Uma nova Terra
Tenho insistido várias vezes em que todos devemos construir uma "nova terra". E mais ainda agora, num tempo em que tantos mitos e dogmas mostram os seus pés de barro, a ocasião é especialmente propícia para esta tarefa.
Antes de ir passar fora uma semana, aqui deixo o meu último artigo que aborda mais uma vez este tema. Talvez me esteja a tornar cansativo e repetitivo, mas é este um momento que não podemos perder para semear a esperança e propor a novidade, sobretudo a novidade perene do Evangelho.
UMA NOVA TERRA
É bem conhecida a expressão “nova terra e novos céus” (GS 39), variação da expressão bíblica “céu novo e terra nova” (2Pd 3,13; Ap 21,1).
Quanto ao “céu” pouco poderemos fazer, mas quanto à terra, a uma “nova terra” ela só poderá existir com o nosso contributo empenhado e construtivo. Até porque trabalhar a terra, desenvolver as suas potencialidades é colaborar na preparação de uma terra mais humana mas também do “céu novo”.
Deus, apesar de ser o Senhor da história (GS 26), quer que sejamos nós a construir a nova terra. Por isso, o contributo da nossa actuação para o Reino futuro é um elemento indispensável que Deus certamente aproveitará e levará à plenitude no fim dos tempos: “O futuro dos nossos esforços e a substância positiva dos seus esboços são assumidos e são devolvidos no dom gratuito final. Algo assim como o mestre que entregou um esquema aos seus alunos, o toma por sua conta, o transfigura totalmente, mas assumindo sempre no seu trabalho aquilo que uma mão inábil procurou esquematizar. Deus dará tudo e certamente tudo novo, mas a sua vontade é que tenhamos cooperado antes com eficiência”(Y. Congar).
Portanto, torna-se evidente que devemos dar atenção ao que somos chamados a fazer, e nisto pouco ou nada nos distingue dos “homens e mulheres de boa vontade”. Mas, como cristãos, temos de ir mais além. Temos também de estar muito atentos ao como fazemos: precisamos de ultrapassar a justiça ou pelo menos modulá-la pela caridade, pelo amor com que damos o nosso contributo: “Se alguém te requisita para andares uma milha (por força da justiça), anda duas (por exigência da caridade)” (Mt 5,41). Efectivamente o que prepara o advento do Reino e o que o faz avançar não é tanto o que nós fazemos mas o amor que anima o nosso coração e as nossas acções.
Parece-me, no entanto, importante chamar a atenção para a necessidade de evitar duas atitudes erradas: relevar o que se faz desvalorizando o como se faz; dar prioridade ao como se faz secundarizando o que se faz. Já S. Paulo condenava os que não trabalhavam, certamente por estarem persuadidos de que o fim do mundo (“a segunda vinda de Cristo”) estaria para breve: “Se alguém não quer trabalhar abstenha-se também de comer” (2Tes 3,10). Há pois que estarmos atentos e ter presente que “o amor de Deus é o primeiro mandamento na ordem da dignidade; o amor ao próximo é o primeiro na ordem do agir” (S.to Agostinho).
O cristianismo não é, pois, uma mera moral de intenções, mas resulta do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo (DCE 1) que veio para todos “tivéssemos a vida e a tivéssemos em abundância”(Jo 10,10). Isso exige-nos que também nós, cristãos, trabalhemos para que todos tenham a vida e a tenham em abundância.
Estamos num tempo em que a urgência de um “nova terra” se impõe a todos, crentes e não crentes. Não é tempo de discutir fundamentações, mas de cada um, motivado pela força das suas convicções mais íntimas, dar as mãos e em conjunto lutarmos por este objectivo inadiável. Os últimos acontecimentos mostram não só a urgência mas também a inevitabilidade de termos uma “nova terra”, de mudarmos de paradigma, de nos organizarmos segundo outros critérios, a nível internacional, nacional e pessoal. Não podemos continuar a viver sob a tirania das leis férreas de um mercado que só serve alguns, “os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (QA 107), a ser governados por dirigentes políticos que, a todos os níveis, parecem ter perdido os seus referenciais éticos, a deixar andar uma sociedade onde somos consumidores e não agentes da história, somos “humildes e subservientes” a qualquer autoridade e não cidadãos que lutam pelos seus direitos e pelos dos outros independente do esforço e do sacrifício pessoal que isso acarrete, sobretudo em termos de “subir na carreira”.
Repito: esta urgência impõe-se a crentes e não crentes. Estes não poderão ignorar Marx: “Até agora os filósofos mais não fizeram do que interpretar de todos os modos o mundo, mas do que se trata é de transformá-lo” (XI Tese sobre Feuerbach). Para os crentes o desafio é o mesmo: “Não cumpriria a vontade de Deus criador quem quisesse renunciar à tarefa, difícil mas nobilitante, de melhorar a sorte do homem todo e de todos os homens, sob o pretexto do peso da luta e do esforço incessante de superação, ou mesmo pela experiência da derrota e do retorno ao ponto de partida” (SRS 30). Dramática é a acusação do Concílio: “O cristão que descuida os seus deveres temporais falta aos seus deveres para com o próximo e até para com o próprio Deus, e põe em risco a sua salvação eterna” (GS 43). Isto é, na transformação do mundo, na construção de uma “nova terra”, os cristãos jogam a sua salvação eterna. Quer queiramos quer não, fora do mundo (para poder transformá-lo) não há salvação para nós.
É certo que o progresso terrestre não conduz por si só ao Reino de Deus nem coincide com o seu progresso, mas há uma relação mais íntima que possamos imaginar (GS 39). A evangelização influi sobre a civilização e a civilização condiciona a evangelização, ou, como dizia Pio XI, “a missão própria da Igreja não é civilizar mas evangelizar, ou melhor, civilizar evangelizando“.
Crentes e não crentes somos, pois, igualmente chamados, ainda mais hoje, a transformar a realidade.
2 Comentários:
Caro Zé Dias: De vez em quando passo por aqui, e vejo com satisfação que continuas muito activo. BOM! Há dias em conversa com um amigo comum, calculas quem se vês o nosso espaço, ele me dizia que ler-te é uma obrigação e que aprecia muito o que escreves. Ao ler um teu apontamento mais abixo lembrei-me o que se passou comigo a seguir à reforma, em que muitos me perguntavam/diziam: Mas tem alguma coisa!? - Tenho! (mas não remunerada, pensava para comigo).
Gostarás de saber que o professor de D.S.I. indicava o teu livro que escreveste sobre o tema (antes deste último das Paulinas), para o estudo que fazem os que se preparam para a função, que saberás, que tenho presentemente.
Um abraço do FF.
7/4/09 13:58
Essa história do primeiro livro que escrevi sobre DSI não conhecia...
Mas fico feliz por poder ser útil sobretudo nessa área que foi (e ainda continua, embora menos) mal tratada e quase desconhecida para grande parte dos cristãos.
Foi um prazer ler-te.
E é com prazer que te (e a todos os que aqui vêm visitar-me)desejo uma boa e santa Páscoa, que se prolongue até à eternidade.
8/4/09 09:31
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