Memórias de um tempo futuro
É este o título de um livro meu que a revista Além Mar quis ontem lançar.
Trata-se de um colectânea de cerca de 40 crónicas que publiquei tanto no Correio de Coimbra (onde mentnho a coluna Fé e Compromisso há 23 anos) e como na Além Mar (onde escrevo os Sinais há 3 anos).
Foi uma festa linda!
Cerca de cem amigos e conhecidos quiseram estar comigo, o que muito me alegrou e comoveu.
Foi uma oportunidade para rever amigos antigos e também para muitos dels me reverem e se reverem entre si. Já estava farto de que apenas os funerais tivessem essa função social de juntar amigos que não se viam há muito.
Dois grandes amigos resolveram apresentar-me de um modo muito exagerado (mas os amigos também são para as ocasiões), mas as palavras encantaram a assistência quer pelo tom tão maviosamente poético, centrado num verdadeiro hino às interrelações da pessao com a natureza e aimportância das suas raízes telúricas, quer pelo tom mais teolgógico-humanista das relações de cada um com Deus, consigo, com os outros, com a cidade e com o mundo.
Quem sabe, sabe e até de um tema banal é capaz de fazer um poema, seja ele literário, seja filosófico. Mas sobretudo senti nas palavras deles o que já sabia: são dois grandes amigos, cuja amizade a pátina do tempo em vez de corroer apenas torna cada vez mais brilhante.
É bom ter assim amigos, que estão sempre, longe ou perto, junto de nós: Os que stiveram e os que estiveram e falaram.
Também gostei muito do acolhimento dos padres combonianos: uma simpatia tão cristã que só a sua vivência do Evangelho pode explicar. E gostei muito da apresentação ter sido na capela, como sinal de que ali estavam muitos para Deus tem um significado profundo, ("Onde dois ou trêss ereunem em meu nome..."), e de que aquele era também um acto eclesial, de algum modo tornado muito mais visível com a presença amiga do "meu" bispo.
No final, como autor, lá tive que dizer umas coisinhas.
A pedido de várias famílias aqui deixo o texto:
Memórias de um tempo futuro
APRESENTAÇÃO
Gostaria de dizer duas palavras sobre este desafio que há 23 anos me foi lançado por Mons. Duarte de Almeida, na altura director do Correio de Coimbra, por sugestão do meu grande amigo Idalino, o P:e Idalino.
O que me propunha era fundamentalmente dar um contributo pessoal, que é sempre “único e insubstituível” (Chl 37), para o desenvolvimento da cidadania. E isto, tendo em conta três aspectos: a sociedade civil, a comunidade eclesial, as relações da Igreja com a sociedade.
A cidadania é, e sempre foi, um exercício difícil e exigente, na medida em que implica empenhamento activo, participação crítica e responsável e uma grande capacidade de aceitar o primado do bem comum.
Nos tempos que correm, as condições de vida da nossa sociedade criam a este exercício obstáculos acrescidos, de que apenas destaco dois ou três.
Vivemos num sociedade complexificada. Hoje os caminhos lineares da história tornaram-se uma rede de nós emaranhados: cada decisão depende de muitas variáveis, numa dependência tal que a mais ligeira perturbação numa delas se repercute, por um efeito borboleta ou efeito dominó, de um modo incontrolável em todas as outras; mais, cada decisão inclui sempre aspectos perversos que temos de ir sucessivamente rectificando com decisões futuras, todas elas sujeitas às mesmas limitações. Esta complexidade acarreta a grande tentação de não nos preocuparmos e deixarmos aos tecnocratas e aos peritos das várias áreas a responsabilidade das decisões ficando-nos apenas pela crítica acrítica se as coisas não correrem à medida dos nossos desejos.
Vivemos numa sociedade de risco e de risco crescente. Não são só as catástrofes naturais, a que a história já nos habituou, mas também agora as consequências dos avanços tecnológicos, as novas doenças, as crescentes agressões à mãe natureza. E mais recentemente, sobretudo depois do 11 de Setembro, surgiu o risco omnipresente de um terrorismo de tipo novo, que acaba por ser gerador de medo. Este medo patológico, embora difuso, é um inimigo quase letal da cidadania, na medida em que nos predispõe a aceitar alegremente a imolação de alguns direitos e liberdades fundamentais no altar, tantas vezes, manchado com sangue humano, da segurança a qualquer preço.
