divórcio ou casamento eterno?...

2011-09-03

Uma vida, mas uma vida em abundância


Conhecia o Fernando há muitos anos. Cruzávamo-nos por aí: eu, por acidente, nalguma intervenção teórica; ele, num dos intervalos, das suas andanças em favor dos outros, aqui, ali, além, onde houvesse pessoas carenciadas de ajuda.
O Fernando tinha um coração enorme, um coração onde cabiam todas as vítimas da história e dos homens, um coração Pró Mundo. Um coração quase infinito que estava sempre cheio porque as vítimas dos nossos atropelos dos direitos humanos são imensas. Com um coração assim ele não tinha mãos a medir. Não tinha mãos nem pés nem cabeça nem cabeça. As urgências eram tantas, que a primeira reacção de qualquer pessoa sensata era desistir. Mas o Fernando, felizmente, não era sensato. Os sensatos acomodam-se, dão uma ajudinha, isto é, uma esmola e deixam cada um amordaçado pelos seus problemas, com a consoladora desculpa de que “não posso mudar o mundo”. Mas o Fernando não procedia assim. Apesar da imensidão da tarefa nunca virou a cara. Lutava. Mobilizava. Chateava os conhecidos, amigos, alunos, colegas. Fazia. Com paixão, com dedicação, com amor pelos que sofriam.
Num mundo tão marcado pela miséria e pelas imorais desigualdades só temos dois caminhos:  
- ou vivemos indiferentes ao sofrimento, passando de lado sem olhar, pondo assim em prática a nossa saborosa capacidade para “causar uma enorme infinidade de dor” porque “a dor é a única força que se cria do nada, sem custo nem trabalho: basta não olhar, não escutar, não fazer nada” (Primo Levi);
- ou despertamos os corações, nos comovemos, como o samaritano, e então somos arrastados por um qualquer daimon interior, que nos obriga a pôr mãos à obra para cuidar e acolher os necessitados.
O Fernando fez a segunda opção. Transformou-a na razão de ser da sua vida. Para mim que sou crente, ele era a imagem límpida da compaixão do Deus em que acredito, que ama gratuitamente, ama sempre sem olhar aos méritos das pessoas, ama de um modo mais carinhoso aqueles que sofrem. Não se preocupa com os seus pecados (se não o que seria dos justos que pecam sete vezes ao dia?) mas com as dores e os sofrimentos. Os pecados esquece-os, ou melhor, “apaga-os da memória”; os sofrimentos comovem-no, como Jesus, Deus-homem, tão bem nos mostrou com as suas palavras e com a sua vida. O nosso pecado mais grave, o verdadeiro pecado mortal, é causar sofrimento ou tolerá-lo com indiferença. João Paulo II explica isto muito bem através de uma dúzia de verbos que nos deveriam fazer pensar: “Pois bem: a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos de grupos sociais, mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados pessoalíssimos de quem suscita ou favorece a iniquidade ou a desfruta; de quem, podendo fazer alguma coisa para evitar, eliminar ou, pelo menos, limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por medo e temerosa conivência, por cumplicidade disfarçada ou por indiferença; de quem procura escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo; e, ainda, de quem pretende esquivar-se ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior. As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas. Uma situação - e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade - não é, de per si, sujeito de actos morais; por isso, não pode ser, em si mesma, boa ou má” (RP 16, citada em SRS 36, a propósito do pecado social e das “estruturas de pecado” que marcam o nosso mundo e, hoje, com esta crise de maneira mais profunda, visível e dolorosa). Fiz esta citação porque certamente não há nenhum leitor deste post a começar pelo seu autor que não tenha cometido o crime de lesa próximo através de alguma daquelas acções descritas por tantos verbos e atitudes.

