divórcio ou casamento eterno?...

2011-09-12

És como o Morais: uma moral para ti; outra para os (de)mais

Este velho ditado ocorreu-me ontem quando ouvia o Evangelho deste domingo. Uma passagem muita rica, pois podia levar-nos por muitos caminhos.
O do perdão, por exemplo. Esta exigência de Jesus de que devemos perdoar sempre - “setenta vezes sete” - é tramada. Nem sempre é fácil perdoar. A mágoa, que não conseguimos esquecer, não ajuda muito. Ou mesmo nada. Mas perdoar não é esquecer. Esquecer é sempre um risco, se não soubermos esquecer. Uma ofensa exige sempre um período de luto. Se não for feito com amor, o mais certo é irromper num momento (in)oportuno, saltar e fazer estragos. É um pouco como com a morte das pessoas queridas: ou fazemos o luto com sabedoria ou vivemos anos e anos angustiados com uma perda que sempre será uma perda.
Por outro lado, não sei se é mais fácil perdoar do que pedir perdão. Perdoar pode dar-nos uma satisfação interior mas também um ar de superioridade. Eu perdoo. Eu decido perdoar. Este perdão tem muito pouco de perdão, e muito muito de orgulho. Eu sou bom, até perdoo! Mas pedir perdão exige algo de humilhante, de abaixamento, de reconhecer a superioridade do outro a quem ofendi. Precisamente porque o ofendi, estou em dívida com ele. Pedir perdão com autenticidade é assumir as minhas limitações.

Mas eu gostaria de reflectir um pouco sobre o comportamento dos dois devedores. Ambos devem. Ambos pedem o perdão de uma dívida. Um é atendido; o outro não. Ora o que não perdoa e é exactamente aquele que foi perdoado. Alguém achará estranha esta lógica. E é vista do ponto de vista teórico; mas na prática não é assim que funcionamos muitas vezes? O próprio Jesus nos recorda esta discrepância, quando fala da nossa acuidade visual de conseguir ver, através da trave do nosso olho, o argueiro no olho do outro. Ou recorrendo à mitologia grega, podemos rever a mesma ideia naquela decisão de Zeus de colocar nas nossas costas um alforge carregando os nossos defeitos e outro alforge à nossa frente cheio com os defeitos dos outros. Assim é muito fácil ver os defeitos dos outros: no meu alforge da frente e nos alforges que os outros carregam nas suas costas. E facilmente podemos ignorar os nossos defeitos.
Esta maneira de funcionar é muito humana e muito nossa. E tem uma extensão que podemos aprofundar um pouco. Deixemos o problema concreto da disparidade nos comportamentos perante uma situação semelhante. Pensando um pouco, facilmente arranjamos uma boa desculpa: afinal vemos o mesmo acontecimento de pontos de vista diferentes. Não só de perspectivas diferentes, mas também de "locais" diferentes. É esta a razão por que geralmente não levamos os pobres realmente a sério, não os compreendemos. Como posso eu, que não sou pobre, perceber o pobre? Como posso ver a história a partir da sua perspectiva? E indo por aí fora. Como pode o legislador legislar a favor do pobre se ele não é pobre nem sabe o que isso é? Como pode o governante dar prioridade ao pobre se ele nunca foi pobre? É por isso que geralmente as legislações e a organização social não fazem opção pelos pobres mas sim muito pelos ricos e alguma coisa pelos remediados. 
Mesmo na comunidade crsitã, como é possível não fazer a opção pelos pobres e assumir essa opção como uma característica estruturante da Igreja, quando o nosso Deus faz opção pelos pobres, quando o próprio Jesus nos mostrou com a sua vida essa sua opção prioritária, ao falar em público com as mulheres, ao sentar-se à mesa com os pecadores, ao tocar nos leprosos? Nada disso nós fazemos. E não fazemos porque não somos pobres nem sabemos o que isso é. Mais: interiorizamos que os pobres são pobres por culpa sua, porque são preguiçosos, porque em vez de trabalhar passam a vida a sobreviver com truques inaceitáveis. Cómodo, este raciocínio, não? O que seria dos pobres se eles não nos trapaceassem de vez em quando? Morriam à fome. Além disso, todos sabemos que a pobreza se auto-reproduz: são gerações e gerações que foram resvalando para o fundo do buraco e é preciso um enorme esforço para subir as suas paredes viscosas e escorregadias. O problema, no fundo, é que nenhum de nós que vamos à missa dominical e cumprimos os outros preceitos, como o fariseu, é pobre. Nenhum sabe o que é passar dias e dias sem comer. E, portanto, o que não sabemos, não podemos compreender.

Mas há um outro aspecto que me ocorreu, talvez de modo não muito linear. É a disparidade entre o que pensamos e o que fazemos. Nós podemos saber a doutrina toda, mas depois não a pomos em prática. Há uma espécie de anacoluto entre o que penso e o que faço. E, o pior, é que nem dou por isso. Não é por mal. Certamente trata-se de um processo mais de natureza filosófica ou mesmo fisiológica. Eu ainda me recordo de que, nos meus tempos universitários, tive e dei umas aulas chamadas teórico-práticas. Nelas se fazia a ponte entre a teoria e a prática. Eram muito importantes. (Houve um tempo em que desapareceram do mapa, mas espero que tenham voltado). É que não bastava saber bem um teorema, ser capaz de o demonstrar. Uma coisa é saber o teorema matemático ou uma lei da física; outra é aplicá-los ao problema concreto que pode ser resolvido por essa teoria. Como é que eu aplico o teorema àquele problema concreto? Ensinar a fazer este trajecto era o objectivo das aulas teórico-práticas.
Também na vida e nas nossas convicções precisamos de aulas teórico-práticas. Quantas vezes repetimos palavras do Evangelho e, com uma aparente desfaçatez, pecamos contra elas no preciso momento que as proclamamos! Porquê? Porque o afirmar está a um nível diferente do fazer. E entre esses níveis não há, ou nem sempre há, comunicação. Eu penso que não se trata de uma maldade intrínseca, mas de uma deficiência, de uma limitação que precisamos de combater. O problema é que geralmente não damos por ela.
Desafio o leitor a descobrir pequenas ou grandes situações na sua vida em que isto possa estar a acontecer. Mas não parta do pressuposto de que isso só acontece aos outros. É que os nossos vícios estão no alforge detrás. Estamos tão habituados a este mecanismos que só com um esforço bem dirigido e uma especial atenção é que poderemos descobrir o que por ser tão óbvio se tornou obscuro. É que nós estamos tão mergulhados neste ambiente que estas coisas são tão naturais, que não damos por nada; estes gestos fazem já de tal maneira parte da “mobília da casa" que nem os vemos.

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