Vivemos numa sociedade fortemente mediatizada. Por um lado somos inundados por uma informação contínua e de todos os tipos, saturando a nossa capacidade de apreensão. Por outro, somos manipulados, não necessariamente no mau sentido, por uma informação filtrada por profissionais das notícias que, inevitavelmente, nos mostram não tanto o mundo objectivo, mas o mundo à sua maneira. Além disso, essa informação vem geralmente acompanhada por uma interpretação, servida por especialistas que nos vêm dizer como cada acontecimento deve ser lido e percebido… não vá a gente enganra-se!
Vivemos numa sociedade do consumismo e sobretudo de uma alienante abundância de bens que gera, me parece, um duplo efeito. Por um lado, quem vive numa cultura do ter esquece facilmente o ser e a solidariedade que deve a todos os outros: é que quanto mais bens posso obter menos necessidade tenho dos outros. Por outro lado, essa cultura do ter transformamo-nos em ferozes animais predadores, que destruímos e gastamos sem regras nem critérios. E sobretudo não percebemos ainda que um pequeno gasto individual se torna exponencialmente muito perigoso porque, apesar de aparentemente insignificante, é sempre multiplicado por milhões. Por exemplo, se cada de nós poupar um watt de energia por dia, o que corresponde a apagar uma lâmpada normal durante um minuto, o nosso país pouparia ao fim de um ano 3,65 mil milhões de W, ou usando um prefixo já habitual nas conversas do dia a dia, 3,6 GW.
A segunda linha de preocupação é a cidadania na Igreja.
A estes obstáculos acabados de referir que também afectam os católicos, há outros específicos da nossa Igreja. Não me vou alongar neles. Destacaria apenas dois.
Para o primeiro, nada melhor que dar a palavra aos nossos Bispos: “A fragilidade do cristianismo provém, em grande parte, do analfabetismo religioso” [1]. Este analfabetismo dos cristãos – e aqui não falo só dos leigos – inclui a própria catequese clássica desajustada aos tempos de hoje e facilitadora de uma leitura ideológica do Evangelho, mas sobretudo refere-se à doutrina conciliar e à DSI. Só a título de exemplo, quantos cristãos interiorizaram esta afirmação do Sínodo de 1971: “A acção pela justiça é uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho” (JM 6)? Mas como podem interiorizá-la se não a conhecerem?
O segundo obstáculo é a falta de diálogo dentro da Igreja. Apesar de várias estruturas de comunhão e participação, elas não são suficientemente assumidas: os leigos, devido ao seu angustiante analfabetismo, não se libertam de um complexo de inferioridade, que os inibe de dar a sua opinião e os deixa de braços cruzados sempre à espera de directrizes superiores. Aqui há um duplo pecado contra o Concílio que exige aos leigos que “não hesitem, no momento oportuno, em tomar novas iniciativas e em levá-las à realização” (GS 43) e exige ao clero que “reconheça e fomente a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja; recorra espontaneamente ao seu conselho prudente, entregue-lhes cargos em serviço da Igreja e dê-lhes margem e liberdade de acção, animando-os até a tomarem a iniciativa” (LG 37).
Para poder cumprir a sua missão, a Igreja tem de saber articular três saberes teológicos estruturantes: o do Magistério, que recebeu o ministério de presidir à caridade e à comunhão; o dos teólogos, que têm o carisma da reflexão criativa para irem descobrindo novos matizes de uma verdade perene que se vai desvelando pelo trabalho da inteligência e pelo amor; o dos que procuram, na sua vida do dia a dia, por vezes no meio de grandes dificuldades, esforços e incoerências, “pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas mas já presentes e operativas nas coisas do mundo” (EN 70)[2].
