CinV (5) Homenagem a Paulo VI: Humanae Vitae
Bento XVI fala com algum entusiasmo desta encíclica: “Não se trata de uma moral meramente individual: a Humanæ vitae indica os fortes laços existentes entre ética da vida e ética social, inaugurando uma temática do Magistério que aos poucos foi tomando corpo em vários documentos, sendo o mais recente a encíclica Evangelium vitae de João Paulo II” (15). Não percebi bem esta de inaugurar uma nova etapa, até porque a HV retoma, pelo menos, a parte mais polémica da encíclica Casti Conubii (31.Dez.1930) de Pio XI, escrita (também) para comemorar os 50 anos da encíclica Arcanum (10.Fev.1880) de Leão XIII, o primeiro grande documento pontifício totalmente dedicado ao “matrimónio cristão”. O próprio Paulo VI fala desta “doutrina, muitas vezes exposta pelo Magistério” (HV 12).
Enquanto os três documentos referidos anteriormente ( PP, OA, EN) foram marcos fundamentais para fazer o aggiornamento da Igreja na linha do Vaticano II, a HV (25.Junho.1968) foi um verdadeiro terramoto.
Vale a pena recordar um puco do seu contexto histórico: Maio de 68, com a sua “imaginação ao poder” e a contestação a tudo o que fosse institucional; o assassinato de Luther King, um indefectível defensor dos direitos humanos; a "Primavera de Praga", esmagada pela invasão da União Soviética; a descoberta da pílula, que tornava a mulher “dona do seu corpo”; uma profunda revolução sexual em curso; a busca de modelos alternativos sintetizada no célebre slogan: "Make love, not war".
Num contexto tão efervescente, de busca apaixonada por uma sociedade nova, de mutações profundas, esperava-se da Igreja uma palavra serena, que apontasse caminhos novos e não se limitasse a jogar à defesa, como parece ter-se tornado um hábito quando se fala de sexualidade humana.
E tudo parecia bem encaminhado com a reflexão dos Padres conciliares, que, esses sim, introduziram uma viragem significativa, ao analisar os problemas do casamento, da família e do amor conjugal numa perspectiva antropológica e não meramente biológica, como pode ver-se GS 47-52, donde retiro três citações:
- este texto "inédito" sobre o amor conjugal: “Unindo o humano e o divino, esse amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do afecto e, com as obras, e penetra toda a sua vida; mais ainda, cresce e aperfeiçoa-se pelo seu generoso exercício” (GS 49);
- outro sobre a paternidade consciente e responsável: “No dever que lhes cabe de transmitir a vida e de serem os educadores - o que se deve considerar como a sua missão -, os esposos sabem que são os cooperadores do amor de Deus Criador e como que os seus intérpretes. Cumprirão pois a sua missão com uma responsabilidade humana e cristã e, num dócil respeito para com Deus, num comum acordo e num comum esforço, formarão um juízo recto, atendendo tanto ao bem próprio como ao dos filhos já nascidos ou a nascer, discernindo as condições quer materiais quer espirituais da sua época e da sua situação e, por último, considerando o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os esposos quem, em última instância, devem perante tomar esta decisão perante Deus” (GS 50);
- outro ainda que prima pela delicadeza com que reconhecem a fidelidade pode correr perigo se não houver uma maneira nova de olhar para o casal: “O Concílio sabe que os esposos, querendo ordenar harmoniosamente a sua vida conjugal, são frequentemente contrariados, em nossos dias, por certas condições de vida e podem encontrar-se numa situação em que o número de filhos, pelo menos por um tempo, não pode aumentar e em que a prática de um amor fiel e a plena comunidade de vida se mantém com muitas dificuldades. Quando a intimidade conjugal se rompe, pode correr perigo a fidelidade e estar comprometido o bem dos filhos: neste caso, estão em perigo a educação dos filhos e a coragem para aceitar os que vierem ulteriormente.” (GS 51).
Este caminho não agradava à Cúria romana. Esta não é uma afirmação gratuita, como revela o episódio contado por Häring. Na qualidade de perito conciliar, defendeu que o esquema sobre o matrimónio devia basear-se no amor fecundo e autêntico, tendo sido prontamente contestado pelo P.e F. X. Hurth, que no intervalo dos trabalhos lhe deu a seguinte explicação: "Aquando da preparação da Casti Connubii, tive de lutar um dia inteiro para dissuadir Pio XI de sustentar a mesma ideia que o senhor defendeu hoje sobre o amor, porque não a julgava oportuna". Seguidamente, Häring recorda que este padre foi o moralista de Pio XI e Pio XII (in A Igreja que eu amo, p. 24).
Assim sendo, era necessário pôr-lhe fim.
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