Mas o Fernando foi mais longe na visibilização desse rosto bondoso de Deus. Não só dedicou a sua vida em pleno a este “cuidar do outro”, como deu a vida por essa causa. “Não há maior prova de amor do que dar a vida” (Jo 15,13). O Fernando deu a vida por esta causa. Morreu no meio de mais um gesto de amor, na “longínqua” Guiné.
A nossa primeira reacção foi “que perda”, “estamos mais pobres” e as frases do costume, umas vezes verdadeiras ou hipócritas. Neste caso bem verdadeiras.
Mas, num segundo momento, pensando melhor, não concordo, de todo. Porque o Fernando teve uma vida cheia de amor, não cabia mais. E uma vida mede-se pela qualidade do amor e não pela quantidade dos anos. Mesmo que o Fernando vivesse mais tempo ele faria sempre falta. Porque são muito poucos os que têm a coragem de viver como ele, nos limites, por amor dos outros. O Fernando só faz cá falta, só será uma perda se especialmente os seus colegas de projecto(s) não continuarem a sua obra. Nem caso, sim, faz falta, será uma grande perda. Mas se a obra continuar a desempenhar a sua missão, se for fiel ao espírito do Fernando, a sua falta não é falta, é estímulo; não é perda, é ganho. Mas é preciso muita coragem e determinação para quem fica “órfão” resistir à tentação de cruzar os braços. Não já, nestes próximos dias ou meses, mas depois sob a demolidora erosão dos dias que passam. Até porque estes trabalhos exigem uma persistência e uma teimosia a que estamos muto pouco habituados. Eu acredito que tudo irá continuar, mas é bom estar atento às tentações que insidiosamente surgem disfarçadamente: as tais “escusas na pretensa impossibilidade de mudar o mundo” e, ainda, as tentativas de nos “esquivarmos ao cansaço e ao sacrifício, aduzindo razões especiosas de ordem superior”, atrás citadas.

Mas a morte do Fernando é também um dedo acusatório apontado aos ricos (países) do Norte, que gastam palavras a decidir ajudar, mas depois apenas ajudam de acordo com os seus interesses. O Fernando morreu porque, apesar de, desta vez, ter levado consigo a insulina de que precisava como diabético, esta se estragou porque num clima daqueles precisava de ser guardada em ambientes que só o Norte dispõe e porque não havia no hospital central de Bissau. O Fernando morreu porque na Guiné não havia insulina, por isso a qualificou de "longínqua". A insulina, pelos vistos, é um mais um medicamento de luxo. Como o são as vacinas, para nós são “ao preço da chuva”, mas inatingíveis para a maioria dos que vivem na “longínqua” Guiné ou noutras zonas tão “longínquas” porque pertencem a um outro planeta.
A morte do Fernando é a morte de tantas vítimas da miséria, da falta de cuidados mínimos de sobrevivência, resultado da nossa incapacidade de partilhar os dons e os bens que deviam ser para todos. Um simples café pagava uma granjeia de vitamina A que evitaria a cegueira e até, nalguns casos, a morte de milhares de crianças, que, por isso, nunca poderão ter a qualidade de vida a que têm direito. Serão sempre “pessoas a meio”, porque lhes falta qualquer coisa de essencial para viver com dignidade. E isto pelo preço de uma bica. Tanta vida que se poderia salvar com os nossos gastos supérfluos, as nossas compras para descomprimir das nossas tensões, os nossos cosméticos para que a pele não se engelhe demasiado, os nossos ansiolíticos que temos de tomar porque a nossa vida não tem sentido, quando o sentido e a razão de ser da nossa vida estão exactamente na atenção, na preocupação, no cuidado do outro.

Será que a morte do Fernando nos ajuda a ver tudo isto? É evidente que não. A maior parte das pessoas, mesmo os que o conheciam, talvez já tenham até começado a esquecê-lo. Porque a nossa memória é curta. Mas sobretudo porque ele é um “mau exemplo” neste mundo politicamente correcto, onde o que eu quero é que me deixem em paz com as minhas “coisinhas” e não que me desinquietem para mudar de vida.

Obrigado, Fernando, pelo que fizeste e pelo que testemunhaste. Fica-me o consolo e a certeza de que, neste momento, já estás a receber “o cem por um” com que o teu e o meu Deus recompensa o “servo bom e fiel” que tu foste.


1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Obrigada, Zé, por este texto. O Fernando era mesmo assim.
Um abraço.
CG

3/9/11 21:52

 

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