divórcio ou casamento eterno?...

2011-08-07

Cogito, ergo sum (1)

Um dos livros que trouxe para ler e meditar nestes dias foi “Jesus uma abordagem histórica” de José António Pagola, um livro cuja leitura me está a dar um gozo interior muito intenso. Ainda li só uma parte, mas é notável o seu estilo tão simples e carregado de tanta informação que a maior parte de nós não conhece. Para os mais sabidos está cheio de notas de rodapé onde remete para vários autores e resume as suas teses.  Escreveu este livro porque ama profundamente Jesus Cristo e escreveu-o com teólogo católico, tendo em conta os estudos das últimas décadas, pois, como escreve Bento XVI, no seu Jesus de Nazaré, “o método histórico … é e continua a ser um aspecto do trabalho exegético a que não se poderá renunciar”. Portanto é uma espécie de “compêndio admirável da investigação crítica sobre Jesus, tal como tem sido realizada nos últimos cinquenta anos, na Europa e na América, tanto entre católicos como entre protestantes e judeus” (Pikaza).
Pagola explica: “Quis apresentar Jesus aos homens e às mulheres de hoje de maneira simples, sem com isso desvirtuar ou desfigurar os resultados da investigação. A minha opção por este género narrativo deve-se ao meu desejo de aproximar o leitor de hoje, crente ou não, daquela experiência que tiveram os que encontraram Jesus, para os ajudar a sintonizar a Boa Nova que descobriram nele. Se Jesus foi captado e recordado como qualquer coisa de “novo” e de “bom” por quem se encontrou com ele, será que não há-de poder trazer-nos também hoje qualquer coisa capaz de gerar renovação, libertação e e esperança? Recuperar de maneira rigorosa e viva a dimensão humana de Jesus não poderá ser hoje uma Boa Notícia para crentes e descrentes? É difícil aproximar-se dele e não ficar fascinado pela sua pessoa. Jesus dá uma nova perspectiva à vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial! A sua vida converte-se num apelo a viver a existência desde a raiz mais profunda que é Deus, o qual só deseja para os seus filhos e filhas uma vida mais digna e mais feliz. Contactar com ele obriga a deixar atitudes rotineiras e artificiais, liberta de enganos, medos e egoísmos que paralisam as nossas vidas; insere me nós coisas tão importantes como a alegria de viver, a compaixão pelos últimos da sociedade, ou o trabalho incessante por um mundo mais justo. Jesus ensina a viver com simplicidade e dignidade, com orientação e com esperança. Mas, há mais. Jesus pode elevar a crer em deus sem fazer do seu mistério não um ídolo ou uma ameaça, mas uma presença amigável e próxima que é uma fonte inesgotável de vida e de compaixão para com todos. Infelizmente, vivemos, por vezes, rodeados de imagens doentias de Deus que se vão transmitindo de geração em geração sem que se meçam os seus efeitos deletérios. Jesus convida a fazer a experiência de um Deus Pai mais humano e maior que todas as nossas teorias: um Deus salvador e amigo”.
Longa citação, mas que lindo e que amor a Jesus! Não é bonito e estimulante ter oportunidade de fazer esta reflexão que nos fundamente e ajude cada vez mais a fazer esta vivência cada vez mais da Pessoa de Jesus de nazaré? É um livro encantador, sedutor, que nos estimula a amar cada vez mais Jesus, que nos informa pormenorizadamente da sua vida entre os camponeses da Galileia que eram duplamente explorados, pelos impostos romanos e pelo dízimo para o Templo, que nos mostra como a paixão do “Reino de Deus”, que referiu 120 vezes, o abrasava (“Eu vim lançar o fogo sobre a terra”: Lc 12,49), como o "Reino" era de tal maneira o núcleo central da sua pregação, a sua convicção mais profunda, a paixão que animava toda a sua actividade” que se sentiu obrigado a andar de terra em terra para mostrar que “Deus era um boa notícia”.
Pois este livro maravilhoso tem uma história que é uma verdadeira odisseia, exemplo de tantas outras dentro da nossa santa madre Igreja (católica). E conto-a com as palavras de um teólogo muito conhecido, J.I. González Faus: “Ultimamente estamos assistindo ao seguinte absurdo: um livro que o cardeal Ravassi elogia publicamente, que um bispo português, entusiasmado, mandou traduzir, que o autor aceitou corrigir de acordo com as sugestões que lhe fez uma pequena comissão de teólogos nomeada, para o efeito, pela Conferência episcopal espanhola, recendo o “nihil obstat” do seu bispo; um livro sobre o qual o actual secretário da Congregação da Doutrina da Fé confessou ao antigo bispo de San Sebastián que não continha nada de heterodoxo… um livro destes termina com um processo aberto contra o autor e com Roma a obrigar a editora a tirá-lo do catálogo e a destruir todos os exemplares que ainda tenha”. 
Não sei o que está a suceder em Roma, pois só sabia do que se passou em Espanha sobretudo com o bispo de Tarazona e um grupo de teólogos, de grande peso oficial, que condenaram o livro.

