divórcio ou casamento eterno?...

2011-07-31

Palavras baralhadas pelos ventos do tempo que passa


Ontem já noite adiantada coloquei este post, mas com um erro grave que me apresso a emendar.
Vivemos um tempo que nos apanha um pouco (um pouco, é só para ser simpático) perdidos. E curiosamente, ou não, esta sensação de insegurança parece não nos estimular a sermos construtores de um mundo mais humano, portanto mais seguro, nem a unirmos esforços por um futuro que ou é comum ou não é. De pouco valem as desculpas de que não podemos pensar todos da mesma maneira, de que temos de ser diferentes como se isso fosse apenas uma dificuldades e não antes um incentivo. A diferença não faz inimigos faz complementaridades que só podem ser enriquecedoras, com a condição de cada um não absolutizar as suas opiniões.
No mundo, todas as soluções são relativas e até carregam consigo sempre algo de perverso que obriga a rectificações sucessivas com decisões novas e também elas provisórias. Por isso, o nosso caminho não é um trajecto linear mas uma rede de nós, que nos abrem para muitos caminhos e nos obrigam a opções contínuas.
O drama é que tomar opções exige dispor de critérios, ter princípios norteadores. Ora a facilidade de vida que estas últimas décadas nos trouxeram desarmaram-nos não só psicologicamente mas também moralmente. Este contexto de facilitismos foi gerador de pluralismos e facilitou a tomada de posições diferentes, a maior parte das vezes, sem darmos por isso. E surgiram vários modelos de olhar a vida e o mundo.

1. Os dançarinos
Uns foram-se arrastando para o comodismo do “dolce far niente”: deixaram de se sentir cidadãos e construtores da polis, deixando-se converter alegremente em consumidores. Quando muito delegaram noutros as suas responsabilidades: trocaram o “quentinho” da consciência que não os incomoda muito pela perda de uso da liberdade que, por vezes, se torna um fardo demasiado pesado para quem não quer ter problemas de decisão. Dançam ao toque do “Maria vai com as outras”. Para onde? Só saberão quando lá chegarem.

2. Os nostálgicos
Outros ficaram agarrados a um passado que garantia a segurança interior com os seus critérios e valores. Era tão libertador que valia a pena continuar a mantê-lo sem levantar problemas mesmo quando se suspeitava que cada época tem os seus contextos e exige respostas específicas adequadas. Por isso, ficaram armadilhados na sua nostalgia do “paraíso perdido”, angustiados com um futuro incerto e, portanto, inseguro, e incapazes de se abrir à novidade da história ou do Espírito: o medo limita a sua intervenção. E aqui estou a ver tantos católicos, especialmente muita da sua hierarquia, que parece que não acreditam no Espírito, que sempre sopra onde e quando quer e que sempre está a convidar-nos para a novidade libertadora dos novos céus e da nova terra. Mas não são capazes, mesmo com a fé no Espírito, de cortar com as amarras enferrujadas do passado e ficar apenas com as palavras de vida eterna. São os "homens de pouca fé", que tanto desagradavam a Jesus.

3. Os fracturantes
Outros caíram no extremo oposto e não só abandonaram todo o passado como até o hostilizaram e combateram, conscientes que a história só se pode fazer olhando o futuro e ostracizando o passado. Mas ficaram sem identidade, porque ninguém se identifica a partir do zero. Por isso, não se pode pôr uma pedra sobre o passado, fazer de contas que ele não existe, porque ele sempre deixa marcas, bem no fundo de cada um de nós, que nos definem e influenciam decisivamente. Ao ficarem sem identidade, tentaram arranjar uma à la minuta até ver onde param as modas, à espera de uma qualquer “refundação” que retome um caminho novo e libertador capaz de tornar a humanidade mais humana. Até que isso aconteça, vão vivendo fora da realidade, cheios de boas ideias, mas tão irrealistas como as enferrujadas do passado.