Sem um diálogo leal e sério, necessariamente dialéctico, entre estes três saberes, alguma coisa de fundamental se perde nesta caminhada para o Reino de Deus: absolutizar um deles é violar a Comunhão; ignorar algum deles é empobrecer a comunidade e pecar contra o Espírito Santo que sempre sopra onde e quando quer (Jo 3,8).
Tinha, tenho, ainda uma terceira preocupação, que é ainda mais complicada: dar algum contributo para clarificar melhor as relações Igreja – Mundo. É que, apesar de algumas aparências, a verdade é que a Igreja tem ainda dificuldade em viver num mundo plural e democrático.
Parece-me que a Igreja não se libertou interiormente do espírito de cristandade: no fundo ainda pensamos que todo o mundo é católico (“Portugal não é um país esmagadoramente católico”?), que a Igreja preside ao decurso da história e decide nas grandes questões.
A Igreja parece pensar que ainda marca o ritmo dos acontecimentos e que o mundo vai ficar parado à sua espera, esquecendo que “deve aceitar que, de certo modo, seja o mundo a fixar a ordem do dia da sua vida eclesial, não no que diz respeito à essência do conteúdo do Evangelho, mas no que diz respeito à sua tradução, no plano da linguagem e das formas de testemunho”, numa feliz expressão da tese de D. José Policarpo [3].
Por isso, a Igreja tem de aprender a falar de maneira inteligível para o mundo de hoje. Tem de traduzir chavões teologicamente muito rigorosos mas culturalmente ininteligíveis. Tem de pensar em categorias das culturas modernas e não apenas agostinianas ou tomistas.
Finalmente, a Igreja parece não ter ainda percebido que está no mundo ao lado de muitas outras propostas, que não dispõe da verdade, mas da sua verdade, cuja bondade e beleza tem de provar com a vida e o testemunho dos seus membros e das suas comunidades.
Este era, em palavras actuais, o meu sonho de uma noite de Inverno de há 23 anos. Ainda o é hoje. Era um pouco contra estes perigosos gigantes que eu, armado em liliputiano D. Quixote, pensava poder fazer alguma coisa. Ainda hoje o penso.
Até acredito, para citar J. Garcia Roca, que “actuar sobre a realidade e mudá-la mesmo que seja apenas um bocadinho é a única maneira de provar que a realidade é transformável”[4].
Mas depressa conclui que não tinha que mudar o mundo, mas mudar-me a mim. Porque ao mudar-me a mim, estava a mudar um pouco o mundo e estava a ajudar outros a também eles se mudarem para, com os milhões de pequenas mudanças, todos juntos podermos recriar continuamente uma humanidade nova, antecipação dos novos céus e da nova terra.
Fui muito pessimista? Foi apenas um maneira provocatória para chamar a atenção para o muito que temos de fazer, todos temos de fazer, na construção de um presente e de um futuro que respeitem a dignidade de todos, pessoas e povos.
Porque eu, como parece que são os portugueses em geral, sou um pessimista local mas um optimista global. Assim acredito profundamente que, apesar destas perturbações localizadas, globalmente a humanidade vai crescendo em humanidade. Porque acredito na capacidade criadora da pessoa humana, na energia irreprimível da vida, na força vitoriosa do amor e na providência amorosa do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que “amou de tal maneira o mundo que lhe enviou o seu filho unigénito para libertar todo os que quisessem ser libertos e salvar todos os que quisessem ser salvos” (cf. Jo 3;16).
Portanto e, para concluir, o futuro apenas depende de nós. Está nas nossas mãos torná-lo humano ou desumano.
[1] CEP, Instrução pastoral A formação cristã de base dos adultos (19.Jul.1994), 6.
[2] J.A. ESTRADA, La Iglesia: identidad y cambio. El concepto de Iglesia del Vaticano I a nuestros dias, Cristiandad, Madrid 1985, p. 160.
[3] J.C. POLICARPO, Sinais dos tempos. Génese histórica e interpretação teológica, Sampedro, Lisboa 1971, p. 275.