Para uma rápida explicitação destas confusões, quero apenas deixar duas rápidas notas.
A tradução portuguesa, por razões apresentadas pelo editor, fora feita (e estava pronta para distribuição) a partir do livro “antes das sugestões”; a editora espanhola avisou que a tradução tinha que ser feita a partir do “novo” livro com “as sugestões”. Mas, como o livro estava praticamente pronta para a distribuição, o editor português deixou ficar o original anterior às sugestões e associou-lhe um Suplemento com o título “Uma explicação ao meu livro Jesus uma abordagem histórica”. Penso que foi muito bom que isto acontecesse, pois de posse do livro e do Suplemento podemos ver o que foi sugerido. As principais modificações referem-se ao cap. 14 e a uma rescrita do cap. 15, que ainda não li nem comparei.
E agora vou apenas dar um exemplo, que é bem mais significativo do que parece à primeira vista: a nota 11 do II Capítulo “Um vizinho mais de Nazaré”.
Antes das sugestões:
Segundo Mc 6,3, os habitantes de Nazaré desabafam assim: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?” E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”. O termo adelfós utilizado pelo evangelista significa normalmente “irmão” no sentido estrito, não primo ou parente. Do ponto de vista puramente filológico e histórico, a posição mais comum entre os especialistas é a de que se trata de verdadeiros irmãos e irmãs de Jesus. Meier, talvez o investigador católico de maior prestígio neste momento, após um estudo exaustivo conclui que “a opinião mais provável é que fossem realmente irmãos e irmãs de Jesus”.
Depois das sugestões
Segundo Mc 6,3, os habitantes de Nazaré desabafam assim: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?” E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”. Na Igreja antiga, já se davam várias respostas quando se tratava da interpretação deste texto e de outros que falam de “irmãos” e “irmãs” de Jesus (cf. Mc 3,31-32; 1Cor 9,5; Gl 1,19). A interpretação mais difundida até aos dias de hoje foi a de S. Jerónimo que os considera “primos ou parentes próximos”. Actualmente, os estudos de Meier e de outros exegetas rejeitam essa interpretação por razões filológicas, e pensam que estes textos falam de verdadeiros “irmãos” de Jesus. No entanto, é preciso situar tais conclusões no contexto de uma cultura patriarcal baseada na agnatio (descendência definida através dos varões); nesta cultura, quando se diz que duas pessoas são “irmãs”, a única coisa que se afirma é que têm o mesmo pai. A Igreja católica sempre entendeu que os referidos textos não se referem a outros filhos da Virgem Maria.
Não quero comentar, pois isto é muito claro. Mas não resisto a um desabafo: José, um “homem justo”, tem as costas bem largas; teria de ser viúvo, do que nada se diz nos Evangelhos ou então não seria tão justo como isso!

Mas o que realmente é chocante é que mesmo depois destas emendas todas e da franca aceitação por altos representantes da hierarquia, Roma o censure e o queira “colocar o Index”.
Do que nós, cristãos, estamos necessitados é de livros que nos apaixonem por Jesus e pelo “Reino de Deus e a sua justiça”. Este é um deles, como refere o cardeal Ravassi, Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura: “A melhor forma para guiar o leitor não especialista no meio desta selva (de interpretações cristológicas) parece-me ser a narrativa realizada em Espanha por dois teólogos, Armand Puig i Tarrech (Jesús. Respuesta a los enigmas. San Pablo) e José Antonio Pagola (Jesús. Una aproximación histórica. PPC)”. Mais: não existe cristianismo sem o encontro amoroso com Jesus, como diz o Papa: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, 1)

