divórcio ou casamento eterno?...

2006-10-09

CV (25) Irmão sofrimento 2

Dizia eu que acusar Deus, sem mais, pode ser uma maneira cómoda de fugir ao problema.
O problema é tão grave que a Bíblia sentiu necessidade de o abordar dedicando-lhe o livro de Job, no qual desenvolve vários debates entre Job, os seus amigos e Deus.
Os amigos justificam a situação porque Job é pecador: a velha teoria de que a doença e o sofrimento são castigo pelo pecado próprio.
Job declara-se inocente, recusa esta lógica do sofrimento / castigo do pecado e grita a Deus por Deus, apela a Deus contra Deus, o Deus castigador dos seus amigos: “Que Deus me pese na balança justa e reconhecerá a minha inocência. Oxalá eu tivesse quem me ouvisse!” . Em seguida, faz uma longa enumeração de factos em sua defesa e termina: “Eis o meu depoimento assinado por mim. Que o Omnipotente me responda!” (31,6.35). Invoca um Redentor que faça justiça e saia em defesa da verdade. Job, portanto, recusa a ideia tradicional da retribuição que premeia os bons e castiga os maus.
A resposta de Deus é um longo discurso sobre os mistérios do Universo e sobre a nossa enorme ignorância (38-39): “Onde estavas quando lancei os fundamentos da Terra? Diz-mo se a tua inteligência dá para tanto. Sabes quem determinou as suas dimensões? Quem estendeu a régua sobre ela? Sabes onde repousam as suas bases?... Quem pôs diques ao mar? ... Fala se sabes tudo isto!” (38,4-6.8.18) E Deus continua: “Quem abre o caminho aos aguaceiros e a rota aos trovões? ... Quem gera as gotas de orvalho? De que seio sai o gelo?... És tu quem manda sair, a seu tempo, as constelações e conduzes a Ursa Maior com os seus filhinhos?... És tu que dás força aos cavalos e lhes revestes o pescoço com as crinas? (38,25.28-29.32; 39.19). E de novo o interpela: “Aquele que critica o Todo poderoso quererá discutir? O que fazia correcções a Deus que responde a isto?” (40,2).
Portanto, numa palavra, o problema do mal é um MISTÉRIO, como o é a própria criação do universo. O livro não explica o mistério, mas conclui que se Deus é infinitamente sábio e bondoso com a criação, devemos, mesmo sem perceber, acreditar nele, confiar nele, sentir-se amado por Ele e amá-lo a Ele. Não se trata tanto de falar de Deus, mas de falar com Deus, senti-lo, experimentá-lo, amá-lo, confiar nele. Até porque o próprio Deus é também ele um grande mistério, que não entendemos, pois tem uma lógica diferente da nossa e sobretudo nunca é um Deus à medida dos nossos desejos, dos nossos critérios, da nossa lógica.
Dizer que é um mistério não é resposta que nos satisfaça humanamente, até porque somos tão racionalistas, tão matemáticos, tão quadrados. Mas, mesmo que Deus nos revelasse o mistério do mal, ainda iríamos argumentar "Mas quem poderá anular o mal já praticado, acontecido e sofrido?", sempre tentados a subscrever as palavras de Ivan Karamazov.
Mas a resposta bíblica não termina no livro de Job; acontece com o Deus de Jesus Cristo, o crucificado-ressuscitado. Tal como Job, também Jesus gritou na Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt, 27,46). Foi em Jesus, fiel à sua missão até ao fim, que Deus se revelou como amor. Deus é amor. Para o crente, em Jesus, Deus confronta-se com a negatividade máxima – morte na cruz – e vence-a, com a positividade máxima - a ressurreição. O mal não vence. O mal é derrotado. De agora em diante, quem acredita em Jesus Cristo não é poupado ao sofrimento, à dor, à malvadez, à morte, a tudo o que traz a nossa finitude, mas, na esperança, sabe que a existência não é absurda porque conta com a solidariedade de Deus, de um Deus que é fiel Às suas promessas em todas as circunstâncias .

Mas antes de passar a uma proposta concreta, quero recordar que esta questão existencial põe-se não só aos crentes mas também aos não crentes: “Estamos condenados ao desespero e à resignação? O absurdo tem a última palavra?”
É muito fácil bater em Deus. Penso que foi Epicuro que já colocava a questão em termos que resume os argumentos que se foram alinhando ao longo da história contra Deus:
- Ou Deus quer (tirar o mal do mundo) e não pode: então não é omnipotente;
- ou pode mas não quer: então não nos ama;
- ou não pode e não quer: então nem é omnipotente nem é bom;
- ou pode e quer: então porque existe o mal?
Mas, partamos do princípio que Deus não existe. Como explica o não crente a existência do mal?
Também para ele é um mistério, a menos que tenha Deus (cuja existência não aceita) para acusar. Mais, o não crente "até" está menos "protegido" que o crente que vive na fé e na esperança (ou "na ilusão" dirá o não crente) que há uma solução para o mal, uma solução trans-histórica onde o mal não tem lugar.