[4] J. CARCÍA ROCA, Paisajes después de la catástrofe. Código de la esperanza, Santander 2003, p. 146. citado por DOLORES ALEIXANDRE, Buena tierra es ésta, in Frontera Pastoral Misionera nº 39 (Jul.-Set.2006), p. 3-62.
APRESENTAÇÃO
Gostaria de dizer duas palavras sobre este desafio que há 23 anos me foi lançado por Mons. Duarte de Almeida, na altura director do Correio de Coimbra, por sugestão do meu grande amigo Idalino, o P:e Idalino.
O que me propunha era fundamentalmente dar um contributo pessoal, que é sempre “único e insubstituível” (Chl 37), para o desenvolvimento da cidadania. E isto, tendo em conta três aspectos: a sociedade civil, a comunidade eclesial, as relações da Igreja com a sociedade.
A cidadania é, e sempre foi, um exercício difícil e exigente, na medida em que implica empenhamento activo, participação crítica e responsável e uma grande capacidade de aceitar o primado do bem comum.
Nos tempos que correm, as condições de vida da nossa sociedade criam a este exercício obstáculos acrescidos, de que apenas destaco dois ou três.
Vivemos num sociedade complexificada. Hoje os caminhos lineares da história tornaram-se uma rede de nós emaranhados: cada decisão depende de muitas variáveis, numa dependência tal que a mais ligeira perturbação numa delas se repercute, por um efeito borboleta ou efeito dominó, de um modo incontrolável em todas as outras; mais, cada decisão inclui sempre aspectos perversos que temos de ir sucessivamente rectificando com decisões futuras, todas elas sujeitas às mesmas limitações. Esta complexidade acarreta a grande tentação de não nos preocuparmos e deixarmos aos tecnocratas e aos peritos das várias áreas a responsabilidade das decisões ficando-nos apenas pela crítica acrítica se as coisas não correrem à medida dos nossos desejos.
Vivemos numa sociedade de risco e de risco crescente. Não são só as catástrofes naturais, a que a história já nos habituou, mas também agora as consequências dos avanços tecnológicos, as novas doenças, as crescentes agressões à mãe natureza. E mais recentemente, sobretudo depois do 11 de Setembro, surgiu o risco omnipresente de um terrorismo de tipo novo, que acaba por ser gerador de medo. Este medo patológico, embora difuso, é um inimigo quase letal da cidadania, na medida em que nos predispõe a aceitar alegremente a imolação de alguns direitos e liberdades fundamentais no altar, tantas vezes, manchado com sangue humano, da segurança a qualquer preço.
Vivemos numa sociedade fortemente mediatizada. Por um lado somos inundados por uma informação contínua e de todos os tipos, saturando a nossa capacidade de apreensão. Por outro, somos manipulados, não necessariamente no mau sentido, por uma informação filtrada por profissionais das notícias que, inevitavelmente, nos mostram não tanto o mundo objectivo, mas o mundo à sua maneira. Além disso, essa informação vem geralmente acompanhada por uma interpretação, servida por especialistas que nos vêm dizer como cada acontecimento deve ser lido e percebido… não vá a gente enganra-se!
Vivemos numa sociedade do consumismo e sobretudo de uma alienante abundância de bens que gera, me parece, um duplo efeito. Por um lado, quem vive numa cultura do ter esquece facilmente o ser e a solidariedade que deve a todos os outros: é que quanto mais bens posso obter menos necessidade tenho dos outros. Por outro lado, essa cultura do ter transformamo-nos em ferozes animais predadores, que destruímos e gastamos sem regras nem critérios. E sobretudo não percebemos ainda que um pequeno gasto individual se torna exponencialmente muito perigoso porque, apesar de aparentemente insignificante, é sempre multiplicado por milhões. Por exemplo, se cada de nós poupar um watt de energia por dia, o que corresponde a apagar uma lâmpada normal durante um minuto, o nosso país pouparia ao fim de um ano 3,65 mil milhões de W, ou usando um prefixo já habitual nas conversas do dia a dia, 3,6 GW.
A segunda linha de preocupação é a cidadania na Igreja.
