divórcio ou casamento eterno?...

2009-08-05

CinV (6) Humanae vitae

O texto final da GS de onde fiz ontem as citações foi objecto de uma dos debates mais tensos e dramáticos do Concílio: a “minoria”, ligada à Cúria, queria inclur a condenação explícita dos métodos contraceptivos não naturais; a “maioria” achava que este era um assunto em aberto e que ficar no texto acabava com futuras reflexões. O próprio Paulo VI entrou no debate:
1) Já tinha nomeado uma Comissão para discutir o tema retirando-o ao Concílio: recentemente, o cardeal Carlo Martini reconheceu que o facto de Paulo VI ter subtraído o tema aos Padres conciliares, para assumir "a solidão da decisão" de modo totalmente pessoal, "não foi um bom pressuposto".
2) Entregou quatro modi (sugestões) sobre este assunto. O debate inflamou-se porque não se sabia se estes modi eram imposições do Papa ou sugestões como a de qualquer Padre conciliar. Depois de intensas negociações, o Papa esclareceu que eram apenas sugestões. E a maioria não as aceitou de todo.

Acabado o Concílio, Paulo VI publica a HV, ignorando as conclusões da Comissão que ele próprio criara para o efeito. Começa numa perspectiva antropológica, definindo o amor conjugal como um “amor plenamente humano, total, fiel e exclusivo e fecundo” (HV 9).
Mas, logo a seguir passa para o acto sexual e cita a Casti connubii: “a Igreja ensina que qualquer acro matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida” (HV 11) e sintetiza que o “acto conjugal tem dois significados: unitivo e procriativo” (HV 12). E continua defendendo a “licitude do recurso aos períodos infecundos” (HV 16). Aqui parece-me haver uma incoerência: se todo o acto sexual deve ser aberto à vida, como pode ser legítimo numa altura em que a mulher não está aberta à vida (concepção)? Por outro lado, tornar o acto sexual apenas procriativo não é reduzi-lo à exclusiva função de ter filhos (uma ideia não bíblica, mas importada da filosofia estóica) esquecendo o seu contributo para manter a fidelidade conjugal (cf. GS 51)?
Efectivamente “o equívoco da encíclica é a sua concepção de uma natureza fixa e imóvel, centrada na biologia. Ora, por um lado, a sexualidade humana não se reduz à biologia, pois tem de integrar múltiplas dimensões - a biologia, a afectividade, a ternura, o amor, o espírito - e, por outro, a ética não tem um fundamento naturalista e biologista” (A. Borges).
Por isso, a sua publicação foi um retrocesso relativamente ao Concílio e uma grande decepção. A Igreja perdeu credibilidade junto da sociedade, pois não foi capaz de iluminar os tempos novos com a palavra libertadora do Evangelho. Os próprios cristãos também perderam a sua confiança no Magistério que afinal só ouve quem diz o que quer ouvir e não está atento aos problemas do seu tempo deixando os cristãos perante o dilema: ou angustiar-se com graves problemas de consciência ou pura e simplesmente ignorar a palavra do magistério. E quem ignora uma palavra pode ignorar duas, três, quatro, etc…
Paulo VI sofreu muito também: depois da HV não voltou a publicar mais nenhuma encíclica!

A Igreja tem a obrigação inalienável de propor e defender os valores fundamentais mas deve ser capaz de estar aberta e ter uma palavra lúcida e esclarecedora em cada época (cf GS 4), especialmente neste assunto com que sempre lidou (tão) mal ao longo de toda a história.

Talvez porque estes temas são pensados e normatizados por celibatários, que não se preocupam em ouvir os que sofrem na pele as suas decisões. Aqui deixo as palavras proferidas, a este propósito, pelo Patriarca Maximus IV, no Concílio. “Não estamos nós no direito de nos perguntarmos se certas posições oficiais não são tributárias de concepções ultrapassadas e, talvez, também, de uma psicose de celibatários estranhos a este sector da vida? Não estamos nós, sem o querer, sob o peso daquela concepção maniqueísta do homem e do mundo, segundo a qual a obra da carne, viciada em si mesma, só é tolerada com vista aos filhos? A rectidão biológica externa dos actos será o único critério da moralidade, independentemente da vida do lar, do seu clima moral, conjugal e familiar e dos imperativos graves da prudência, regra de base de toda a nossa actividade humana? Por outro lado, a exegese de hoje não nos concita a uma maior prudência na interpretação de duas passagens do Génesis: “crescei e multiplicai-vos” e a de Onan, por tanto tempo utilizadas como testemunhos escriturísticos clássicos de reprovação radical da contracepção?” (CXII Congregação Geral, 29.Out.1964).

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