divórcio ou casamento eterno?...

2011-11-08

ANDAMOS TODOS GREGOS

Quando preparava a minha habitual crónica quinzenal, ainda se falava com muita insistência e barulho sobre o referendo na Grécia. Pessoalmente, como se deduz do último parágrafo da crónica que se segue, fico alguma sensação de perda já que a União Europeia e sobretudo os seus tão mesquinhos líderes certamente sofreriam um tal "coice" que pensariam finalmente se queriam sobreviver como Europa ou ficar cada um na sua quinta de estimação.
Quando acabei soube que afinal o referendo já não se realizaria. É com certeza mais politicamente correcto. Mas assim vai ficar tudo quase na mesma.

                Sempre sonhei com uma Europa a sério. Gosto de ser europeu, cidadão de uma Europa que soube colocar a dignidade humana no centro (teórico, pelo menos), acreditando na pessoa, sujeito livre e responsável pelo seu destino individual mas também pelo futuro da sociedade. Que soube criar sistemas sociais razoavelmente justos, praticar a tolerância apesar das dificuldades de integração, cada vez mais defensivas e menos pró-activas. Que mantém uma consciência, talvez difusa, da sua unidade interna fundada não na satisfação das necessidades económicas mas na vivência de valores espirituais comuns, nascidos das três fontes clássicas – Jerusalém, Atenas e Roma – a que se foram juntando afluentes que engrossaram uma Europa grávida de sabedoria e responsabilidade. Não da Europa que “deu novos mundos ao mundo”, mas duma Europa que se dê aos mundos num diálogo fraterno e respeitador, capaz de partilhar o que tem de melhor e de, com a mesma simplicidade e humildade, aceitar o melhor dos outros, na certeza de que a conjugação destas energias materiais mas sobretudo culturais torna a humanidade mais unida e mais fraterna, menos preocupada com o presente e mais com as gerações não nascidas que apenas herdarão aquilo que lhe deixarmos. Portanto, embora me sinta cidadão do mundo, gosto de ser europeu, enquanto a Europa for capaz de enriquecer o património moral, social e político da humanidade. Gosto muito de ser português e gostaria de ser português europeu, cidadão português que pertence à Europa de pleno direito sem perder as suas especificidades próprias.
                A presente crise pôs a nu uma Europa tão desfigurada que não me atrai e que rejeito. Revolta-me o predomínio dos interesses egoístas dos cidadãos incapazes de viver na solidariedade e de promover o bem comum nacional. Como me revolta igualmente o predomínio dos interesses egoístas das nações e dos seus governantes incapazes de viver na solidariedade e de promover o bem comum internacional. Este aliás foi o pecado original da formação da Europa moderna. Apesar de tantas ideias nobres dos seus fundadores, do clima de paz e desenvolvimento que foi mantido durante várias décadas, não podemos esquecer as palavras certeiras de Pio XII, no Natal de 1954: “No último decénio do pós-guerra, um grande anseio de renovação espiritual animou os espíritos: unificar fortemente a Europa, partindo das condições naturais de vida dos seus povos, em ordem a pôr termo às rivalidades tradicionais entre uns e outros e a assegurar a protecção comum da sua indepen­dência e pacífico desenvolvimento. Esta nobre ideia não era motivo de querelas e desconfiança ao mundo extra-europeu, na medida em que este olhava com bons olhos a Europa. Além disso, havia a persuasão de que a Europa facilmente encontraria em si mesma a ideia animadora da própria unidade. Mas os acontecimentos posteriores e os acordos recentes, que se espera hão-de abrir o caminho à paz fria, já não têm como base o ideal de mais vasta unificação europeia. Julgam muitos, de facto, que a alta política vai regressar ao tipo de Estado nacio­nalístico, fechado em si mesmo, centralizador das forças, irre­quieto na escolha das alianças, e portanto não menos pernicioso do que aquele que teve o seu auge no século passado.”
                É este egoísmo feroz e os interesses eleitoralistas dos governantes europeus que no actual contexto vêm aprofundar ainda mais a crise. “Todos os governantes estão desamparados e paralisados perante o dilema entre, por um lado, os imperativos dos grandes bancos e das grandes agências de notação e, por outro, o seu medo face à perda de legitimação democrática junto das suas populações frustradas” (Habermas). Mas penso que devemos ir mais fundo: a fragmentação política (cada Estado puxa, com a força que tem, para o seu lado) que se vai arrastando na Europa mas sobretudo na “aldeia global” está em “contradição com o crescimento sistémico de uma sociedade global multicultural”. E pelo meio, a agravar a situação está a disparidade entre o poder político, assente numa legitimidade democrática, e o poder económico, tentacular, autárquico, cuja legitimidade democrática ninguém legitimou. Além disso, estes dois poderes vivem em mundos diferentes, com tão bem explicou Bento XVI: “A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de ter como finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presente que é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qual competiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redistribuição.” (CinV 36).
                Sarkozy tem razão quando diz "se há um problema na Europa não é de excesso de liderança, é de défice de liderança". Só que está enganado na solução pois ela não pode passar por “um líder e meio”. Nem passa por manobras dilatórias dos governantes nem pela rejeição populista do projecto europeu. Não basta irmos para a rua “indignados”. Temos de saber o que queremos. Temos que querer ser europeus, ter vontade de ser europeus, pois há que aceitar inevitáveis limitações de soberania em nome da solidariedade e da subsidiariedade. Temos que acreditar convictamente na Europa, “europeizar a Europa”, como diz J. Fischer mas num sentido mais profundo. E, sobretudo os governantes têm de deixar de “brincar à Europa”.
                Talvez o referendo grego pudesse ter sido a nossa salvação a longo prazo. Porque seria tal o coice (imagine-se só o que fez o seu anúncio) que todos seríamos forçados a trabalhar no essencial – construir a Europa a sério – e a deixar-nos de querelas inúteis, estéreis e autofágicas. 

0 Comentários:

Enviar um comentário

<< Home