Por isso, num tempo de profunda crise na Igreja, da qual uma das principais causas é o nosso profundo desconhecimento de Jesus Cristo, não se percebe á tentativa de silenciamento e a condenação deste livro tão apaixonado por Jesus. Como é possível que uma Igreja, que deve testemunhar Jesus Cristo, tome atitudes como estas que são a negação da misericórdia amorosa do nosso Deus, do seu amor por todos? Neste caso concreto, depois de tanto cuidado do autor, há altos representantes oficiais que acham que devem mostrar a sua autoridade e impor a sua doutrina, uma no meio de muitas, pois vivemos numa “selva de interpretações cristológicas”. Não é possível testemunhar e fomentar o Reino de Deus a partir e por meio do poder, quando o próprio Jesus recomenda a este respeito: “Sabeis que os senhores das nações governam-nas como seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós, seja vosso servo “ (Mt 20,25-26). E também não se pode impor pelo medo. Contudo os responsáveis, que avaliam os outros (mas quem avalia os avaliadores?), são sempre alguém que, mesmo sem querer, utiliza o medo para impor a sua doutrina ou a doutrina que acha que deve proteger. Também esta “pastoral do medo” vai contra as palavras de Jesus, que lemos no Evangelho deste domingo: “Não temais… Homens de pouca fé, por que duvidastes?” (Mt 14,27,31). Jesus repete estas mesmas palavras: “Porque temeis, homens de pouca fé?” (Mt 6,25). É difícil acreditar quando o nosso Deus não se manifesta no vendaval, nem no tremor de terrena, nem no incêndio, mas na brisa suave que acaricie quase sem se dar por isso, como recorda a primeira leitura de hoje (1Rs 19,12).  

Além disso, que custos pode ter para a já débil credibilidade da Igreja (mesmo entre os cristãos), esta falta de testemunho “superior”  da solicitude e do serviço amorosos para com todos? Que credibilidade pode ter uma Igreja quando os seus principais responsáveis se preocupam mais por aumentar o centralismo e “piramidalismo” do que em pôr em prática de modo sério e eficaz a vivência da eclesiologia da comunhão? O que nos resta a nós, os outros membros da Igreja, que não seja obedecer cegamente, aceitar a doutrina dos actuais detentores do poder sem qualquer espírito crítico? Não corremos o risco de nos tornarmos numa seita de fundamentalistas em que os chefes mandam e o resto obedece? Somos o rebanho de Deus ou o Povo de Deus? O que foi feito desse modelo tão rico e tão profundo da Igreja como “Povo de Deus”? Podemos pensar pelas nossas cabeças ou somos meros receptáculos e repetidores de sons sem sentido que nos chegam do “alto” baixo?
E já nem refiro o que se está a fazer da força do Espírito que soprou no Vaticano II, pois desse Concílio parece que apenas é aproveitável o que nele se repete dos concílios anteriores, como o demonstra Bento XVI, no seu discurso aos cardeais pouco depois da sua “tomada de posse”, ao contrapor a bondade da “hermenêutica da continuidade” aos inaceitáveis desvios da “hermenêutica da ruptura”.


Deus quis criar-nos com a capacidade de pensar. Só o ser humano pensa. Se deixarmos de pensar nunca seremos pessoas a sério nem cristãos autênticos. Se não penso, não posso, não consigo fazer opções. Não posso nem consigo ouvir a voz da minha consciência, “o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et Spes, 16). E é pela minha consciência que irei ser julgado: não é pelo que os outros mandam; é pelo que eu faço. Quantos crimes se cometeram e cometem porque as pessoas não pensam e obedecem cegamente às ordens superiores?
Quem acredita que Deus está na brisa que a todos acaricia, que sopra onde e quando quer, só pode respeitar o que Deus pensa através de cada um, mesmo que cada um não seja capaz de o traduzir com rigor. Porque só Deus tem A Verdade. 

É a este contexto que o caso de D. José Policarpo vem acrescentar algo de pouco interessante.




1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Andamos os dois a ler o mesmo livro! Eh! Eh!...
CG

30/8/11 22:06

 

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