A estes obstáculos acabados de referir que também afectam os católicos, há outros específicos da nossa Igreja. Não me vou alongar neles. Destacaria apenas dois.
Para o primeiro, nada melhor que dar a palavra aos nossos Bispos: “A fragilidade do cristianismo provém, em grande parte, do analfabetismo religioso” [1]. Este analfabetismo dos cristãos – e aqui não falo só dos leigos – inclui a própria catequese clássica desajustada aos tempos de hoje e facilitadora de uma leitura ideológica do Evangelho, mas sobretudo refere-se à doutrina conciliar e à DSI. Só a título de exemplo, quantos cristãos interiorizaram esta afirmação do Sínodo de 1971: “A acção pela justiça é uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho” (JM 6)? Mas como podem interiorizá-la se não a conhecerem?
O segundo obstáculo é a falta de diálogo dentro da Igreja. Apesar de várias estruturas de comunhão e participação, elas não são suficientemente assumidas: os leigos, devido ao seu angustiante analfabetismo, não se libertam de um complexo de inferioridade, que os inibe de dar a sua opinião e os deixa de braços cruzados sempre à espera de directrizes superiores. Aqui há um duplo pecado contra o Concílio que exige aos leigos que “não hesitem, no momento oportuno, em tomar novas iniciativas e em levá-las à realização” (GS 43) e exige ao clero que “reconheça e fomente a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja; recorra espontaneamente ao seu conselho prudente, entregue-lhes cargos em serviço da Igreja e dê-lhes margem e liberdade de acção, animando-os até a tomarem a iniciativa” (LG 37).
Para poder cumprir a sua missão, a Igreja tem de saber articular três saberes teológicos estruturantes: o do Magistério, que recebeu o ministério de presidir à caridade e à comunhão; o dos teólogos, que têm o carisma da reflexão criativa para irem descobrindo novos matizes de uma verdade perene que se vai desvelando pelo trabalho da inteligência e pelo amor; o dos que procuram, na sua vida do dia a dia, por vezes no meio de grandes dificuldades, esforços e incoerências, “pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas mas já presentes e operativas nas coisas do mundo” (EN 70)[2].
Sem um diálogo leal e sério, necessariamente dialéctico, entre estes três saberes, alguma coisa de fundamental se perde nesta caminhada para o Reino de Deus: absolutizar um deles é violar a Comunhão; ignorar algum deles é empobrecer a comunidade e pecar contra o Espírito Santo que sempre sopra onde e quando quer (Jo 3,8).
Tinha, tenho, ainda uma terceira preocupação, que é ainda mais complicada: dar algum contributo para clarificar melhor as relações Igreja – Mundo. É que, apesar de algumas aparências, a verdade é que a Igreja tem ainda dificuldade em viver num mundo plural e democrático.
Parece-me que a Igreja não se libertou interiormente do espírito de cristandade: no fundo ainda pensamos que todo o mundo é católico (“Portugal não é um país esmagadoramente católico”?), que a Igreja preside ao decurso da história e decide nas grandes questões.
A Igreja parece pensar que ainda marca o ritmo dos acontecimentos e que o mundo vai ficar parado à sua espera, esquecendo que “deve aceitar que, de certo modo, seja o mundo a fixar a ordem do dia da sua vida eclesial, não no que diz respeito à essência do conteúdo do Evangelho, mas no que diz respeito à sua tradução, no plano da linguagem e das formas de testemunho”, numa feliz expressão da tese de D. José Policarpo [3].
Por isso, a Igreja tem de aprender a falar de maneira inteligível para o mundo de hoje. Tem de traduzir chavões teologicamente muito rigorosos mas culturalmente ininteligíveis. Tem de pensar em categorias das culturas modernas e não apenas agostinianas ou tomistas.
Finalmente, a Igreja parece não ter ainda percebido que está no mundo ao lado de muitas outras propostas, que não dispõe da verdade, mas da sua verdade, cuja bondade e beleza tem de provar com a vida e o testemunho dos seus membros e das suas comunidades.
