Deus, Senhor da História
Com o último post terminei um conjunto que começara com uma frase do Sermão da Montanha: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,25). Esta perícope acaba com o “Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus e tudo o resto vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33).
Esta expressão do Reino de Deus não ocupou o meu espírito jovem.
Passou-me praticamente despercebido. Valia a frase pelo seu todo. Primeiro o
que é de Deus. Mais tarde descobri que ao seu Reino estava associada a sua
justiça.
O que se foi formando no meu espírito jovem foi a certeza de que “Deus
é o Senhor da história”. Não sei bem como isto aconteceu. Talvez tenha
resultado do cruzamento entre Providência e Reino de Deus. Mas foi certamente
catalisada por uma passagem conciliar: “O Espírito de
Deus, que dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável
providência, está presente a esta evolução. E o fermento evangélico despertou e
desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade” (GS
26).
Fosse o que fosse, esta ideia cedo marcou o meu itinerário espiritual que
se foi enriquecendo com as consequências dela decorrentes.
Os meus actos
Uma primeira descoberta foi a importância dos meus actos. E para mim
que era muito tímido foi uma descoberta importante. Passei a perceber que os
meus actos eram mais importantes do que os julgava porque passavam a ser
instrumento de Deus. Eles valiam, portanto, muito por mais humildes que eles
fossem. Estavam revestidos de uma auréola de santidade, invisível mas absolutamente
presente. Quanto mais pensava nisto mas estes aspectos eram ressaltados e tinha
cada vez mais confiança no que fazia.
Comecei a perceber que devia fazer mesmo quando não me apetecia muito
ou nada. Não eram os meus “apetites” que decidiam. Entretanto descobri que Deus
quer que sejamos nós a substituí-lo na sua acção pela justiça. O episódio que
várias vezes lia é o diálogo de Deus com Moisés, relatado no livro de Êxodo (3,11-4,18).
Repare-se na quantidade de desculpas com que Moisés procura libertar-se da
vontade de Deus que quer que seja ele a levar a cabo a libertação que Deus
decretou para os escravos “filhos de Israel” que viviam no Egipto:
- quem sou eu para ir ter com o faraó…
- vou ter com os filhos de Israel e que lhes digo?
- se eles não acreditarem e disserem “O Senhor não
te apareceu”?
- eu não sou um homem dotado para falar
- eu te peço, Senhor, envia outro.
Só depois de isto tudo é que Moisés regressa ao Egipto.
Eu sou o enviado de Deus para as pequenas libertações, as pequenas
lutas diárias a favor da justiça e da justiça do seu Reino. Daí a importância de
cada um de nós e da nossa responsabilidade.
Comecei então a pôr em causa aquela passagem evangélica tão repetida:
“Somo servos inúteis. Só fizemos o que devia ser feito” (Lc 17,10).
Efectivamente os nossos actos não são inúteis porque são necessários para a
realização das decisões de Deus na história. Então nós não somos servos inúteis
porque somos necessários, porque Deus quer precisar de nós. E, portanto, até
somos indispensáveis, como aliás se nota olhando para o mundo de hoje. Se fosse
Deus a fazer as coisas o mundo de hoje seria certamente muito mais justo,
solidário, fraterno e humano. Não é assim porque nós não assumimos ainda que
Deus quer que sejamos nós a construir o mundo.
Mais. Nós somos indispensáveis não só por causa daquele saber divino
que nos quis fazer livres e, dentro desta liberdade, quer que sejamos nos a
substituí-lo na construção do mundo. Nós somos também indispensáveis porque,
como diz João Paulo II, cada um é único e irrepetível: “A dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humano. É fundamental
compreender-se toda a força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda a pessoa. Dela deriva que o indivíduo seja
irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da
colectividade, da instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua
individualidade, não é um número, não é o anel de uma cadeia, nem uma peça da
engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada
ser humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher”
(ChL 37). Se cada um é único e irrepetível ninguém o pode substituir. Os outros
poderão fazer muito melhor do que eu, mas nunca farão o que só eu posso dar.
Ninguém tem os meus talentos, exactamente os meus talentos. Também por isso eu
sou indispensável.
Os outros
Se eu sou instrumento de Deus, também os outros o são. Portanto, devo
respeitá-los como tal. Até porque Deus não faz acepção de pessoas. Deus não tem
o menor escrúpulo em se “servir” dos não crentes para que a história se vá
construindo através da actividade humana. Várias vezes encontramos na Bíblia
esta referência a que Deus não faz acepção de pessoas. Quando os cristãos ficam
apenas preocupados com os seus problemas internos e se distraem do que acontece
no mundo, lá vai o nosso Deus (como?) bater à porta dos Marxs para nos fazer
perceber que a pessoa também tem uma dimensão estruturante social e gritar
contra a exploração da pessoas e dos povos; dos Darwins para nos fazer descer à
humildade de percebermos que somos “descendentes do macaco”; dos Freuds para
que percebamos que não somos absolutamente autónomos, ou dos Gandhs, dos Luther
King, de todos os que, no fundo, trabalharam, muitas vezes sem o saberem, pela
justiça do Reino de Deus.
Assim sendo, devemos procurar sempre o diálogo e a colaboração com
todos os “homens de boa vontade”. Neste contexto insere-se a frase revolucionária
de João XXIII tanto pouco tida em conta pelos católicos: “Não deverá jamais confundir-se o erro com a pessoa que
erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa
ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a
dignidade do ser humano, e portanto sempre merece estima. Ademais, nunca se
extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se
ao conhecimento da verdade. Nem lhe faltam nunca neste intuito os auxílios da divina
Providência. Quem, num certo momento de sua vida, se encontre privado da luz da
fé ou tenha aderido a opiniões erróneas, pode, depois de iluminado pela divina
luz, abraçar a verdade. Os encontros em vários sectores de ordem temporal entre
católicos e pessoas que não têm fé em Cristo ou têm-na de modo erróneo, podem
ser para estes ocasião ou estímulo para chegarem à verdade” (PT 157).
Uma só história
Se Deus é Senhor da história, não faz sentido falar de duas histórias:
uma da salvação e outra humana. A história humana e a história da salvação não
são duas histórias estanques, nem estranhas uma à outra, pois as promessas de “libertação
e de salvação para todos cumpriram-se de uma vez para sempre na Páscoa de
Cristo” (JM 6), que incarnou na nossa história e passou a fazer parte dela. Por
isso, a construção da história é o resultado de um diálogo dialéctico entre a
vontade de Deus e a vontade humana, que por ser livre não se submete a tudo o
que lhe é exigido ou dito.
Também os nossos actos, ideias, concepções tudo o que há de bom no
coração das pessoas e dos povos vamos encontrá-los no Reino de Deus, depois de
terem sido purificados: “Todos estes valores da
dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do
nosso trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e
segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então
purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo
entregar ao Pai o reino eterno e universal: «reino de verdade e de vida, reino
de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz». Sobre a terra, o
reino já está misteriosamente presente; quando o Senhor vier, atingirá a
perfeição” (GS 39).
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