divórcio ou casamento eterno?...

2011-08-11

Cogito, ergo sum (2)

Embora tenha passado algo despercebido na comunicação social (o que será caso para tentar perceber o porquê), D. José Policarpo, cardeal da Igreja católica e patriarca de Lisboa, foi chamado a uma audiência com o secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertone, por causa da afirmação sobre a ordenação das mulheres que fez numa entrevista à revista da Ordem dos Advogados, publicada em meados de Junho: "Penso que não há nenhum obstáculo fundamental. É uma igualdade fundamental de todos os membros da Igreja". Antes recebera uma carta do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cargo anteriormente ocupado pelo cardeal Ratzinger.
Sabe-se que estas palavras do nosso Patriarca surgiram mês e meio depois de um bispo australiano ter sido  obrigado pelo Vaticano, a abandonar o seu múnus por causa de igual posição que tomara em 2006, sob o argumento de Bento XVI de que a doutrina da Igreja sobre o tema é "infalível".
Já, em 1999, D. José Policarpo afirmara numa entrevista que “as razões pelas quais a Igreja Católica não se abriu ainda a essa hipótese são sobretudo as da tradição apostólica, que foi sempre de homens... teologicamente, não há nenhum obstáculo fundamental; há esta tradição, digamos assim... Nunca foi de outra maneira”.
Não vou discutir o problema da ordenação das mulheres, até porque já desenvolvi aqui o que penso e quais as minhas dúvidas e perplexidades.

Bom mas passemos a algumas questões, para mim, muito importantes.

1) Tanto quanto sei a declaração de algo infalível exige um formalismo específico que, suponho, nunca foi utilizado para este caso. Além disso, tanto quanto sei, desde que foi “aprovada” a doutrina da infalibilidade no concílio Vaticano I, esta só foi utilizado duas vezes (dois dogmas sobre Nossa Senhora): por Pio IX, em 1854, sobre a Imaculada Conceição (Concepção) de Nossa Senhora (constituição apostólica Ineffabilis Deus) e por Pio XII, em 1950, sobre a Assunção (constituição apostólica Munificentissimus Dei). Portanto, não basta Bento XVI escrever numa carta que se trata de doutrina infalível.

2) Bento XVI é um grande teólogo e filósofo, mas D. Policarpo também é um grande teólogo e filósofo (não sei quantificar este grande, mas posso dizer que são ambos “grandes”). Assim sendo, o que devemos pensar teologicamente sobre a ordenação das mulheres? E posso lembrar aqui o pedido que Häring fez a João Paulo II para que juntasse todos os principais moralistas e instituições de ensino sobre o assunto para que discutissem a moral, nomeadamente sexual. E... naturalmente, João Paulo II não aceitou.

3) Isto leva-me à terceira observação. Vamos fazer um “supônhamos”. Suponhamos que, em vez de Bento XVI, tinha sido eleito Papa D. José Policarpo. Qual passava a ser o “estado da questão”: podia ou não discutir-se “normalmente” o problema da ordenação das mulheres, já que ambos têm opiniões diferentes? Será apenas uma questão de opinião pessoal, não eclesial, de quem é Papa? E, a pergunta que se segue, as opiniões pessoais do Papa tornam-se infalíveis por ele ser papa? E os teólogos, qual é o seu papel: serem os fazedores de argumentos para defender as posições do papa? Se assim, é evidente que tem de haver tensões, a menos que os teólogos “vendam a alma”. Mas parece que é mesmo assim, pois o teólogo sente-se dividido entre a fidelidade à sua consciência na procura da verdade e a exigência do Magistério de que “cabe aos teólogos moralistas expor a doutrina da Igreja, dando, no exercício do seu ministério, o exemplo de uma leal adesão, interna e externa, ao ensinamento do Magistério, tanto no campo do dogma como da moral” (Veritatis Splendor, 110). Aliás, uma afirmação análoga é feita relativamente aos Bispos: “A comunhão hierárquica com o bispo de Roma requer também que os bispos, no magistério da sua própria diocese, manifestem um zelo fiel de adesão ao magistério do Papa, mesmo se ordinário, o difundam nas formas mais apropriadas, contribuam para ele de vários modos … e, quando necessário, o defendam” (Lineamenta para a X Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, 46).
Claro que já nem falo dos leigos. Mas nós também não ligamos nada: não lemos nem estudamos nem fundamentamos teologicamente a nossa fé nem os nossos compromissos sócio-políticos. Assim como podemos participar honestamente na edificação da Igreja? Como podemos “cooperar de boa vontade com os homens que prosseguem os mesmos fins (da justiça e da solidariedade)”? Como podemos, “reconhecendo quais são as exigências da fé, e por ela robustecidos”, hesitar, “quando for oportuno, em idear novas iniciativas e em levá-las à prática” (Gaudium et Spes, 43)? Como podemos responder, com seriedade, aos raríssimos apelos a que colaboremos na elaboração do normativo moral: “Para a elaboração de um autêntico discernimento evangélico nas várias situações e culturas em que o homem e a mulher vivem o seu matrimónio e a sua vida familiar, os esposos e os pais cristãos podem e devem oferecer um seu próprio e insubstituível contributo. A esta tarefa habilita-os o carisma ou dom próprio, o dom do sacramento do matrimónio” (Familiaris Consortio, 5)?