Estes grupos vão vivendo uma vida normalizada. O que mais os distingue são as palavras, não são os actos. Palavras proferidas por uns e por outros com tanta facilidade que possivelmente já só saem das cordas vocais; algumas talvez ainda comandadas pelo cérebro; mas muito pouquíssimas pelo coração. Vivem bem. Em paz consigo mesmos, consciente ou inconscientemente. Uns fechados em si; outros guiados por uma consciência manipulada e outros ainda comprometidos com uma cidadania inexistente. Há felizmente várias excepções, mas que vivem numa diáspora desesperante que exige um esforço para não cair na tentação de agradar ao sistema que tudo controla e manipula.
A crise não os atinge gravemente, pelo menos até ver, como aliás revela um inquérito do Expresso: cerca de 60% não se sentem pouco ou nada afectados pela crise. Terão de ir limitando algumas extravagâncias, mas até ver poucos entraram em falência "física". Pelo contrário, a falência" ética há muito que os retirou de circulação por falta de liquidez existencial.

4. Os profissionais da crise
Cerca de um quinto, com tendência a ultrapassar rapidamente um quarto da população, estão aqueles que não sofrem com esta crise, porque a sua vida é uma crise constante. É o seu estilo de vida, pois nunca saíram dela mesmo no tempo das vacas gordas. Como irão continuar nela quando as coisas se recompuserem. Sentem certamente os seus efeitos a nível de redução de alguma ajuda. Mas as ajudas já eram tão limitadas que mal davam para sobreviver. E para sobreviver tiveram de inventar truques que os bem-comportados, do alto da sua moralidade balofa, sempre condenaram por serem eticamente inaceitáveis: é uma ética (“a dos bem-comportados”) contra outra ética (“a da sobrevivência”). É por isso que é muito mais fácil um juiz mandar para a cadeia uma pessoa que “rouba” meia dúzia de euros de comida para poder matar a fome aos filhos do que uma pessoa que “desvia” milhões de euros em corrupções bem montadas. Mas esta lei é imoral porque “aquele que se encontra em extrema necessidade tem o direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita (para sobreviver). Sendo tão numerosos os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres – «alimenta o que padece de fome, porque, se o não alimentaste, mataste-o» – repartam realmente e distribuam os seus bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos” (Gaudium et Spes, 69).
Mas estas são palavras inaceitáveis para a boa organização social dos bem-comportados, pois introduz um elemento incontrolável e subversivo. 

5. Os “estrangeiros”
Há aqueles que vêm "de fora" e acampam no meio de nós. Hoje a palavra estrangeiro tem uma conotação mais negativa que positiva. Mas eu gosto dela. Parece-me até que é a que melhor descreve a nossa vida. Para mim, que sou crente, todos somos estrangeiros nesta terra, todos estamos de passagem (somos "passageiros" da vida), vivemos numa situação provisória a caminho da definitiva. Esta transitoriedade não me tira, antes pelo contrária aumenta, a minha responsabilidade por deixar esta terra melhor que antes. Ao nascer, entro, como todos, na posse de um duplo património da humanidade: o dos recursos da natureza, que são destinados para uso e benefício de todos, e dos conhecimentos e técnicas elaborados por todos os que me antecederam (cf. LE 12). Mas entro nessa posse não para delapidar ou destruir esse património único, mas para o acrescentar com o meu contributo, pequeno ou grande. Sendo o contributo de cada um sempre único e irrepetível, se alguém se recusar a dá-lo, toda a humanidade fica mais pobre. 
Os tempos modernos geraram enormes movimentações de pessoas pelas mais diversas razões. Ao deslocar-se cada uma transporta consigo a sua identidade, a sua cultura, os seus hábitos e costumes. Todos sabemos os problemas que podem resultar de uma deficiente integração (a "hospitalidade", conceito e atitude tão caros aos povos antigos). Se já não é fácil viver com os vizinhos, como vamos fazê-lo com os "estrangeiros"? E, no entanto, o "estrangeiro" é um outro "eu", que devo acolher, com quem devo praticar a "hospitalidade".
Como vamos os europeus construir uma sociedade pluralista saudável e libertadora perante a multiplicidade de “estrangeiros” que estão entre nós e que são seres humanos como nós? Como vamos lidar com os que não querem assumir, no meio de nós, a nossa cultura porque querem permanecer fiéis à sua, para poderem preservar a sua identidade originária? Como conciliar estes dois interesses culturais legítimos para construir um bem comum necessário para todos?