Este era, em palavras actuais, o meu sonho de uma noite de Inverno de há 23 anos. Ainda o é hoje. Era um pouco contra estes perigosos gigantes que eu, armado em liliputiano D. Quixote, pensava poder fazer alguma coisa. Ainda hoje o penso.
Até acredito, para citar J. Garcia Roca, que “actuar sobre a realidade e mudá-la mesmo que seja apenas um bocadinho é a única maneira de provar que a realidade é transformável”[4].
Mas depressa conclui que não tinha que mudar o mundo, mas mudar-me a mim. Porque ao mudar-me a mim, estava a mudar um pouco o mundo e estava a ajudar outros a também eles se mudarem para, com os milhões de pequenas mudanças, todos juntos podermos recriar continuamente uma humanidade nova, antecipação dos novos céus e da nova terra.
Fui muito pessimista? Foi apenas um maneira provocatória para chamar a atenção para o muito que temos de fazer, todos temos de fazer, na construção de um presente e de um futuro que respeitem a dignidade de todos, pessoas e povos.
Porque eu, como parece que são os portugueses em geral, sou um pessimista local mas um optimista global. Assim acredito profundamente que, apesar destas perturbações localizadas, globalmente a humanidade vai crescendo em humanidade. Porque acredito na capacidade criadora da pessoa humana, na energia irreprimível da vida, na força vitoriosa do amor e na providência amorosa do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que “amou de tal maneira o mundo que lhe enviou o seu filho unigénito para libertar todo os que quisessem ser libertos e salvar todos os que quisessem ser salvos” (cf. Jo 3;16).
Portanto e, para concluir, o futuro apenas depende de nós. Está nas nossas mãos torná-lo humano ou desumano.
[1] CEP, Instrução pastoral A formação cristã de base dos adultos (19.Jul.1994), 6.
[2] J.A. ESTRADA, La Iglesia: identidad y cambio. El concepto de Iglesia del Vaticano I a nuestros dias, Cristiandad, Madrid 1985, p. 160.
[3] J.C. POLICARPO, Sinais dos tempos. Génese histórica e interpretação teológica, Sampedro, Lisboa 1971, p. 275.
[4] J. CARCÍA ROCA, Paisajes después de la catástrofe. Código de la esperanza, Santander 2003, p. 146. citado por DOLORES ALEIXANDRE, Buena tierra es ésta, in Frontera Pastoral Misionera nº 39 (Jul.-Set.2006), p. 3-62.
10 Comentários:
Olha Zé o meu comentário está no meu blog "outraidade". É muito grande para transcrevê-lo para aqui. Esquece as minhas lamechices e retira apenas o essencial.
13/12/06 15:43
Parabéns Zé Dias, pelo teu livro.
Não tive oportunidade de estar presente para te dar um abraço, mais daqui to envio virtualmente.
1 Abraço José Roque
13/12/06 23:35
Por força das circunstâncias, tenho andado arredia deste teu «manual do desassossego», mas confesso que, à medida que se aproximava o dia do lançamento do teu livro, vivi momentos de felicidade, como tão bem nos descreve a raposa de “O Principezinho”: começamos a ser felizes quando sabemos que nos vai acontecer algo de bom, como encontrar amigo(s). Mas nada de ilusões: não era o facto, em si, de tu ires publicar um livro. Afinal são tantos os teus escritos, não publicadas, tão ou mais fortes do que o conteúdo deste “Memórias de um tempo futuro”! Mas este era (foi) um cocktail com os ingredientes certos e na dose correcta: um hino à amizade – os muitos AMIGOS que reencontrámos e a oportunidade que nos deste para constatar e reiterar como continuamos a gostar tanto uns dos outros; um hino à simplicidade – todos estávamos porque queríamos estar e não porque devíamos estar, porque o homem simples que tu és (e sempre foste) não nos permitiria que fosse diferente; um hino à verdade – todos sabíamos que, contigo, o ser triunfa sobre o ter e o parecer; um hino à beleza – com gestos, textos mais ou menos poéticos, palavras omissas, emoções e