4) Depois não podemos esquecer (uma certa dose) de misoginia de muitos hierarcas, nomeadamente Bento XVI. É possível (!?) que nem todos tenham lido a última exortação apostólica Verbum Domini, publicada a partir das propostas (propositones) de cerca de 200 bispos reunidos no Sínodo sobre “A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja”. Vejamos a proposta 17 feita pelos Bispos: “Os padres sinodais reconhecem e incentivam o serviço dos leigos na transmissão da fé. As mulheres, em particular, têm um papel indispensável a este respeito, especialmente na família e na catequese. Na verdade, elas sabem como despertar a escuta da Palavra e do relacionamento pessoal com Deus e comunicar o sentido do perdão e da partilha do Evangelho. É desejável que o ministério de leitor seja aberto também às mulheres, para que na comunidade cristã seja reconhecido o seu papel de anunciadoras da Palavra".
O Papa, baseado nesta proposta, escreveu: “De modo especial, o Sínodo deteve-se sobre o papel indispensável das mulheres na família, na educação, na catequese e na transmissão dos valores. Com efeito, elas «sabem suscitar a escuta da Palavra, a relação pessoal com Deus e comunicar o sentido do perdão e da partilha evangélica» (Propositio 17), como também ser portadoras de amor, mestras de misericórdia e construtoras de paz, comunicadoras de calor e humanidade num mundo que demasiadas vezes se limita a avaliar as pessoas com os critérios frios da exploração e do lucro” (85). Fez alguma referência ao ministério do Leitorado extensível às mulheres como os Bispos, a quem ele pediu a opinião, tanto desejavam? Interessa ao Papa a opinião dos seus Bispos corresponsáveis com ele no governo da Igreja? Aceita ele a doutrina da colegialidade aprovada no Vaticano II? Pode suspeitar-se que não porque ignora liminarmente a opinião dos Bispos e porque se trata de uma ruptura com o passado de monarquia absoluta papal (desvalorização ou recusa da "hermenêutica da ruptura" frente à "hermenêutica da continuidade", como recordei no último post).

