divórcio ou casamento eterno?...

2012-04-05

Semana Santa 4

Há alguns anos escrevi uma das minhas crónicas sobre o filme de Mel Gibson que retratava a paixão de Jesus. Foi uma verdadeira meditação pascal feita numa sala de cinema. Aquela violência, física e psicológica, que repassava todo o filme, fez-me reviver o que, penso, terá sido a verdadeira paixão de Cristo. Houve muitos cristãos que acharam um exagero e quase uma blasfémia aquela maneira de descrever a paixão. Curiosamente, a única carta de elogio foi-me mandada por um bispo.
Ainda hoje penso que para mutos cristãos aquelas passagens do Evangelho que são literatura, que a realidade do sofrimento não foi bem assim. Ou mesmo que muitos acreditam no que lêem, mas não o levam muito a sério. “A flagelação” está lá escrito mas não interiorizamos o que terá sido esse sofrimento porque nunca passámos por esse suplício. E, depois, talvez inconscientemente, acreditemos que Jesus, porque era Deus, não devia sofrer com a mesma intensidade das pessoas, apesar de também ser homem. Eu acho que há aqui uma espécie de monofisismo (uma só natureza) quando pensamos na Paixão.

Tendo isto presente, pensei meditar hoje sobre um tema aparentemente sem interesse religioso, mas apenas histórico. O que não é verdade. Podia chamar-lhe como tecnicamente se calcula a “data da última ceia” ou se a “ceia foi pascal ou não”. Mas vou apenas procurar seguir os vários acontecimentos que antecedem a morte de Jesus, que “estão envolvidos num emaranhado de hipóteses contrastantes entre si, o que parece impossibilitar de tal modo o acesso ao facto real que quase não deixa esperança de que isso seja possível”. Por isso, “certamente não podemos dispensarmo-nos de enfrentar a questão da efectiva historicidade dos acontecimentos essenciais” (Bento XVI, Jesus de Nazaré, II, p. 91). Quanto mais não seja para que não percamos de vista que a nossa fé é uma fé assente em acontecimentos históricos: Jesus existiu; comeu uma última ceia com os seus discípulos, sofreu; foi pregado na cruz; morreu. A ressurreição já fica para lá da história: restam vestígios, testemunhos e sobretudo uma força anímica de um bando de medrosos que de repente se tornam os mais corajosos do mundo.

Sofrimento insuportável
Mas o sofrimento foi real e de uma brutalidade inusitada. Por isso devemos ter bem presente que não se tratou de umas horitas de sofrimento, que não foi resultado da decisão manipulada de uma multidão exaltada e irracional. Não. Tratou-se de uma decisão premeditada pelas autoridades do Templo (“ou ele ou nós, dizia Caifás), das autoridades romanas (o lavar das mãos de Pilatos terá mais a ver com as guerras dos cristãos primitivos com os judeus que alguns evangelistas retratam e que nesse contexto procuram desculpar Pilatos) e até da multidão de Jerusalém (qual o seu grau de culpa, não sei avaliar; mas penso nos alemães do tempo de Hitler: era impossível que ninguém soubesse de nada, dos campos de extermínio, mas todos ficaram calados; não estou a acusá-los de nada porque se eu lá estivesse certamente também não teria feito nada; mas isso não retira a culpa colectiva).
Portanto, o que queria era mostrar que a Paixão de Cristo foi muito mais violenta e pavorosa que nós habitualmente pensamos. E se assim foi temos de concluir, e este é o meu objectivo, que Jesus manteve uma adesão férrea à missão que Deus lhe confiou, uma missão que não tinha que passar pela morte, mas que os poderosos do seu tempo obrigaram a isso. Mas o que quero destacar é que, apesar de todas as pressões, a atrocidades, violências, Jesus não se desviou do seu caminho, manteve-se fiel não umas horas mas o tempo todo que teve de sofrer. E isto é um grande desafio para nós, seus discípulos: a nossa adesão a Jesus não pode ser quebrada por nada, como nada quebrou a sua adesão ao Pai. Temos de levar a sério e cumprir o que diz este lindíssimo hino primitivo:
“Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a perseguição, a espada?... Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus Senhor nosso” (Rom 8, 35.38-39).