sentimentos mais ou menos contidos, silêncios musicais, todos, à sua maneira, expressaram a tua beleza interior; um hino à certeza de como pequenos gestos podem tornar-se tão grandes – uma capela é local de reflexão, de testemunho, de compromisso como tão bem souberam mostrar os simples missionários combonianos; um hino às convicções – estar contigo impõe-nos abandonar o cinzentismo; um hino ao desassosego – «“actuar sobre a realidade e mudá-la mesmo que seja apenas um bocadinho é a única maneira de provar que a realidade é transformável”. Mas depressa concluí que não tinha que mudar o mundo, mas mudar-me a mim»; um hino ao desapego – como nos obrigas a quase ter vergonha das nossas vãs preocupações materialistas; um hino ao sonho – que tem de continuar, como diz o poeta, a comandar a vida desde que os pés continuem assentes na Terra; um apelo à cidadania – se nos limitamos a bater no peito, perdemo-nos do caminho, porque o mundo é dinâmico; um apelo à reflexão e à literacia – não nos podemos permitir acomodarmo-nos na ignorância, como se nada do que se passa à nossa volta fosse da nossa responsabilidade, mas sempre dos outros que, consoante convém, umas vezes têm rosto, outras não; um apelo à coragem – se há tanto para mudar, não podemos deixar-nos corroer por esse medo diluído que nos tranquiliza a consciência.
Finalmente, e desculpem a extensão do texto, não foi a publicação do teu livro, foi a possibilidade de eu poder, como todos os que ali estavam, ter o privilégio, mas também a responsabilidade, de ouvir a mensagem do profeta que tu és, como bem disse o Zé Vieira, que nos desassossega, nos interpela, nos incomoda, nos desinstala e nos impõe que, não importa quantos, não façamos de conta, porque há tanto para fazer.
14/12/06 03:59
Lenita
Não será altura de escrever um livro que não seja de Química?
Um grande abraço para a minha irmâzita que adoro!
14/12/06 09:58
Ângela
Duas coisas muito simples.
Primeira:
Pedir-te desculpa por não ter agradecido aquele teu toque tão feminino: numa ambiente tão acolhedor só faltava um ramo de flores. E naturalemnte tinhas que ser tu a trazê-lo.
Quando o vi pensei logo que tinha de destacar aquele teu gesto tão simples mas tão amigo, na abertura das minhas palavras. Mas depois com a beleza das palavras e o calor dos amigos, tudo ficou tão bonito que até o teu ramo de flores ficou perdido, perdido não, enquadrado naquele ambiente todo ele florido.
Tenho-o agora em cima da minha secretária.
Segunda
Já fui ao teu blog. Comentário: acabei de ler as tuas palavras com as lágrimas nos olhos.
Obrigado pelas flores, pelas palavras e pela profunda amizade.
E o melhor agora é calar-me para que a lamechice não se converta em epidemia!
14/12/06 15:32
Olá bom dia.
Venho passando por aqui para desejar um rico Natal e um Prospero Ano Novo,
Com muitas bênçãos do nosso Sr. Jesus Cristo.
Desde já me despeço de ti, e desejo muitas felicidades.
Caro Irmão será que me pode adicionar no seu blog o meu link para que o meu blog possa cada vez ser mais visto.
Será que posso link o querido Irmão no meu.
Felizes Natal
E
Bom Ano 2007.
20/12/06 10:22
Caro amigo Zé Dias:
Cá continuamos à espera das suas crónicas.
Entretanto, Votos de um Santo Natal!
20/12/06 22:50
Parabéns pelo livro.
Bom Natal para ti e toda a tua família.
21/12/06 17:20
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24/12/06 00:41
Ao Zé Dias e família aproveito para desejar um Santo Natal e com um "tempo futuro" de 2007 cheio de coragem a caminho da vitória.
Poderás consultar o Semintendes onde fiz uma resenha da apresentação do teu livro.
O link é este:
"http://semintendes.blogs.sapo.pt/27488.html".
1 grande abraço e até breve, por aqui. A Simões
24/12/06 03:23
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