietar e controlar sob a permanente ameaça de abaixamentos de rating ou de incumprimentos.
                Mas temos de sacudir a juba. Temos de continuar a sentir-nos portugueses num contexto mais alargado, a lutar, em conjunto, por uma identidade mínima que é a nossa, assente num conjunto de valores dos quais nos querem escorraçar e até forçar abandonar. Não estou a criticar ninguém. Quero apenas, como todos somos chamados a fazer, a colaborar na nossa “salvação”. E, para isso, mesmo contra-corrente, gostaria de recordar alguns valores que são fundamentais, mesmo que a actual mudança de paradigma obrigue a vivê-los de outro modo.
                Como cristão, embora não precise de fazer apelo a esta condição, o valor primeiro é o da centralidade da pessoa: “Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento” (CinV 47). Reparece-se: a centralidade da pessoa é associada ao desenvolvimento e não apenas ao assistencialismo mais ou menos disfarçado. Apesar de necessário, este é sempre uma esmola, um não-desenvolvimento, a exigir respostas a um nível “mais elevado”. O assistencialismo deixa o cliente sem opções, à mercê da decisão de outros, que, apesar da sua boa vontade, que só podemos louvar, não conseguem nem podem pôr-se no lugar do pobre. Por isso, nunca é suficiente, porque a pessoa só pode realizar-se através de um desenvolvimento integral e solidário. “São os povos (e as pessoas, acrescento eu) os autores e os primeiros responsáveis do próprio desenvolvimento” (PP 77). Não sou eu que escolho, muito menos posso impor a (minha) felicidade aos outros. São os próprios que a devem construir com a nossa colaboração, a nossa fraternidade, o nosso dom, a nossa gratuidade. Esta é a doutrina da Igreja; mas esta tem de ser a norma da sociedade: somos cidadãos a quem a Constituição confere iguais direitos e responsabilidades. Não estou a acusar ninguém. Estou a recordar que todo o cidadão, enquanto tal, tem o direito inalienável de viver dignamente na sociedade a que pertence. Mesmo que isso implique o contributo solidário ou forçado dos outros.
                Um segundo valor fundamental é o trabalho. Nesta viragem “epistemológica” temos todos que repensar o significado do trabalho, as suas novas modalidades, as regras mais adequadas a um funcionamento libertador, mas há características que não se podem perder. Deixo para a próxima uma reflexão sobre o trabalho como criação, vocação, libertação, realização pessoal e comunitária, aplicação do destino universal de bens e não de mero meio de “sacar de dinheiro”.
                Hoje gostaria de recordar a parábola dos trabalhadores da vinha, que ouvimos há quinze dias. Foi dita por Jesus. Mas não tem nada a ver com religião nem com ateísmo. Tem a ver com a organização social para a qual todos, crentes e não centes, somos convocados. Muitos de nós recusamos aquele proprietário, porque é injusto e desincentiva o trabalho sério. Mas, tendo em conta que um denário era o mínimo diário para se viver com dignidade, vejamos o que faz o vinhateiro. Em primeiro lugar, procura dar trabalho a todos. É manifesta esta sua preocupação: vai passando pela praça várias vezes ao dia para ver se há alguém precisado de trabalho. Em segundo lugar, garante a todos o mínimo para viverem como pessoas. Todos, inesperadamente, recebem um denário: uns, por justiça, como ficara acordado; outros, porque essa a era a quantia mínima de que precisavam para viver de “cabeça levantada” e sem vergonha. Uns, porque a justiça do contrato o impunha; outros, porque a justiça do amor e o respeito pela vida o exigem.
                Esta parábola aponta-nos uma solução para a crise à medida das pessoas e dos povos. “Basta” que todos, governantes e governados, ricos e pobres, mudemos de mentalidade e vejamos o mundo às avessas. Só assim seremos capazes de construir uma sociedade aparentemente injusta para torná-la efectivamente justa para todos. Até porque “uma sociedade onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores ter níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social” (CA 43).


0 Comentários:

Enviar um comentário

<< Home