Data da Última Ceia
Desde os anos 50, Annie Jaubert vem estudando o problema das contradições dos vários evangelhos sobre o dia da última Ceia. A sua tese é que ela teria acontecido na quarta-feira à noite foi muito debatida e contestada, mas no fundo talvez resolva uma série de dificuldades, que têm a ver com a volumosa série de acontecimentos que decorreram desde a prisão à morte de Jesus.
Comecemos por recordar os factos, tendo presente que os Judeus contam os dias “tarde e manhã” (quarta-feira = terça-feira tarde e noite e manhã de quarta). Jesus, depois da Última Ceia, foi preso nessa noite já adiantada, julgado em casa do Sumo Sacerdote onde se juntaram os sacerdotes, anciãos e escribas (Sinédrio). Depois foi necessário encontrar testemunhas falsas, o que foi difícil, porque os seus testemunhos não eram concordantes. Há a negação de Pedro quando ele sai desse julgamento. De manhã houve nova reunião do Sinédrio, que prendeu Jesus e o enviou a Pilatos, que o interrogou o bastante para tentar libertá-lo. Ainda andou de Pilatos para Herodes e de Herodes para Pilatos, que acabou por decidir então propor à multidão a escolha entre Jesus e Barrabás. Feita a escolha, Pilatos mandou flagelá-lo para ser crucificado. Os soldados levaram-no para o pátio onde o flagelaram e escarneceram dele: puseram-lhe uma coroa de espinhos, batiam-lhe na cabeça, cuspiram-no, dobravam os joelhos perante ele, tiraram-lhe o manto de púrpura e vestiram-lhe as suas vestes. Então levaram-no para o monte Calvário; pelo caminho caiu e precisou de ser ajudado. Finalmente pregaram-no na cruz: “era a hora tercia”, ou seja, cerca das nove horas da manhã. As trevas cobriram toda a terra na hora sexta (meio-dia) e à hora nona (três da tarde) Jesus deu um grande brado e expirou.
É só fazer as contas: tudo isto aconteceu desde a tarde de um dia quando se juntaram para comer a ceia até às nove da manhã quando o pregaram na cruz.
Vejamos a teoria da Última Ceia na noite de terça-feira (quarta-feira judaica) e a sequência possível (Ariel Alvarez), utilizando a nossa contagem dos dias:
Terça-feira: à noite Jesus celebra a Última Ceia com os seus discípulos; segue para o monte das Oliveiras, onde é preso e levado perante o sumo sacerdote.
Quarta-feira: de manhã, realiza-se a primeira reunião do Sinédrio, que quer ouvir testemunhas; Jesus passa essa noite na prisão dos judeus.
Quinta-feira: de manhã, nova reunião do Sinédrio que condena Jesus à morte e o manda a Pilatos que, depois de o interrogar, o manda para Herodes, que lho devolve; Jesus passa essa noite na prisão dos romanos.
Sexta-feira: de manhã Pilatos recebe Jesus pela segunda vez, manda flagelá-lo e depois crucificá-lo. Às três horas, morre.
Em favor desta tese há uma série de normas judaicas:
- qualquer julgamento devia acontecer durante o dia;
- era proibido condenar o réu na véspera do sábado ou da festa;
- ninguém podia ser condenado à morte antes de passarem 24 horas após a sua prisão.
Por outro lado, os evangelhos narram os últimos momentos de Jesus até terça à noite; mas nada dizem de quarta e de quinta.
A Didascália dos Apóstolos, documento do século III afirma que “depois de ter comido a Páscoa na terça à tarde, nós (os apóstolos) fomos ao monte das Oliveiras e durante a noite prenderam o Senhor. No dia seguinte, que era quarta-feira, ficou preso em casa do sumo sacerdote” (V, 14).
Vitorino de Pettau, bispo de Estíria, falecido em 304, escreveu: “Cristo foi preso ao quarto dia (terça-feira à tarde = quarta para os Judeus). Por causa da sua prisão jejuamos quarta-feira; pela sua paixão, jejuamos sexta-feira”.
A Didaké, que apresentei ontem, recomendava: “Não jejueis nos mesmos dias que o fazem os hipócritas, pois estes jejuam no segundo e no quinto dia da semana. Vós, porém, o dia quarto e o da preparação (sexto)” (VIII).
O teólogo J. Ratzinger, actual Papa Bento XVI, defende outra posição, que todos poderão ler no seu II volume de Jesus de Nazaré: Jesus comeu a última ceia na quinta-feira, mas essa ceia não teve as características da Páscoa judaica: “o essencial desta Ceia de despedida não foi a Páscoa antiga, mas a novidade que Jesus realizou neste contexto. Mesmo se esta refeição de Jesus com os Doze (!?) não foi uma ceia pascal segundo as prescrições rituais do judaísmo, num olhar restrospectivo tornou-se evidente, com a morte e ressurreição de Jesus, o significado intrínseco do todo: era a Páscoa de Jesus. E, neste sentido, Ele celebrou a Páscoa e não a celebrou. Os ritos antigos não podiam ser praticados; quando chegou o momento, Jesus já estava morto. Mas Ele entregara-se a Si mesmo e assim tinha celebrado com eles verdadeiramente a páscoa. Desta forma, o antigo não tinha sido negado, mas – e só assim poderia ser – levado ao seu sentido pleno. O primeiro testemunho desta visão unificadora do novo e do antigo, que é operada pela nova interpretação da Ceia de Jesus em relação com a Páscoa no contexto da sua morte e ressurreição, encontra-se em Paulo: ´Purificai-vos do velho fermento para serdes uma nova massa, já que sois pães ázimos. Pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado’ (1Cor 5,7)… Com base nisto, pode-se compreender como a Última Ceia de Jesus … bem depressa acabou por ser considerada como Páscoa, como a sua Páscoa” (pp. 100-101).

Fiz esta citação longa do Papa, pois quem sou eu para discutir estas coisas. Mas sinceramente querer meter tal sequência de acontecimentos em tão pouco tempo, parece-me um pouco como querer “meter o Rossio na Betesga”!

0 Comentários:

Enviar um comentário

<< Home