divórcio ou casamento eterno?...

2013-05-02

Deus, Senhor da História

Com o último post terminei um conjunto que começara com uma frase do Sermão da Montanha: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã” (Mt 6,25). Esta perícope acaba com o “Procurai em primeiro lugar o Reino de Deus e tudo o resto vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33).
Esta expressão do Reino de Deus não ocupou o meu espírito jovem. Passou-me praticamente despercebido. Valia a frase pelo seu todo. Primeiro o que é de Deus. Mais tarde descobri que ao seu Reino estava associada a sua justiça.
O que se foi formando no meu espírito jovem foi a certeza de que “Deus é o Senhor da história”. Não sei bem como isto aconteceu. Talvez tenha resultado do cruzamento entre Providência e Reino de Deus. Mas foi certamente catalisada por uma passagem conciliar: “O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência, está presente a esta evolução. E o fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade” (GS 26).
Fosse o que fosse, esta ideia cedo marcou o meu itinerário espiritual que se foi enriquecendo com as consequências dela decorrentes.

Os meus actos
Uma primeira descoberta foi a importância dos meus actos. E para mim que era muito tímido foi uma descoberta importante. Passei a perceber que os meus actos eram mais importantes do que os julgava porque passavam a ser instrumento de Deus. Eles valiam, portanto, muito por mais humildes que eles fossem. Estavam revestidos de uma auréola de santidade, invisível mas absolutamente presente. Quanto mais pensava nisto mas estes aspectos eram ressaltados e tinha cada vez mais confiança no que fazia.
Comecei a perceber que devia fazer mesmo quando não me apetecia muito ou nada. Não eram os meus “apetites” que decidiam. Entretanto descobri que Deus quer que sejamos nós a substituí-lo na sua acção pela justiça. O episódio que várias vezes lia é o diálogo de Deus com Moisés, relatado no livro de Êxodo (3,11-4,18). Repare-se na quantidade de desculpas com que Moisés procura libertar-se da vontade de Deus que quer que seja ele a levar a cabo a libertação que Deus decretou para os escravos “filhos de Israel” que viviam no Egipto:
- quem sou eu para ir ter com o faraó…
- vou ter com os filhos de Israel e que lhes digo?
- se eles não acreditarem e disserem “O Senhor não te apareceu”?
- eu não sou um homem dotado para falar
- eu te peço, Senhor, envia outro.
Só depois de isto tudo é que Moisés regressa ao Egipto.
Eu sou o enviado de Deus para as pequenas libertações, as pequenas lutas diárias a favor da justiça e da justiça do seu Reino. Daí a importância de cada um de nós e da nossa responsabilidade.
Comecei então a pôr em causa aquela passagem evangélica tão repetida: “Somo servos inúteis. Só fizemos o que devia ser feito” (Lc 17,10). Efectivamente os nossos actos não são inúteis porque são necessários para a realização das decisões de Deus na história. Então nós não somos servos inúteis porque somos necessários, porque Deus quer precisar de nós. E, portanto, até somos indispensáveis, como aliás se nota olhando para o mundo de hoje. Se fosse Deus a fazer as coisas o mundo de hoje seria certamente muito mais justo, solidário, fraterno e humano. Não é assim porque nós não assumimos ainda que Deus quer que sejamos nós a construir o mundo.
Mais. Nós somos indispensáveis não só por causa daquele saber divino que nos quis fazer livres e, dentro desta liberdade, quer que sejamos nos a substituí-lo na construção do mundo. Nós somos também indispensáveis porque, como diz João Paulo II, cada um é único e irrepetível: “A  dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humano. É fundamental compreender-se toda a força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda a pessoa. Dela deriva que o indivíduo seja irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da colectividade, da instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua individualidade, não é um número, não é o anel de uma cadeia, nem uma peça da engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher” (ChL 37). Se cada um é único e irrepetível ninguém o pode substituir. Os outros poderão fazer muito melhor do que eu, mas nunca farão o que só eu posso dar. Ninguém tem os meus talentos, exactamente os meus talentos. Também por isso eu sou indispensável.

Os outros
Se eu sou instrumento de Deus, também os outros o são. Portanto, devo respeitá-los como tal. Até porque Deus não faz acepção de pessoas. Deus não tem o menor escrúpulo em se “servir” dos não crentes para que a história se vá construindo através da actividade humana. Várias vezes encontramos na Bíblia esta referência a que Deus não faz acepção de pessoas. Quando os cristãos ficam apenas preocupados com os seus problemas internos e se distraem do que acontece no mundo, lá vai o nosso Deus (como?) bater à porta dos Marxs para nos fazer perceber que a pessoa também tem uma dimensão estruturante social e gritar contra a exploração da pessoas e dos povos; dos Darwins para nos fazer descer à humildade de percebermos que somos “descendentes do macaco”; dos Freuds para que percebamos que não somos absolutamente autónomos, ou dos Gandhs, dos Luther King, de todos os que, no fundo, trabalharam, muitas vezes sem o saberem, pela justiça do Reino de Deus.
Assim sendo, devemos procurar sempre o diálogo e a colaboração com todos os “homens de boa vontade”. Neste contexto insere-se a frase revolucionária de João XXIII tanto pouco tida em conta pelos católicos: “Não deverá jamais confundir-se o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano, e portanto sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade. Nem lhe faltam nunca neste intuito os auxílios da divina Providência. Quem, num certo momento de sua vida, se encontre privado da luz da fé ou tenha aderido a opiniões erróneas, pode, depois de iluminado pela divina luz, abraçar a verdade. Os encontros em vários sectores de ordem temporal entre católicos e pessoas que não têm fé em Cristo ou têm-na de modo erróneo, podem ser para estes ocasião ou estímulo para chegarem à verdade” (PT 157).

Uma só história
Se Deus é Senhor da história, não faz sentido falar de duas histórias: uma da salvação e outra humana. A história humana e a história da salvação não são duas histórias estanques, nem estranhas uma à outra, pois as promessas de “libertação e de salvação para todos cumpriram-se de uma vez para sempre na Páscoa de Cristo” (JM 6), que incarnou na nossa história e passou a fazer parte dela. Por isso, a construção da história é o resultado de um diálogo dialéctico entre a vontade de Deus e a vontade humana, que por ser livre não se submete a tudo o que lhe é exigido ou dito.
Também os nossos actos, ideias, concepções tudo o que há de bom no coração das pessoas e dos povos vamos encontrá-los no Reino de Deus, depois de terem sido purificados: “Todos estes valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: «reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz». Sobre a terra, o reino já está misteriosamente presente; quando o Senhor vier, atingirá a perfeição” (GS 39).

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