Mas tenhamos muita atenção. Estes dois exemplos são manifestações pouco mais que epifenoménicas: sendo importantes, não constituem a essência da crise da Igreja.
Eu penso que a crise está hoje instalada na Igreja porque nos perdemos em muitas coisas secundárias e fugimos (propositadamente, me parece) ao essencial. A Igreja quer pregar-se a si própria, ela que é apenas um instrumento e não pregar, testemunhar e procurar viver Jesus Cristo e os valores do Reino que ele nos veio ensinar. Por isso, a Igreja é tão normativa e tão pouco misericordiosa, vista no seu conjunto e sobretudo nas suas cúpulas. Não sabe, não pode ou não quer ensinar e formar para “captarmos” a presença, simultaneamente escondida e presente, do Reino de Deus, que, segundo as palavras de Jesus, é como uma semente (e propositadamente escolheu a semente de mostarda, do tamanho de uma pulga, que vai crescendo sem sabermos como nem quando), como o fermento que a mulher mistura na massa para a levedar "silenciosamente", como um tesouro tão precioso que leva o seu descobridor a vender tudo o que tem para comprar o campo onde a escondeu.
E termino com algumas passagens do IV capítulo do livro de Pagola, “O Profeta do Reino de Deus”.
“A sua resposta era desconcertante: “O Reino de Deus não vem de maneira ostensiva. Ninguém poderá afirmar ‘Ei-lo aqui?' ou ‘Ei-lo ali’, pois o Reino de Deus está entre vós” (Lc 17,20-21)…
Por vezes, traduziram-se de maneira errónea, como, por exemplo: “O Reino de Deus está dentro de vós”. Isto levou, infelizmente, à desfiguração do pensamento de Jesus reduzindo o Reino de Deus a uma coisa privada e espiritual que se produz no íntimo de uma pessoa quando se abre à acção de Deus. Jesus não pensava nisto quando falava aos camponeses da Galileia. O que ele pretendia era convencer toda a gente de que a chegada de Deus para impor a sua justiça não era uma intervenção terrífica e espectacular, mas uma força libertadora, humilde mas eficaz, que estava ali, no meio da vida, ao alcance de todos os que o acolhessem com fé… O Evangelho (apócrifo) de Tomé atribui a Jesus estas palavras: “O Reino de Deus está dentro de vós e fora de vós”. E é verdade. O acolhimento do Reino de Deus começa no interior das pessoas, em forma de fé em Jesus, mas realiza-se na vida dos povos na medida em que o mal vai sendo vencido pela justiça salvadora de Deus.
A chegada de Deus era uma coisa boa. Assim pensava Jesus: Deus aproximava-se porque era bom, e era bom para todos que Deus se aproximasse. Não vinha defender os seus direitos nem pedir contas a quem não cumprisse os seus mandamentos. Não chegava para impor o seu “domínio religioso”. De facto, Jesus não pedia aos camponeses que cumprissem melhor a sua obrigação de pagar os dízimos e as primícias; não se dirigia aos sacerdotes para que observassem com maior pureza os sacrifícios de expiação no templo; não incentivava os escribas para que fizessem cumprir com maior fidelidade a lei do Sábado e outros preceitos. O Reino de Deus era outra coisa. O que mais preocupava Deus era libertar a gente de tudo aquilo que a desumanizava e a fazia sofrer…
Era isso que precisavam de ouvir: que Deus se preocupava com eles. O Reino de Deus que Jesus proclamava correspondia aquilo que mais desejavam: viver com dignidade…
Era, por isso, que Jesus não falava da “ira de Deus” como o Baptista, mas da sua “compaixão”. Deus não vinha como juiz irado, mas como pai de amor comunicativo…
(Jesus) nunca se pôs do lado do povo judeu contra os pagãos: o Reino de Deus não consistiria num triunfo de Israel contra os gentios. Também não se colocou nunca do lado dos justos em detrimento dos pecadores: o Reino de Deus não consistiria na vitória dos santos para fazer pagara os maus pelos seus pecados. Ele era sempre a favor dos que sofriam e contra o que era mal, pois o Reino de Deus consistia me libertar a todos daquilo que os impedia de viver de maneira digna e feliz…
Por isso, Jesus não pensava só na cura das pessoas doentes. Toda a sua actividade se desenvolvia no sentido de fazer surgir uma sociedade mais saudável. Daí a sua alergia a comportamentos patológicos de raiz religiosa tais como o legalismo, o rigorismo e o culto vazio de justiça; o seu esforço em prol de uma convivência mais justa e solidária; o acolhimento que fazia aos deserdados da vida ou da sociedade; o seu empenhamento em libertar toda a gente do medo e da insegurança a fim de que vivesse com absoluta confiança em Deus. Curar, libertar do mal, tirar do desânimo, sanear a religião, construir uma sociedade mais amável, eram os caminhos que ele indicava para se acolher e promover o Reino de Deus, e eram também os caminhos que Jesus trilharia”.

É isto que nos ensinam na catequese? Nas homilias? Nas notas episcopais? Nas encíclicas pontifícias?

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