6. Os demolidores 
Há outros, embora poucos mas ainda demasiados, que vivem um nó interior tão complexo que conseguem parecer pessoas normais (“normalizadas”), mas que, sem se saber bem porquê, basta um qualquer clic exterior ou sobretudo interior para tomarem posições mais ou menos sociopatas. Um bom modelo bem recente é o do norueguês Breivik, exemplo e metáfora dos nossos complexos interiores e do modo como lidamos com eles. A diversidade de atitudes e comportamentos pode ser só superficial, não passando de variações de um profundo “samba de uma nota só”. Esta modalidade, porque só aparentemente é que será multifacetada, torna-se um desafio permanente e sempre novo e inesperado para as nossas sociedades e para a nossa democracia. Não é só pelo facto de ser norueguês de nacionalidade que Breivik não é um “estrangeiro”, um “outro” com ideias totalmente ao arrepio da mentalidade e da cultura dos noruegueses. Como vão os noruegueses reagir? O que podem e devem fazer? Como vamos fomentar e reinventar a democracia perante estes seus “pontos fracos” que fazem dela simultaneamente forte e fraca? Como vamos responder, concretamente nós os portugueses, se nos acontecer uma situação destas?

7. Os profetas
Finalmente há também uns outros, embora muito poucos, que sabem o que querem, que procuram ser coerentes com as sua convicções e utopias, que ainda as há, que são vozes proféticas, mas cujo discurso é tão fora do tempo que ninguém os entende ou quer entender, olhados como “aves raras” em vias de extinção. Sentem-se vozes que pregam no deserto: no deserto das ideias criativas e geradoras de novos rumos, no deserto dos sentidos de vida coerentes e comprometidos com uma organização social mais justa, fraterna e gratuita, no deserto geográfico criado pelos enormes espaços comuns, verdadeiros “sem-lugares”, porque neles nos cruzamos quase sem nos vermos, quase sem nos falarmos, sempre a correr atrás de nadas para poder encher um vazio interior que nos corrói.
Mas é este “resto”, este “restinho” que tem os gérmenes do futuro libertador que, quando a tempestade acalmar, acabará por ser ouvido e, esperemos, seguido. Assim um pouco como os Profetas de Israel no Exílio: não só esperaram contra toda a esperança (visível ou expectável), como conseguiram que a esperança contaminasse um povo e o levasse a não cair no desânimo colectivo nem na descrença assassina.

Conclusão
Ou tomamos o nosso futuro nas mãos ou ficamos sem futuro humano. Porque um futuro humano não existe; temos de o construir. Se nada fizermos, algum futuro virá, pois a evolução não acabou: neste caso, não será uma evolução humana, mas apenas biológica.

Mas antes disso, se nada fizermos, continuaremos todos a ser controlados pelos senhores do mercado financeiro, perfeitamente desregulado, com acesso totalmente livre a todo o espaço e lugar, porque para eles as fronteiras não existem, pois para as saltar basta um teclado ligado a um computador ou uma tablet. A apoiá-los estão a inevitável falta de legislação universal (a grande ajuda dos nossos egoísmos nacionais e da nossa recusa em ceder solidariamente autonomias que já não temos), as imorais agências de rating, verdadeiras prostitutas de luxo sempre abertas ao serviço de quem lhes paga mais, a incapacidade que os governantes têm de ver que já não se trata de questões casuístas nem de castigar os mal-comportados (e quem são os mal-comportados neste contexto!?), mas de problemas globais que ou são assumidos na sua real dimensão ou só servirão para nos afundar ainda mais. A EU tem aqui um papel contagioso e só esperamos que seja em prol do bem comum continental, que também será planetário. A última Cimeira deixou algumas indicações, mas lá vamos nós cair nas palavras.

 E o tempo das palavras já passou.  

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