Por isso acho, e aí vai a minha proposta, que devemos dar as mãos, crentes e não crentes, e no intervalo dos nossos debates existenciais, mas também muito académicos, arranjar espaço não para decsobrir a origem do mal, mas para combater as suas múltiplas manifestações.
Não sabemos donde vem o mal, mas sabemos por que morrem de fome milhões de pessoas todos os anos, pois bastaria tomar uma bica a menos cada dia para os salvar com esses míseros cêntimos.
Não sabemos de onde vem o mal, mas sabemos por que morrem por ano milhões de pessoas que não tomaram uma vacina que custa tanto como o jornal diário que compramos durante uma semana.
Curiosamente comecei a ler um livro que me dá uma ajuda a esta proposta. Ainda só li meia dúzia de páginas, mas cito duas ou três frases. O livro chama-se "O Mal no pensamento moderno" de Susan Neiman, que cobre o arco de tempo que vai do terramoto de Lisboa a Auschwitz:
- "O problema do mal é a raiz a partir da qual a filosofia moderna emerge... A filosofia moderna está tão impregnada do problema do mal que a questão não é onde começar, mas onde parar" (p. 27).
- "O meu objectivo é utilizar as diferentes respostas ao problema do mal como meio para perceber aquilo em que nos tornámos nos três séculos que nos separam dos primórdios do iluminiusmo" (p. 24).
- "Se há um problema do mal gerado por Lisboa (terramoto), ele apenas pode ter lugar para os ortodoxos: como pode Deus permitir que a ordem natural cause sofrimento inocente? O problema do mal colocado por Auschwitch surge-nos de forma inteiramente distinta: como podem os seres humanos comportar-se de uma forma que viola tão meticulosamente tanto as normas da razão como as do bom senso?" (p. 18).
Vamos, pois, todos transformar o mundo de modo a torná-lo mais justo, mais solidário e mais humano e veremos como tanto sofrimento e tanto mal deixará de existir.
Este compromisso é pedido:
- tanto pelos doutrinadores marxistas: "Os filósofos não têm feito mais do que interpretar de diversos modos o mundo; mas do que se trata é de o transformar" (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, 11ª e última , in C. Marx, F. Engels. Obras escolhidas, Ed. Progreso, Moscovo 1973, Tomo I, p. 10);
- como pelos bispos reunidos no Sínodo de 1971: " A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão" (JM 6).

Será que estes apelos não são suficientemente prementes para todos darmos as mãos na luta contra uma sociedade geradora de tanto mal e de tanto sofrimento!?

5 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Querido Zé Dias,
Nesse mesmo livro, um pouco mais à frente, e ainda a propósito desse mal obsidiante, assinalei uma passagem que, de tão simples, tem a força de uma revelação: "Só o facto de estarmos habituados à morte de Jesus como ícone pode eclipsar a atrocidade da sua crucifixão. Se isto não fosse tão familiar, podia facilmente servir como paradigma do sofrimento inocente a que o cristianismo primitivo assistiu. Forçar um prisioneiro condenado a arrastar o instrumento que a seguir será usado para o torturar até à morte, pelo meio de uma multidão escarnecedora, é um refinamento de crueldade que nos devia cortar a respiração. Devia ser suficiente para deter à nascença o impulso da comparação entre sofrimentos. (p. 286).
Com um beijinho da Nani

14/10/06 00:16

 
Anonymous Anónimo disse...

Tomei-lhe o gosto e gostava de partilhar uma outra lição que colhi, desta feita, em Adolphe Gesché: "a Escritura mostra-nos um Deus escandalizado pelo mal e fala-nos de combate. Deus toma a posição de sujeito activo, como adversário do mal e define-se como tal" (Deus para pensar. I. O Mal, p. 32). Este modelo interpelador predispõe o homem para um combate similar. Esta é a difícil missão, a palavra sussurrada que inibe a desistência, quando os ouvidos estão atentos.

No Domingo passado, o Zé Pedro disse que nos ia visitar. Vemo-lo amanhã? Estamos à sua espera.
Abraço amigo,
Nani (outra vez!)

14/10/06 00:38

 
Anonymous Anónimo disse...

Muito obrigada por este texto. Vou relê-lo muitas vezes. Um abraço.
C. Guerra

16/10/06 10:08

 
Blogger Vítor Mácula disse...

Caro Zé Dias.

Tomei a liberdade de o linkar.

Um abraço

16/10/06 12:27

 
Anonymous Anónimo disse...

Ainda não tinha lido este teu último texto. No fim de o ter lido, fiquei a pensar que desta vez me ficaria pela leitura. Depois voltei a ler e foi como se tudo já estivesse ali, dito (escrito). Naturalmente,aprendi como sempre aprendo e apreendo mas no fim da segunda leitura voltei atrás e fixei a frase com que acabas o texto sobretudo na parte "sociedade geradora de tanto sofrimento" e porquê? Porque é um contra-senso ou, dito de outra forma, se pensarmos no significado da palavra sociedade há uma tremenda contradidão entre os seus objectivos naturais e as estratégias.

16/10/06 19:39

 

Enviar um comentário

<< Home